terça-feira, 31 de dezembro de 2013

PATRIMÓNIO DESINTEGRADO...


Enquanto vou lendo e reflectindo sobre o conceito de património integrado, sou assaltado pela ideia do seu contrário: património desintegrado.
Penso, por exemplo, no ex-libris de Torres Vedras, o Chafariz dos Canos, recentemente restaurado num belo trabalho da Nova Conservação.
Quem olhe hoje para aquele monumento tem a desagradável sensação de ver uma múmia: por mais bem conservada que esteja, ela tem em si uma aura de morte.
Chafariz dos Canos, Torres Vedras, anos 20 do séc. XX

Aquele chafariz era um lugar de encontros, de quem passava e matava a sede... e ficava à conversa... Lugar de almocreves com seus animais, de caminheiros que vinham de longe, de peregrinos a caminho de Santiago, de aguadeiros que vendiam água ao domicílio...

O que resta de tudo isso é uma estrutura gótica encimada por um acrescento quinhentista, completamente desintegrada do sítio em que foi construída e da necessidade para que foi concebida.


Chafariz dos Canos, 2012, depois do recente restauro

Dir-se-á que não podia deixar de ser assim, os tempos mudaram, etc. Só em parte concordo. Porque o que falta ali é uma leitura que dê sentido àquela construção. Para isso há ideias mas pouca vontade de as pôr em prática. Fez-se agora uma placa explicativa, finalmente, mas continuo a achar que é pouco.
Entretanto os passeantes param, tiram fotografias, dizem que é muito giro e seguem, indiferentes. Porque o que ali está é um bom exemplo de património desintegrado.

NOTA: bem sei que esta é uma boutade que joga apenas com o antónimo de sentido da palavra integrado. Peço que me relevem a brincadeira que, no entanto, se refere a uma questão que considero muito séria.

O CONCEITO DE "ARTE TOTAL"

ARTE TOTAL PARA UMA VISÃO GLOBAL DA VIDA

A expressão de Oliveira Martins que se refere ao reinado de D. João V como “entusiasmo desvairado dessa ópera ao divino”, prefigura, avant la lettre, a perspectiva de análise que hoje designamos por “arte total”. De facto, que outra manifestação artística tem um carácter tão global como a ópera? Ela é um poderoso estimulante sensorial, através dos sons – canto e música -, e das imagens – cenografia e salas de espectáculo. Porém, a metáfora do historiador oitocentista tem um alcance mais vasto pois ela aplica-se à envolvente social que rodeou a corte do rei magnânimo: verdadeira sociedade do espectáculo em que, desde o cerimonial das procissões aos solenes Te Deum, da “montanha de pedra” de Mafra aos banquetes de inúmeros serviços, da Capela de S. João Baptista de S. Roque às igrejas paroquiais de todo o país, tudo concorria para produzir o efeito de manifestação do poder régio através do luxo e do espavento.

Convento de Cardais, Lisboa


O guião deste espectáculo tem dois aspectos complementares: a envolvência religiosa determinada pelas disposições tridentinas e a afirmação do poder monárquico absoluto. São eles que orientam as práticas políticas e as opções artísticas, só possíveis com a remessa maciça de ouro e diamantes do Brasil.

PATRIMÓNIO INTEGRADO E PEÇAS EM CONTEXTO


O tema do património integrado suscita-me algumas reflexões que articulo com a experiência de visitas a museus onde há grande profusão de arte sacra – estou a lembrar-me do Museu N. Arte Antiga, do Tesouro da Sé de Braga ou do Museu junto à igreja de S. Roque, em Lisboa.
A questão previa a pôr seria: qual o lugar das peças numa perspectiva de património integrado? Questão que se pode colocar em relação a 90% (ou mais...) das peças do património religioso expostas num Museu. As imagens, as alfaias litúrgicas - paramentos e objectos de culto como as cruzes procissionais, os turíbulos, as navetas, os cálices, as custódias, os castiçais, Missais, etc – são frequentemente expostos como objectos em si, sem contexto, a não ser o que lhe é atribuído em legendas e folhas de sala. Muitas vezes a enorme quantidade dessas peças tende a anular o efeito expositivo – seja pedagógico, seja informativo ou, até, de simples fruição estética.
É claro que a exposição põe problemas de segurança muito sérios que o recurso a vitrines anti-roubo resolve em grande parte. Seria impensável recolocar estas peças nos altares, nas credências ou nos tronos – embora isso permitisse uma leitura global e a compreensão do seu significado.

Ora é aqui que o conceito de património integrado poderá ser mais abrangente. Não apenas o espaço inicial de que as peças eram parte integrante ou onde mais tarde se integraram, mas também os espaços dedicados em que se devem estudar formas mais eficazes de os mostrar, nomeadamente os Museus.
Creio que isso está implícito no Decreto-Lei 120/97 de 16 de Maio, quando refere, na alínea b) do nº 5 do Artº 18: «(…) promovendo a criação de espaços museológicos, de centros explicativos ou interpretativos e de programas pedagógicos.»


Assim a expressão património integrado – inicialmente aplicado aos bens «cuja finalidade e existência foi determinada pelo próprio edifício que os contém» (Cf. Luís Ferreira Calado, “Património integrado ou a alma dos monumentos”, caderno do IPPAR nº 4, Lisboa, 2003) alarga-se e enriquece-se. Nele incluiremos os objectos de carácter funcional que foram imprescindíveis na vida quotidiana dos imóveis e para os quais foram adquiridos.

Poderão estar já separados desses imóveis e expostos ou guardados em espaços dedicados. Mas deverão ser valorizados através dos meios previstos na Lei, atrás referidos, evitando a exposição exaustiva e privilegiando a criação de contextos que permitam a compreensão da sua função nos actos litúrgicos a que eram destinados.

Se, em rigor, esses objectos estão excluídos do conceito de património integrado, é necessário que deles se faça uma leitura integrada do seu significado.

(Fotos: J. Moedas Duarte / Igreja e Museu de S. Roque, Lisboa)

TORRES AO CENTRO - UM EXEMPLO DE RECUPERAÇÃO DO CENTRO HISTÓRICO

Se me permitem, entro aqui para referir um projecto que se desenvolve no âmbito do que temos denominado “reutilização” e que conheço bem por dois motivos: decorre em Torres Vedras e envolve uma associação de cujos corpos gerentes faço parte (Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras).


Trata-se do projecto FORUM CULTURAL que se destina à reconstrução de um edifício da zona histórica para sede de várias associações, o qual se insere no programa mais vasto intitulado TORRES AO CENTRO.

A visita ao sítio de que deixo a ligação poderá esclarecer melhor do que se trata:

Em meu entender – embora seja parte interessada – esta é uma iniciativa importante e, de certo modo, exemplar, do modo como se pode dar mais vida a um Centro Histórico social e urbanisticamente decadente. Tem aspectos negativos, é verdade. Destaco a prevalência demasiada à dinamização cultural, em detrimento dos Serviços, que abandonaram o Centro Histórico em busca de instalações modernas, sem curar de modernizar espaços no próprio CH, como seria desejável. Igualmente, foi descurada a recuperação para habitação, não acautelando o necessário rejuvenescimento da população residente.

