terça-feira, 7 de junho de 2016

TÓPICOS SOBRE O CONCEITO DE MEMÓRIA



DA MEMÓRIA INDIVIDUAL À MEMÓRIA COLECTIVA E À MEMÓRIA SOCIAL

Uma primeira verificação: a memória é uma faculdade humana com duas vertentes que se interpenetram: a individual e a social. Numa e noutra ela é o cimento que liga os tijolos da construção. Sem memória não há consciência individual nem sentido grupal societário. Mas enquanto a memória individual depende, em primeira instância, da condição orgânica (cérebro e conexões nervosas) sobre a qual se sedimentam as vivências colectivas (família, tribo, etnia, nação…), a memória social depende sobretudo da coesão do grupo que lhe é conferida pela acumulação dos registos, orais ou escritos e pela hierarquização das relações entre os seus elementos (organização do Poder).

O homem, desprovido de memória orgânica, está à mercê do acaso. Mas, confinado a ela, pouco mais é do que um organismo vivo que se esgota nas tarefas da sobrevivência. É a vivência grupal em que acumula experiências através da vida de relação que lhe confere uma dimensão supra-individual. A justaposição de experiências individuais é a base da cultura, que se estrutura ao longo do tempo através da sedimentação das memórias individuais que a sucessão das gerações transforma em memória colectiva. Dito de outro modo: a cultura é a expressão organizada das memórias individuais transformadas ao longo do tempo em memória colectiva, constituindo um «padrão de significados transmitido historicamente...»[1].

É a regularidade e persistência das manifestações culturais e o seu reconhecimento como património por um grupo social que confere à memória colectiva o carácter de memória social.





[1] Cf. Pedro Cardim in: A história: entre memória e invenção. Cursos da Arrábida, nº 03, Comissão Nacional para a comemoração dos descobrimentos portugueses e Publicações Europa-América, Mem Martins, 1998, p. 15

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     MEMÓRIA E HISTÓRIA


            Parto da leitura dos dois estimulantes textos que acabo de ler - da Clotilde e da Vanda - que tocam em dois aspectos sensíveis do fenómeno da memória social: por um lado o recurso a um património milenar como forma de esconjurar os demónios do presente, no caso do Cambodja; por outro a invenção de uma tradição para inculcar um ponto de vista ideológico, bem descrito no texto sobre o concurso para escolher “a aldeia mais portuguesa de Portugal”.

           Numa leitura superficial verificamos que, no primeiro caso, a recuperação do património tem uma dimensão redentora para a memória colectiva; enquanto no segundo há uma manipulação deletéria, executada em nome de controversos valores nacionalistas – o que nos sugere uma interrogação: há boas e más manipulações da memória colectiva?

          A questão não é puramente académica nem deve ser colocada no campo da ética política, como bem mostrou Eric Hobsbawm[1]. De facto, todas as sociedades manipulam as suas memórias quando reinterpretam e reescrevem o seu passado, pois a historiografia não é uma descrição fiel desse passado mas um olhar sobre ele que tem, como pano de fundo, a busca e a afirmação de uma identidade. E como bem diz a colega Clotilde, «a identidade não é estável; é mutável, provisória e subjectiva, sendo reconstruída ao longo dos tempos».

          Aqui radica o problema da afirmação da História como disciplina científica - que tivemos ocasião de estudar no anterior semestre, -  exactamente para que ela não seja um instrumento ao serviço de alguém mas um poderoso veículo de inscrição identitária das sociedades.  

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MEMÓRIA E IDENTIDADE

           A palavra memória tem repercussões muito fortes na memória social. Desde o “fazei isto em memória de mim” – cerne da vivência religiosa dos crentes católicos – até ao “em memória de…” das inscrições tumulares, o apelo toca nos mais fundos sentimentos da nossa vida, seja no aspecto individual como no social. A referência à memória tem ressonâncias afectivas. Apela à eternização da relação, ao prolongamento no tempo futuro de um estado de espírito vivido no presente. É a memória que permite a continuidade da corrente de consciência. Apagá-la significa provocar o curto-circuito e a escuridão identitária.

          Por isso a perda total da memória no ser humano é o estado mais próximo da morte física. É raro acontecer porque «a memória não é um sistema único e unitário» [1]. Contudo, a nossa experiência pessoal ilustra a tragédia da amnésia, mesmo que parcial, quando a vemos num familiar.[2] Ele deixa de ser quem era, torna-se um estranho para ele e para nós, experiência dramática para quem a vive. Torna evidente que a memória individual, como função e processo mental, é a base da identidade pessoal. Perder a memória é perder a identidade, é dissolver-se no inominado, é deixar de ser.




[1] Amâncio da Costa Pinto – Psicologia Geral. Lisboa: UAb, 2001. p. 110.
[2] Permita-se-me uma referência pessoal: assisti, angustiado e impotente, à morte prematura de minha mãe quando ela começou a perder a memória. A morte física viria a ocorrer alguns anos depois. Durante cerca de três anos ela existia mas já não era.