Reutilizar os velhos edifícios é uma forma de os preservar, quer como habitação quer como SERVIÇOS. Neste caso os serviços culturais marcam o espaço mas, sem a complementaridade de outros de âmbito diferente, corre-se o risco de circunscrever ou demarcar demasiado os tipos de utilização.


Sendo uma iniciativa positiva, sabemos bem que os próximos anos, com a abertura e o funcionamento destes espaços, serão determinantes para perceber qual a verdadeira dimensão do programa Torres ao Centro

REUTILIZAÇÃO COMO FORMA DE SALVAGUARDA


Sobre a problemática da reutilização de edifícios classificados como bens patrimoniais, há que referir o maior perigo que ameaça este recurso de conservação patrimonial. A este propósito lembro-me de um artigo de opinião inserto na revista “Pedra & Cal” (nº 12, Abril/Maio/Junho 2010), da autoria do Arquitecto José Aguiar, cujo título é bem expressivo: “Os Monumentos Nacionais não têm de ser todos pousadas e hotéis sem charme”. O autor cita, muito a propósito, a Carta de Atenas (1931) e a Carta de Veneza (1964) que estabelecem claramente a prevalência do usufruto público sobre os interesses privados, e dá exemplos de más soluções que resultam da subversão desse princípio.

Lembremos, ainda, que um dos problemas da reutilização de edifícios antigos, em Portugal – sejam monumentos, sejam conjuntos edificados nos Centros Históricos com valor patrimonial – é a falta de preparação das empresas de construção que não sabem recuperar o antigo, preferindo o bota-abaixo para construir tudo de novo, ao contrário de muitos países da Europa em que a reabilitação supera a construção nova.

(Foto: Pousada da Flor da Rosa, Crato. Origem: http://www.portugalvirtual.pt/pousadas/crato/pt/)

A LEI DE BASES DO PATRIMÓNIO E OS CIDADÃOS



Sobre a classificação e inventariação de bens culturais muito poderíamos discorrer. Pego pela ponta mais óbvia: a leitura da Lei nº 107/2001, de 8 de Setembro, que podemos designar por Lei de Bases do Património Cultural. Não me canso de a reler, aprendo sempre algo mais em cada leitura. Ela representa um avanço notabilíssimo para todos os patrimonialistas e um baluarte a defender com denodo.

Ora, a melhor defesa da Lei é pô-la em prática, usá-la intensivamente, explorá-la ao limite. Um dos aspectos mais importantes deste documento é o que diz respeito à participação dos cidadãos na salvaguarda do Património, ampla e explicitamente reconhecida nos artigos 9º e 10º, quer ao nível do indivíduo (9º), quer do colectivo (10º, «Estruturas associativas de defesa do património cultural»).

Vale a pena ler devagar aqueles artigos pois eles interpelam o nosso sentido de responsabilidade cívica. Bem sabemos que as Associações de Defesa do Património tiveram o seu período áureo no pós 25 Abril 74 até meados da década seguinte. Depois houve um decréscimo de actividade. Todavia, as acções enérgicas, e por vezes polémicas, que empreenderam, estão nos caboucos desta Lei 107.

A nós, patrimonialistas, compete dar conteúdo cada vez mais sólido e substantivo às perspectivas abertas pela Lei. Uma delas diz respeito à faculdade de propor a classificação de bens culturais, por exemplo. Outra, mais básica, é «o direito de participação procedimental e de acção popular para a protecção de bens culturais…» ( Artº 9º, nº 2).
Já agora recordo que o Decreto-Lei nº 309/2009, de 23 de Outubro, “estabelece o procedimento de classificação dos bens imóveis de interesse cultural…”. Isto é: diz ao cidadão como deve proceder para pôr em prática o que a Lei 107 prevê.

Por fim: a Lei que reconhece os referidos direitos não se esquece de lembrar (Artº 11º) que eles resultam do dever que “todos têm” de preservar, defender, conservar e valorizar o património cultural.

Donde se conclui que tomar a iniciativa da classificação desses bens, sempre que tal se justifique, sendo um direito do cidadão, é também um dever.

(Foto: J. Moedas Duarte / Castelo de Torres Vedras)

A IMPORTÂNCIA DA INVENTARIAÇÃO DE BENS PATRIMONIAIS





Quando nos debruçamos sobre as questões de salvaguarda do Património edificado ou móvel as categorias de registo em presença são a inventariação e a classificação. Por natureza a classificação é um acto excepcional que recai sobre espécimes que congregam em si os critérios exigentes consignados pela lei. Por essa razão, a inventariação é o instrumento mais importante para o controlo daqueles Patrimónios. Desde logo porque diz respeito à gestão corrente, garantindo o conhecimento e o registo padronizado das peças. Por isso, as entidades responsáveis pela gestão daqueles bens devem garantir a actualização permanente dos registos de inventariação bem como a sua divulgação junto dos agentes que intervêm nas respectivas áreas de localização.

Não por acaso os velhos patrimonialistas do séc XIX erigiram a necessidade de inventariação dos bens como primeiro e decisivo passo para a defesa do Património.
Quer dizer: se a classificação significa a elevação a um determinado patamar, com a consequente e proporcional projecção social, económica, cultural e, até, turística, a inventariação significa a garantia de uma espécie de contabilidade corrente, útil para os estudiosos, necessária para os planificadores e educativa para as comunidades a que pertencem.


A exigência de salvaguarda e conservação não se restringe aos bens classificados, ela deve estar presente também nos bens inventariados. Uma área em que tal se torna decisivo é a das Cartas Arqueológicas, inventariação pormenorizada dos sítios e jazidas, o que as torna imprescindíveis a uma correcta gestão dos solos agrícolas e urbanizáveis. Infelizmente, muitos municípios ainda não contam com este importante recurso de planeamento.

(Foto: J. Moedas Duarte / Castelo de Torres Vedras)

PATRIMÓNIO INDUSTRIAL, MEMÓRIA DO TRABALHO PRODUTIVO



Uma ideia estimulante para a nossa reflexão é a que Françoise Choay propõe, ao denunciar o que classifica como a fetichização do património, expressa em duas formas contraditórias de o olhar: de um lado a perspectiva passadista e nostálgica, resistente à articulação integradora entre o antigo e o novo; do outro a visão progressista que reduz o património preservado a objecto de museu. (cf. CHOAY, Françoise, 2009).

A contradição radica na própria ambiguidade do conceito de Património que se alargou exponencialmente a todas as áreas da actividade humana. (cf. POULOT, Dominique, 2001). Daí a necessidade de reafirmar a abordagem histórico-sociológica que articule, simultaneamente, os valores do tempo longo (dimensão maior da História) e do tempo curto (vivências quotidianas), de modo a que o conceito de Património reassuma a dimensão de portador de consciência histórica e de memória das comunidades humanas.

Uma das áreas mais recentes da tendência patrimonializadora é a do Património Industrial que ganhou expressão sobretudo depois da 2ª Guerra Mundial. Aqui, a carga histórica do tempo longo cede à verificação do imediato, marca da contemporaneidade. Emergem as memórias de quotidianos recentes, símbolos de um presente que se extingue debaixo dos nossos olhos, induzindo valores importantes como o turismo cultural de crescente expressão económica e a reutilização criteriosa e criativa de antigas instalações fabris.


Quando a “Casa Hipólito” ou a “Fundição de Dois Portos” – indústrias locais de Torres Vedras que prosperaram no séc XX – se afundam na falência e fecham as portas, tal significa o apagamento súbito de um passado recente cuja memória urge preservar para que as novas gerações entendam as razões do vazio sócio-económico que se instalou numa cidade subitamente órfã da sua prosperidade.

A Carta de Nizhny Tagil sobre o Património Industrial, aprovada em 2003, bem como a sua extensão nos chamados “Princípios de Dublin”, de 2011, mostram como estas preocupações locais têm dimensão internacional. Tais documentos apontam para metodologias de identificação, inventário e investigação, indispensáveis para a valorização e preservação deste Património, cada vez mais presente em múltiplas formas de apresentação e interpretação garantidas pelos poderes públicos articulados com as comunidades locais.

Acredita-se que esta saída cultural – preservação dos vestígios físicos acompanhada de uma narrativa histórica esclarecedora – constitua uma mais-valia face à rápida modificação das condições da vida económica, portadora, muitas vezes, de sofrimentos e frustrações. Vemos hoje um Museu do Pão, em Seia, que contrapõe à uniformizada industrialização panificadora a memória de antigas formas de moer e fabricar. Multidões saudosas de antigos sabores e odores invadem aquele espaço e regressam a um passado que ainda há pouco era o seu próprio presente. 


E mais ao sul,  o Museu do Trabalho Michel Giacometti, em Setúbal, mostra os antigos processos da indústria conserveira, em que nos parece ver ainda os vultos dos homens e das mulheres que ocupavam as linhas de produção, ao som de apitos estridentes.

Esta valorização do Património Industrial – cujos exemplos se têm multiplicado de norte a sul do país desde há duas décadas - é, em si mesma, a consagração do bem mais duradouro da História, o trabalho humano, mostrado como processo, como sofrimento, como superação, como riqueza. Aqui, Património já não é Monumento, símbolo de poder, afirmação de elites ou linhagens. É imagem do Homem que, em sociedade, se eleva acima da estrita sobrevivência individual. Por isso a preservação do Património Industrial é indispensável para a persistência da memória histórica desse longo caminho em que, como dizia M. Vieira Natividade, ilustre patrimonialista alcobacense, o homem fez a indústria e a indústria fez o homem.

J. Moedas Duarte

BIBLIOGRAFIA:
CHOAY, Françoise, Le patrimoine en questions – Anthologie pour un combat, Editions du Seuil, 2009, p.XXXV-XXXVI. 
CHOAY, Françoise, Alegoria do património, Edições 70, Lisboa, 2013.
POULOT, Dominique, “La multiplication des patrimoines”, Patrimoine et musée. L’institution de la culture, Paris, Hachette, 2001, pp.198-205
NATIVIDADE, Manuel Vieira - Alcobaça de outro tempo. Notas sobre a indústria e a agricultura, Alcobaça, 1906. [sem refer. de editor]
MENDES, José Amado, O património industrial na museologia contemporânea: o caso português, Ubimuseum ,[em linha],nº 01, pp.89-104. [Consult. 20-XI-2013]. Disponível  na internet: http://www.ubimuseum.ubi.pt/n01/artigos.html

WEBSITES:
IGESPAR, Património industrial [em linha], [consultado em 20-XI-2013], disponível na internet <URL: http://www.igespar.pt/pt/patrimonio/itinerarios/industrial1/ >
Associação Portuguesa para o Património Industrial [em linha], [consultado em 19-XI-2013], disponível na internet: <URL: http://www.museudaindustriatextil.org/appi/home.php >(última actualização:14-03-2016)
Rede Indústria, História e Património [em linha], [consultado em 19-XI-2013], disponível na internet: <URL:http://historia-patrimonio-industria.blogspot.pt/ >
CARTA DE NIZNHY TAGIL SOBRE O PATRIMÓNIO INDUSTRIAL [em linha], [consultado em 20-XI-2013], disponível na internet: <URL: 

«Les principes de Dublin» - Principes conjoints ICOMOS-TICCIH pour la conservation des sites, constructions, aires et paysages du patrimoine industriel 
Adoptées par la 17e Assemblée générale de l’ICOMOS le 28 novembre 2011 [em linha], [consultado em 20-XI-2013], disponível na internet: <URL:





segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

PATRIMÓNIO INDUSTRIAL




Aproveitei hoje uma deslocação de trabalho para visitar o complexo museológico da Fábrica da Pólvora em Barcarena (Oeiras). A visita foi suscitada pelos estudos e trabalhos que temos feito e lido sobre a questão do Património Industrial. A impressão que colhi – vigorosa confirmação pela positiva do que já lera sobre aquele espaço – coincide com as apreciações que todos os colegas fazem acerca da importância desta área de Património.

De facto, é uma área em crescente afirmação. De norte a sul do país, no interior mas sobretudo no litoral, com incidência maior nos distritos de Lisboa, Porto e Aveiro, multiplicam-se os museus temáticos relacionados com a produção de materiais, de energia, de bens e de alimentos. Em comum, o facto de todos eles celebrarem o trabalho humano. Muitos exaltam a dureza do quotidiano operário, as más condições laborais, o espírito de sacrifício do trabalhador face à necessidade de garantir a subsistência própria e a dos seus. Outros esmeram-se em mostrar a diversidade dos procedimentos produtivos e a evolução que tiveram ao longo da história daquele espaço industrial. Uns e outros são indispensáveis para a compreensão da História humana.

Alguns dos trabalhos abordam estes aspectos, em sintonia com a Carta de Nizhny ( Cap. Valores do Património Industrial, ii) que se refere ao património industrial como  «…um valor social como parte do registo de vida dos homens e mulheres comuns…».
De salientar que aquele é um documento que reputo de muito importante – juntamente com os “princípios de Dublin” – pois afirma a especificidade e actualidade de uma área decisiva para a preservação da memória das comunidades humanas – mas poucas vezes foi referido nos nossos trabalhos.


Contudo, parece-me indiscutível que, apesar das limitações de espaço e da exiguidade de bibliografia facilmente consultável, todos os trabalhos reflectem a consciencialização dos autores sobre esta mais recente área de preservação do Património Cultural.

ETAPAS DA DEFESA DO PATRIMÓNIO




Quando Ramalho Ortigão escreve o seu violento libelo contra o desleixo e a inoperância dos poderes públicos face ao nosso Património, já muitos anos haviam passado sobre as primeiras medidas de defesa e preservação. Recuando ao séc. XVI, um contributo importante para a salvaguarda do património documental foi a chamada Leitura Nova de D. Manuel I em que o monarca manda tresladar para livros novos de pergaminho os documentos antigos que estavam danificados, acção que se articula com as obras de reconstrução da Torre do Tombo, na mesma época. (1)

Mais tarde encontramos o Alvará em forma de Lei de 1721, de D. João V, e cuja inspiração ou mesmo autoria, segundo Paulo O. Ramos, se pode atribuir a D. Rodrigo Anes de Sá Almeida e Meneses (1676-1733). Paulo O. Ramos faz o levantamento das medidas concretas previstas nesse documento régio, de que podemos destacar, por exemplo, a existência de uma verba para aquisição de achados ou a conservação dos monumentos.(2)

Em 1832 sai um decreto assinado por D. Pedro IV, que cria uma Comissão para a Administração dos bens pertencentes aos Conventos e mosteiros abandonados do Porto.

Em 1852-1857 é criada a Comissão Geológica do Reino, depois designada por Serviços Geológicos de Portugal.

 Quero eu dizer: em vol d’oiseau, listamos exemplos de medidas de defesa do património que permitem a Ramalho Ortigão, que as conhecia,  ajuizar da sua ineficácia ou não observância. No final do séc. XIX, apesar de um certo pioneirismo de espíritos esclarecidos em épocas anteriores, e da acção abnegada de alguns contemporâneos, a regra geral era de desleixo ou de intervenção restaurativa inadequada.

Em Portugal conviviam duas camadas culturalmente distintas: uma, maioritária, de matriz rural e arcaica, profundamente influenciada por um clero ignorante e ultramontano; e outra, minoritária, esclarecida, cosmopolita, informada e relacionada com a cultura mais avançada da Europa.

Os patrimonialistas, de que fala Ortigão, pertenciam a esta estirpe, tal como alguns raros homens do Poder, em oposição à grande massa ignorante e labrega. Também aqui, como em outros contextos, cabe a frase de Napoleão de que "os exércitos caminham à velocidade dos mais lentos".

Era contra isso que Ramalho, tal como já antes Garrett e Herculano, levantava a sua voz de indignada e impaciente ira patriótica.



 NOTAS:
(1)    Cf. LEITURA NOVA in http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4223191 [acedido em 1-XII-2013];
LAGE, Maria Otília Pereira Lage,  Abordar o Património Documental: Territórios, Práticas e Desafios, Colecção Cadernos NEPS 4, Edição:Núcleo de Estudos de População e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Guimarães/2002 [em linha], disponível em http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/792/1/caderno04.pdf,[ acedido em 1-XI-2013].

(2)    Cf. RAMOS, Paulo Oliveira, O alvará régio de 20 de Agosto de 1721 e D. Rodrigo Anes de Sá Almeida e Meneses, o 1º m[arquês de Abrantes.[em linha] in: http://historiadopatrimonio.blogspot.pt/.1-V-2007, [última consulta em 1-XII-2013].

DA CRÍTICA FEROZ À PROPOSTA CONSTRUTIVA

OS NOSSO AUTORES OITOCENTISTAS E O PATRIMÓNIO CULTURAL
por J. Moedas Duarte - Domingo, 3 Novembro 2013, 01:16



DA CRÍTICA FEROZ À PROPOSTA CONSTRUTIVA

Sobre Garrett e Herculano sublinho que poucos como eles contribuíram tanto para a derrota definitiva do Antigo Regime Absolutista. Combateram de armas na mão, sofreram o exílio, arriscaram tudo. Mas ninguém, como eles, criticou tanto o novo Regime Liberal. Não por ser liberal mas por não ter sabido incorporar a genuína tradição da cultura popular e não ter recuperado as instituições medievais que poderiam garantir a descentralização política – nomeadamente o municipalismo. Daí a crítica feroz aos “barões” (A. Garrett, Viagens na minha terra, cap. XIII) ou aos “netos de Átila”(A. Herculano, “ Monumentos Pátrios”, Opúsculos, vol. II)

O VANDALISMO CONTRA O PATRIMÓNIO E OS LIMITES DA PRESERVAÇÃO


VITOR HUGO CLAMA E DENUNCIA EM NOME DE QUÊ?



Antes de me debruçar sobre os nossos escritores oitocentistas, detenho-me ainda na figura de V. Hugo.

Há nele a postura do profeta que clama no deserto, atitude característica dos homens que estão em contradição com o seu tempo e que têm tendência para aumentar desmesuradamente os aspectos que consideram negativos na sociedade. O nosso Herculano também foi um pouco assim...
Volto a referir F. Choay que, a este propósito, avança a ideia de que em V. Hugo - como na corrente romântica de que ele foi figura exponencial - se manifesta a consciência de uma mudança histórica radical com a chegada da Revolução Industrial. Esta nova ordem económica acarreta uma "ruptura traumática do tempo" (cf  Françoise Choay, A alegoria do património, Ed. 70, Lisboa, 2013, p.144) e, perante esta passagem da "fronteira do irremediável" (idem) há que contrapor a defesa do que é perene: os monumentos que são uma herança que recebemos do passado e que devemos legar ao futuro. Há aqui a concepção da História como acumulação de legados, "produtos da inteligência humana", "obra colectiva dos nossos pais" ( cf. último parágrafo de "Guerre aux démolisseurs"),.
"É isto que deveis respeitar, ó homens do meu tempo!" - parece clamar V. Hugo do alto do seu inconformismo.




MAS... SERÁ POSSÍVEL PRESERVAR TUDO?


Michel Lacroix (O princípio de Noé ou a ética da salvaguarda, Instituto Piaget, Lisboa, 1999) fala no "regresso ao passado" como um fenómeno visível nas sociedades contemporâneas, uma reacção saudável "perante a mudança económica, social e urbana que ninguém controla" (p. 16). No fundo, algo de semelhante à reacção dos românticos do séc. XIX face às mudanças provocadas pela Revolução Industrial


No final do livro, interroga: "Que deveremos conservar?"(idem, p. 188)
Esta é a grande questão com que se defrontam todos os dias os autarcas e os cidadãos, organizados ou não em Associações de Defesa do Património. Lacroix, defensor de que "o património não pode esquecer que o desenvolvimento da pessoa é a sua verdadeira finalidade" (idem), deixa uma pergunta inquietante: "Como poderá o homem tomar consciência do que ele é se estiver soterrado debaixo de um passado integralmente conservado?" (ibidem, p. 191)
Ficamos ansiosos pela resposta. Recorrendo mais uma vez ao mito de Noé (o primeiro defensor do Património da Humanidade?...), Lacroix responde: "Deveremos então pôr na arca o que civiliza, o que torna mais humano, salvaguardando ao mesmo tempo a identidade e enraizando..." (as reticências são dele).

Parecendo uma resposta muito pequena para a enormidade da questão, ela deixa em aberto tudo o que nos compete fazer e que está contido nas reticências. É onde teremos de voltar muitas vezes.

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RESPONDENDO A UMA COLEGA:

Concordando com quase tudo o que escreveu, permita-me discordar da conclusão. Se é verdade que há muita falta de conhecimento, grande parte do que foi ( e por vezes continua a ser...) vandalismo  resulta de opções de gente que sabe muito bem o que faz. Então por que o faz?

Há muitas razões que consideram justificativas dos seus actos, de que destaco: vantagens económicas, legítimas no quadro das sociedades liberais; e razões ideológicas, que defendem o primado do presente sobre o passado em nome do progresso, do desenvolvimento, de necessidades sociais, etc.
Nesta perspectva, não basta deplorar o vandalismo, ou criticá-lo com argumentos moralistas: ao denunciá-lo, é preciso desmontar as razões.
É uma opinião, teremos de continuar a debater isto...

COMENTÁRIO AOS TEXTOS DE TRÊS PATRIMONIALISTAS DO SÉC. XIX



UM ASPECTO RELEVANTE DO LIVRO DE ALMEIDA GARRETT


Da leitura dos capítulos selecionados das Viagens na minha terra, destaco as páginas dedicadas ao Convento de S. Francisco (cap. XLI e XLII), como símbolo do vandalismo contra o património edificado.

Almeida Garrett que, tal como Herculano, foi um lutador da liberdade e, de armas na mão, contribuiu para a instauração do regime liberal, aproveita o relato do seu passeio a Santarém para zurzir impiedosamente a ignorância e o desleixo dos barões do novo regime que, entre outras coisas, desprezam e maltratam os monumentos da Santarém medieval. O Convento de S. Francisco, “um dos mais antigos e mais históricos edifícios do reino”, foi “consertado pelas Obras Públicas para servir de quartel de soldados”. E Garrett amaldiçoa as mãos que profanaram a velha urbe e que desonraram Portugal porque “destruíram os padrões da sua história”. A pungente descrição do túmulo do rei D. Fernando, profanado pela bruteza dos soldados que nele buscaram riquezas, é um dos pontos altos de todo o livro, elevando-se à altura das catilinárias de Herculano, cinco anos antes, na revista “Panorama”.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

PATRIMÓNIO INDUSTRIAL, MEMÓRIA DO TRABALHO PRODUTIVO





Uma ideia estimulante para a nossa reflexão é a que Françoise Choay propõe, ao denunciar o que classifica como a fetichização do património, expressa em duas formas contraditórias de o olhar: de um lado a perspectiva passadista e nostálgica, resistente à articulação integradora entre o antigo e o novo; do outro a visão progressista que reduz o património preservado a objecto de museu. (cf. CHOAY, Françoise, 2009).

A contradição radica na própria ambiguidade do conceito de Património que se alargou exponencialmente a todas as áreas da actividade humana. (cf. POULOT, Dominique, 2001). Daí a necessidade de reafirmar a abordagem histórico-sociológica que articule, simultaneamente, os valores do tempo longo (dimensão maior da História) e do tempo curto (vivências quotidianas), de modo a que o conceito de Património reassuma a dimensão de portador de consciência histórica e de memória das comunidades humanas.

IGREJA DOS CLÉRIGOS, NO PORTO

Quando penso no Barroco surge-me sempre a imagem da Igreja dos Clérigos, no Porto, com a sua torre.

É um verdadeiro monumento: ícone da cidade, é também a manifestação brilhante da maturidade artística de Nicolau Nasoni. Veja-se: a localização num sítio dominante, a originalíssima planta do templo, a dificílima arte de articular toda a panóplia de motivos decorativos na opulenta fachada, a capacidade de integrar a torre no edifício, dando-lhe simultaneamente um estatuto autónomo








O interior responde da mesma forma ao desafio da concepção: equilíbrio e elegância num espaço de fulgores decorativos.





O verdadeiro e genuíno espírito do barroco encarna naquela construção magnífica!





Ir ao Porto é entrar nos Clérigos e, eventualmente, subir lá acima, à varanda circular da torre, para sentir a respiração da cidade.

(Fotos da Internet)

ARTE TOTAL PARA UMA VISÃO GLOBAL DA VIDA






A expressão de Oliveira Martins que se refere ao reinado de D. João V como “entusiasmo
desvairado dessa ópera ao divino”, prefigura, avant la lettre, a perspectiva de análise que hoje
designamos por “arte total”. De facto, que outra manifestação artística tem um carácter tão global
como a ópera? Ela é um poderoso estimulante sensorial, através dos sons – canto e música -, e
das imagens – cenografia e salas de espectáculo. Porém, a metáfora do historiador oitocentista
tem um alcance mais vasto pois ela aplica-se à envolvente social que rodeou a corte do rei
magnânimo: verdadeira sociedade do espectáculo em que, desde o cerimonial das procissões aos
solenes Te Deum, da “montanha de pedra” de Mafra aos banquetes de inúmeros serviços, da
Capela de S. João Baptista de S. Roque às igrejas paroquiais de todo o país, tudo concorria para
produzir o efeito de manifestação do poder régio através do luxo e do espavento.

O BARROCO NÃO CABE NA CRONOLOGIA



Se é verdade que o conceito atravessa a História da Arte – a um período artístico de predomínio  de despojamento, de simplicidade de formas e de processos, sucede sempre outro de complexidade e decorativismo – então não é possível fixar balizas cronológicas em que caiba o conceito de barroco, ele é um fenómeno histórico-cultural recorrente. Será a isto que G. Deleuze se refere na abordagem filosófica ao conceito de barroco a partir da noção de “dobra” ou “prega”. (cf. “Barroco”, Dicionário de estética, dir. Gianni Carchia e Paolo D’Angelo, Ed. 70, Lisboa, 2003).
Contudo, a cultura ocidental considera que o conceito de barroco é operativamente necessário para o estudo da evolução da arquitectura e das artes decorativas a ela associadas – revestimentos, escultura, pintura - e é nessa perspectiva que se procuram pontos de referência cronológica. Em Portugal aponta-se o final do séc. XVII até à penúltima década do séc. XVIII.  Mas é uma operação difícil, sempre polémica, dado que não há simultaneidade de manifestações do barroco nem quanto aos lugares nem quanto aos tempos. Se algures surgiu mais cedo, noutro lado prolongou-se por mais tempo. Se aqui coexistiu com o maneirismo, ali  conviveu com o neoclassicismo. Seja qual for a baliza marcada, sempre se encontrarão excepções. Veja-se o caso da chamada “Encomenda prodigiosa” – a capela de S. João Baptista na Igreja de S. Roque, em que coexistem, em simbiose perfeita, a tendência decorativa barroca com o desenho neoclássico da estrutura.
De facto, o barroco parece sobrar sempre para fora de todas as linhas de demarcação…

EM TORNO DO BARROCO






BARROCO: O CONCEITO

Para o homem contemporâneo, é uma palavra carregada de ambiguidade, que pode ter valor de substantivo ou de adjectivo. O adjectivo com o significado de excessivo, opulento, ligado à ideia de quantidade, de sobreposição. O substantivo apontando para um estilo em que a forma se sobrepõe à função. Visualmente associa-se o conceito de barroco à variedade de formas, ao capricho artístico.
Estas acepções padecem de falta de rigor: ou porque não têm em conta os campos de aplicação (está-se a falar de arquitectura? De artes decorativas? De literatura? etc…) ou o tempo histórico em que se manifestam. Ignoram, igualmente, que não há um conceito de “puro barroco” e que na chamada época barroca sempre conviveram realidades diversas que se autocontaminavam e, assim, se enriqueciam.

CARTA AO MEU PAI QUE NÃO QUER QUE EU SEJA ARQUEÓLOGO


Olá pai

Separámo-nos ontem, amuados. Hoje, nem pensar falar contigo pois sei que te vais exaltar outra vez. Ainda tenho nos ouvidos a tua fúria: “Não contes comigo para te pagar um curso que te vai levar directamente para o desemprego! Não contes comigo!!”.
Acredito que queres o meu bem, tens sido um pai muito fixe, mas acho que ainda não aceitaste a ideia de que eu tenho 18 anos. Já tenho direito a votar, ok?
Então pensei em escrever-te uma carta. Se calhar vais estranhar. Acho que nunca te escrevi. Só bilhetes de recados. Espero que consigas ler com calma.
Porque é que eu quero ser arqueólogo? Ontem fizeste-me essa pergunta, a gozar, e disseste que eu me queria armar em Indiana Jones. Estás enganado, pai. Vou tentar explicar-te a minha ideia, pode ser que te consiga fazer mudar de opinião.

HISTÓRIA DA ARQUEOLOGIA PRÉ-HISTÓRICA PORTUGUESA


FIGURAS E ESPAÇOS MARCANTES
DA HISTÓRIA DA ARQUEOLOGIA PRÉ-HISTÓRICA PORTUGUESA
Breve síntese


Na impossibilidade de resumir exaustivamente a já longa e rica História da Arqueologia Portuguesa, optei por organizar os meus apontamentos em três capítulos: Figuras, Espaços Arqueológicos e Espaços Institucionais.

FIGURAS (Ressalta uma característica geral: são da área da Geologia)

Carlos Ribeiro: juntamente com Pereira da Costa e Nery Delgado, é uma das figuras marcantes da Segunda Comissão Geológica (1857). Principais trabalhos de prospecção e escavação: 1863, Concheiros de Muge; 1870: tese do Homem Terciário Português, a partir de estratos geológicos da região da Ota (Alenquer), num dos mais fecundos problemas científicos da nossa arqueologia, retomado por Nery Delgado e resolvido no séc. XX por Henri Breuil e Georges Zbyszewski; 1878: povoado pré-histórico de Leceia (Oeiras); catalisador da realização em Lisboa do IX Congresso Internacional de Arq. e Antrop. Pré-Hist, em 1880.
Nery Delgado: Gruta da Casa da Moura (Óbidos,1865) e Gruta da Furninha (Peniche, 1880): é pioneiro nas práticas científicas do uso da quadrícula no espaço escavado, definição de níveis estratigráficos das jazidas e sistematização tipológica dos materiais.
Pereira da Costa: primeiros estudos do Neolítico em Portugal em “Descrição de alguns dolmens ou antas em Portugal” (1868).
Estácio da Veiga: o primeiro arqueólogo profissional em Portugal, deixa uma obra monumental em 4 vols: “Antiguidades Monumentais do Algarve”.
J. Leite de Vasconcelos: 1º Director do Museu Ethnológico Português (1893); promotor de recolha nacional de vestígios do homem antigo em Portugal; fundador da importante revista “O Archeólogo Portuguez”; autor do livro seminal “Religiões da Lusitânia”.
Mendes Correia: dinamizador da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia; novas investigações nos Concheiros de Muge; lança a hipótese da vinda de populações do Norte de África para a P. Ibérica, que estariam na origem do Homo Faber Taganus.
Manuel Heleno: sucessor de L. de Vasconcelos no Museu Ethnológico; estudos do megalitismo português, de que provou a originalidade cultural; estabelecimento da sequência contínua do Paleolítico Superior; revista Ethnos; intenso labor arqueológico.
Abel Viana: colabora intensamente com Octávio da Veiga Ferreira; esforçado e auto-didacta, evidencia-se em múltiplos trabalhos de que se destacam os realizados em Ourique (necrópole de Atalaia e Castro da Srª da Cola).
G. Zbyszewski, (com H. Breuil em 1941 e 42): protagoniza o ressurgimento da Comissão Geológica de Portugal. Dá importante impulso ao estudo do Paleolítico e sua relação com a Geologia do Quaternário. Estudo das Praias Quaternárias da Estremadura portuguesa e terraços fluviais do médio e baixo Tejo.
O. Veiga Ferreira: um dos que mais marcou o séc. XX da arqueologia portuguesa. Notável labor em muitas áreas e épocas, destacam-se: estudos do Paleolítico Inferior e Médio; necrópoles megalíticas das Caldas de Monchique; os tholos do Baixo Alentejo, que explora, permitem-lhe sustentar internacionalmente a teoria da progressão de sul para norte dos prospectores e metalurgistas do cobre e estabelecer a autonomia conceptual da Idade do Cobre; prossegue a exploração dos Concheiros de Muge (de 1952 a 66). Primeiro doutorado num tema da Pré-História com o já clássico “La Culture du Vase Campaniforme au Portugal (Sorbonne, 1965).
Casal alemão Leisner (Vera e Georg): levantamentos geológicos e notáveis estudos do megalitismo português.
Fernando Almeida e Farinha dos Santos: docentes contemporâneos na década de 60 na Fac. Letras de Lisboa, privilegiaram o contacto directo com os sítios e os materiais arqueológicos. O primeiro, sucessor de M. Heleno no Museu de Belém, evidenciou o período visigótico; o segundo, regendo a disciplina inovadora da Pré-História, suscitou seguidores, além da notável investigação da Gruta do Escoural.

VALORES DURÁVEIS VS VALORES DE MERCADO



 Continuava eu de volta da questão dos “juízo de valor” ou “avaliação” (cf. WEBER, Max. “O sentido da «neutralidade axiológica» nas ciências sociológicas e económicas”, in: WEBER, Max, Sobre a teoria das ciências sociais, editorial Presença, Lisboa, 1974), conceitos necessários para a abordagem do trabalho do historiador – ou, no caso do ensaio referido, do professor de ciências sociais – quando me abeirei do texto de Vitor Serrão, “Mundo da arte globalizado e dimensões éticas”.
É um texto que aponta sem ambiguidades para a afirmação de valores duráveis, defendendo que a História da Arte pode e deve ser uma barreira contra a usura consumista que faz da obra de arte (OA) uma mercadoria transacionável como outra qualquer. Socorre-se de doutrinas que já vêm do Renascimento e que apontam para a Arte como instância de afirmação humanista e de promoção de valores transcendentes. Aplicada ao nosso tempo, esta perspectiva atribui ao Historiador-Crítico de Arte a capacidade para “analisar os porquês das estratégias comunicacionais que perduram com as obras de arte”, em linhas de investigação que devem escorar-se em princípios teóricos e metodológicos estruturados, numa aproximação aberta aos significados das OA, “numa postura ética irrepreensível”. (No texto são várias as insistências na ética comportamental de todos os agentes envolvidos nas questões da arte).
Há neste discurso um olhar crítico sobre o consumismo que também chegou ao mundo das artes, o qual deve ser contrariado pelos que estão envolvidos na História-Crítica da arte, no sentido da afirmação dos valores da cidadania. Invocando Walter Benjamin que propõe “novos modos de analisar a arte enquanto processo transformador” – a partir de conceitos como “aura” e “imagem dialética da OA” - , V. Serrão mostra como podemos entrever as múltiplas capacidades de análise que a História de Arte permite, ao mesmo tempo que afirma valores perduráveis que se sobrepõem às mutáveis circunstâncias do tempo histórico de curta duração.

O CIENTISTA SOCIAL E OS JUÍZOS DE VALOR



 Já depois de ter escrito o apontamento anterior, reli um texto que tinha aqui por casa, de Max Weber ( Três tipos de poder e outros escritos, Lisboa, ed. Tribuna da História, 2005, p.177) e encontrei uma formulação que me fez pensar. Textualmente:
"Quem pretender fazer história da arte, inclusive no sentido puramente empírico, deve possuir a capacidade de 'compreender ' (sic) a produção artística; mas tal habilidade é inconcebível sem a capacidade de juízo estético, isto é, sem a capacidade (sic) de apreciação."
E no parágrafo seguinte deixa a interrogação:
"(...) em que sentido se pode falar de 'progresso' (sic) na história da arte, fora (sic) de toda a apreciação estética?"
De facto... se eu reflectir no caso, terei de rever a noção de neutralidade que seria desejável no historiador de arte. Continuo a pensar que ela é desejável, mas dentro de que limites? Porque, de facto, há limites: o historiador está dentro da História dos homens, sendo ele um homem e não um marciano. Tem uma formação académica - ou outra... - e uma formatação ideológica que será tanto mais de ter em conta quanto dela não tenha consciência.
A escolha do campo de observação para o seu estudo já parte de um juízo de valor: vou estudar isto e não aquilo, porque... Então, a garantia de seriedade científica do seu estudo deve radicar na clareza com que explica a escolha/problema, no enunciado das metodologias adoptadas e na referência ao seu ponto de vista

CIENTISTA DE LABORATÓRIO OU CIENTISTA SOCIAL?




 Estou a aprender a lidar com a obra de arte (OA) como fonte para a História da Arte em particular e para a História em geral. Nesta aprendizagem devo abandonar o meu lugar de espectador/fruidor e assumir o de observador qualificado, munindo-me de procedimentos metodológicos apropriados para desocultar na obra em apreço todas as informações possíveis que me permitam resolver o problema que me levou à sua observação. 
Não me parece que o meu trabalho deva ser o de especialista técnico: dissecar uma pintura em todos os seus aspectos de produção; examinar um edifício com os  instrumentos de um construtor civil ou de um arquitecto; estudar uma escultura de madeira ou uma talha  com os olhos de um entalhador ou de um mestre escultor.
Como Historiador, ou zelador do Património, penso que devo procurar e utilizar todos os dados disponíveis que me ajudem a ler a OA em todos os seus pormenores, a começar pelos dados facultados por esses especialistas técnicos e constantes dos seus relatórios. 
Mas de mim, cientista social, pede-se muito mais: que saiba "ultrapassar o campo meramente formalista para abraçar outros caminhos de indagação" (cf. Metodologia do Trabalho Científico, Carla A. Gonçalves, UAb, 2012, p.82).
Esta especificidade do cientista social é que me permite um olhar crítico e racional sobre a OA, menos preocupado com  juízos de valor estético e mais centrado na compreensão das  potencialidades significativas da sua existência enquanto produto de uma época.

NÃO SEJAS CRENTE



Emblema 16 de Andrea Alciato. Ne credas. Edição de 1591, Leiden. Plantin.

Imagem na portada da Unidade Curricular METODOLOGIA DO TRABALHO CIENTÍFICO. Desde o início que ela me interroga e avisa: "Ne credas". Aquela mão com um olho tem o mesmo efeito que o olho que via pintado na proa de alguns barcos na Nazaré, era eu miúdo. Meu pai advertia-me: "É o olho de Deus, ele vê tudo o que fazemos. Os pescadores querem dizer a Deus que olhe por eles quando andam no mar..." E eu ficava temeroso , como Adão que quis furtar-se ao olhar de Deus,depois do pecado...Uma breve incursão pela net, em busca de Andreia Alciato, deu-me a chave: "Ne credas", isto é, não caias na crendice, não te deixes convencer facilmente, interroga, investiga. Não sejas presa fácil dos dogmas aparentes.Parece-me um conselho oportuno e pode ser adoptado como lema de conduta nesta actividade de estudante. Ver AQUI

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

INTERVENÇÃO NA ÁREA DA "ARQUEOLOGIA E SOCIEDADE"


AS CABECEIRAS DE SEPULTURA DO TURCIFAL

Há uns meses atrás, numa visita ao Turcifal, deparámos casualmente com um conjunto de 5 estelas funerárias incrustadas num muro do adro da Igreja.





O Turcifal é uma das mais antigas povoações do concelho de Torres Vedras, cujo topónimo é citado em documentos dos séc. XII e XIII ( TORRES VEDRAS, A VILA E O TERMO NOS FINAIS DA IDADE MÉDIA, Ana Maria Rodrigues, 1995). Possui uma imponente Igreja, classificada como Monumento de Interesse Público, reconstrução setecentista do templo medieval. Em seu redor, como era usual, situava-se o cemitério. Naturalmente, as estelas que ali encontrámos eram dessa necrópole.  
Tirámos algumas fotos e publicámos uma nota no blogue da Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras (1) em que considerávamos polémica a colocação daquelas cabeceiras de sepultura: «Estas estelas funerárias são um testemunho genuíno que vem do fundo dos séculos e nos traz a memória de quem ali viveu e foi sepultado. Ao contrário das peças de Museu, estas cabeceiras estavam in situ, e era aí que deveriam ser mantidas. Como memória e testemunho do passado.
O adro, que foi objecto de obras profundas terminadas em 2007 - como se lê na placa comemorativa - só teria a ganhar se nele tivesse sido preservado um lugar, talvez junto de uma das paredes da Igreja, em que estas cabeceiras fossem alinhadas, com um pequeno dístico a lembrar aos homens de hoje a existência dos antepassados. O que nos parece inaceitável é fazer delas objectos de decoração do muro do adro.»
Essa nota originou dois comentários que considerámos estimulantes para a abordagem da questão. Enquanto o primeiro expressava alguma surpresa pelo caso, o segundo punha questões pertinentes. Citamos:
 «No meu entender, não se trata de atentado nenhum. Trata-se, isso sim, de uma colocação correcta, tanto quanto foi possível realizar, ao tempo, das pedras que indicam as campas instaladas. Outro assunto é saber da sua verdadeira dimensão geográfica e da "importância relativa" dos sepultados nestas áreas. No decorrer dos séculos, é provável que tenham sido deslocadas do sítio exacto das sepulturas, é verdade, mas a sua função e proximidade continuam a testemunhar o culto medievo dos mortos. Além de que, no limite, esse facto, o da eventual deslocação, já fazer parte da História. Cordialmente. (Autor identificado)»
Esta ocorrência levou-nos a procurar mais informação, quer sobre os materiais arqueológicos quer sobre as obras do adro do Turcifal. Falámos com o Presidente da Junta, o Pároco, o autor do comentário (pessoa culta, com curso superior, como viemos a saber) e a Técnica Superior do “Museu Municipal Leonel Trindade de Torres Vedras”. Anotámos:
1.       A Junta de Freguesia actual promoveu as obras de 2007, com o apoio da Câmara Municipal, e nelas foram encontradas outas cabeceiras de sepultura, posteriormente depositadas no Museu Municipal. Porém, aquelas que estão no muro são provenientes de obras anteriores, realizadas em 1984. Quem ali as colocou terá pensado que essa seria a melhor forma de as preservar, mantendo-as visíveis. O Presidente da Junta, Filipe Santos, manifestou total abertura para debater o assunto e encontrar uma solução que venha a ser considerada mais correcta. Mas observou que qualquer alteração ao que está feito deve passar por uma informação detalhada à população pois esta mostra-se sempre ciosa das suas antiguidades.
2.       O Pároco, P. Paulo Antunes, deu-nos conhecimento de outras estelas, que se encontram numa arrecadação da Igreja. Também se declarou favorável a uma solução mais elaborada da questão.
3.       O autor do comentário (Sr. A.M.) mostrou-se receptivo à discussão sobre o assunto, que considerou pertinente. Aceitou a ideia de que a colocação no muro pode não ser a melhor mas há que a respeitar e uma possível alteração terá de ser bem pensada.
4.       A Técnica Superior do Museu, Drª Isabel de Luna, informou-nos que em 2005 participou no VIII Congresso Internacional de Estelas Funerárias, no qual apresentou, em coautoria com Guilherme Cardoso, uma comunicação intitulada “Novas cabeceiras de sepultura do concelho de Torres Vedras”. Nessa Comunicação, - publicada em O Arqueólogo Português, 3 (suplemento), 2006 (2) – faz-se referência à colecção existente no Museu Municipal de Torres Vedras, «(…)uma das maiores e melhores colecções de cabeceiras de sepultura do país, constituída por 101 exemplares que, juntamente com 11 estelas dispersas pelo concelho, foram inventariadas por José Beleza Moreira, em 1982.» (3) e são inventariadas mais 45 estelas funerárias, 23 das quais encontradas no Turcifal. Verifica-se, assim que esta aldeia é, de longe, aquela em que foram encontradas mais peças. Curiosamente, no inventário de Beleza Moreira não havia referências ao Turcifal.
5.       De referir ainda que nesse Congresso houve mais uma comunicação relativa a Torres Vedras em que foram descritas mais 16 estelas funerárias provenientes do Castelo daquela cidade.(4)

Destas notas julgamos ser lícito tirar algumas conclusões. A saber:
a)       Torres Vedras reúne um espólio de 162 estelas funerárias da ápoca medieval e início da época moderna. Da leitura dos textos referidos retira-se uma verificação: a maioria deste espólio está guardado, quer no Museu quer noutros locais  como sejam Igrejas e entidades particulares. Só uma pequena amostra se encontra exposta e dessa, só uma parte ínfima está nos locais de origem.
b)       Estas peças não pode ser integralmente expostas, quer devido ao seu precário estado de conservação quer ao reduzido interesse público, dado que são de tipologias repetidas. Mas não deixa de ser intrigante que o destino de tantas dezenas destes testemunhos arqueológicos seja o armazém do Museu ou a arrecadação de uma igreja.
c)        Impõe-se, por isso, a reconsideração sobre o destino a dar-lhes, sobretudo tendo em conta que actualmente há um maior interesse pelos vestígios históricos por parte das populações. Isso mesmo verificámos nas visitas que fizemos ao Turcifal.
d)       A exposição de uma parte destas peças deve ser acompanhada de uma acção permanente de informação e sensibilização para o tempo histórico, o que permitirá uma maior consciencialização das comunidades locais quanto ao seu passado e ao reforço dos seus laços de identidade
e)       Sendo o Turcifal a povoação concelhia que possui maior número de cabeceiras de sepultura, propomos que se estude uma forma de expor ao público as mais significativas e que essa exposição, montada na própria vila - num anexo da Igreja ou no adro -  seja acompanhada de informação fixa e volante para que possa desempenhar o papel pedagógico que lhe cabe. Para concretizar essa exposição propomos que se crie uma Comissão na qual estarão representadas as seguintes entidades: Junta de Freguesia, Paróquia, Associação do Património de Torres Vedras, Museu Municipal e um membro da população residente, convidado pela Junta de Freguesia e pelo Pároco.
A atividade de uma Associação de Defesa e Divulgação do Património faz-se muitas vezes através de acontecimentos aparentemente fortuitos como este que aqui relatámos. A partir deles é possível encontrar formas práticas de abordar a relação entre a arqueologia e a sociedade, uma questão sempre pertinente para quem trabalha nesta área pois nela se cruzam a consciência histórica, o gosto pela preservação do Património e a participação das populações na gestão dos seus bens culturais.
Torres Vedras, 18 de Novembro de 2013
Joaquim Moedas Duarte

NOTAS
(2)      LUNA, Isabel; CARDOSO, Guilherme – “Novas cabeceiras de sepultura medievais do concelho de Torres Vedras”, Actas do VIII Congresso Internacional de Estelas Funerárias, O Arqueólogo Português, Suplemento, 3, Lisboa, p. 423-477.
(3)      MOREIRA, José Beleza, Catálogo das cabeceiras de sepultura do concelho de Torres Vedras, Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras, Torres Vedras, 1982, 67 p.
(4)      CUNHA, Carlos e AMARO, Clementino – “Castelo de Torres Vedras – cabeceiras de sepultura medievais (1984-2004), Actas do VIII Congresso Internacional de Estelas Funerárias, O Arqueólogo Português, Suplemento, 3, Lisboa, p. 253-265.