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QUADROS SOCIAIS DA MEMÓRIA

            «Nunca nos lembramos sozinhos: pode-se resumir desta forma a tese de Halbwachs. Um indivíduo volta-se sempre para o passado, o seu ou o do grupo a que pertence, socorrendo-se mais ou menos dos quadros sociais em que ele vive.» Esta formulação de Joël Candau[1] resume o essencial da tese de Halbwachs. A memória é uma faculdade mental do indivíduo mas ela exerce-se dentro de quadros sociais que estão para além dele, que o envolvem. O principal é a linguagem mas há outros como as tradições, as relações sociais (parentesco, vizinhança...), etc.
           J. Candau põe sérias reservas ao conceito de memória colectiva usado por Halbwachs, considerando-o de conteúdo vago mas acaba por reconhecer que ele tem utilidade prática «porque não há outra forma de designar algumas formas de consciência do passado (...) aparentemente partilhadas por um conjunto de indivíduos.»[2] (a tradução é infeliz nesta repetição de formas...). Mais convincente será, no dizer de J. Candau, a noção de quadros sociais da memória[3], isto é, o conjunto de constrangimentos culturais que enformam a memória individual dos elementos de um determinado grupo social. 




[1] Joël Candau – Antropologia da memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2013, p. 84.
[2] Op. cit. p. 88.
[3] Idem, p. 93.


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MEMÓRIA COLECTIVA/ MEMÓRIA SOCIAL

                Estas são noções que encontramos em muitos textos com uma carga semântica equivalente. A primeira criou raízes com as obras de M. Halbwachs e tem maior uso no mundo francófono; a segunda está mais ligada ao universo anglófono[1]. Contudo, parece-nos que, nas margens da semelhança semântica há zonas autónomas que talvez possam ser consideradas.
Já aqui escrevemos que «é a regularidade e persistência das manifestações culturais e o seu reconhecimento como património por um grupo social que confere à memória colectiva o carácter de memória social.»

             Tentando ser mais explícito, propomos que o conceito de memória colectiva se aplique às formas indiferenciadas e inorgânicas com que o passado se apresenta à memória de um grupo humano: os mitos, as narrações fabulosas, as gestas heroicas, a recordação de factos transfigurada por narrativas mais ou menos fantasiosas. Essa amálgama que se esbate num passado comum constituirá a base de uma memória colectiva. Terá sido este o entendimento de Jacques Le Goff («preferir-se-á reservar a designação de memória colectiva para os povos sem escrita»[2]).
            Por outro lado, propomos que o conceito de memória social se aplique às formas organizadas de abordar o passado, isto é, à historiografia, - na perspectiva da função social da história que Jacques Le Goff cita a partir de Lucien Febvre e Halbwachs[3], - bem como ao reconhecimento/apropriação de sinais específicos (monumentos, património material) e de manifestações culturais (património imaterial) susceptíveis de conferir consciência identitária a um determinado grupo humano.

            É uma tentativa de clarificação conceptual. Será útil?




[1] Maria Isabel João – Memória, História e Educação in: NW noroeste, revista de história, Universidade do Minho, 1, 2005, p. 85.
[2] Jacques Le Goff – Memória, in Enciclopédia Einaudi, vol 1, Memória-História, Lisboa, IN-CM, 1984, p. 14
[3] Idem, História, p.164.

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CONSCIÊNCIA IDENTITÁRIA

A sociedade é constituída por uma gama infinita de indivíduos que podem agrupar-se de acordo com essas categorias. Daí me parecerem pouco rigorosas - e até abusivas - expressões como "cultura portuguesa" ou (pior ainda!...), "alma portuguesa", "raça portuguesa", etc.
A experiência mostra-nos que a consciência identitária tem raízes muito diversas que podem ir da etnia ao escalão etário, do lugar de habitação (os bairros...) ao grau de escolaridade, da origem de classe à prática de uma religião, de um desporto, de uma opção de vida.
         Contudo, há categorias gerais de cidadania que parecem sobrepor-se aos particularismos identitários. Refiro-me, por exemplo, à noção de nacionalidade (português vs. espanhol...) ou ao uso de uma Língua comum. 
Os diversos graus de abragência destas categorias dão origem a várias formas de identidade o que faz com que um indivíduo as acumule na sua caracterização: português, jovem, transmontano, licenciado em X, praticante de aeromodelismo, etc...

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CONSCIÊNCIA IDENTITÁRIA E MEMÓRIA

Eu não sou eu nem sou o outro, 
Sou qualquer coisa de intermédio: 
    Pilar da ponte de tédio 
    Que vai de mim para o Outro. 

(Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro')


              Esta célebre quadra de Mário de Sá-Carneiro ilustra bem o desajustamento identitário de alguém que não tem referências estáveis em que se ancore a personalidade. Dado o tom confessional do poema, é-nos lícito supor que ele reflecte os condicionalismos da vida privada do poeta, que João Gaspar Simões elucidou na Vida e Obra de Fernando Pessoa, (Pessoa, o grande amigo e confidente): órfão de mãe aos dois anos, criado por amas a quem um pai ausente deixava quantias avultadas para as despesas de educação, Mário de Sá Carneiro cresceu sem modelos nem constrangimentos. 

             De certo modo, este é um caso exemplar que nos pode ajudar a definir quais as condições necessárias para a afirmação da identidade individual e para a representação que sobre ela tem o sujeito: crescimento acompanhado pela proximidade de modelos adultos numa relação afectuosa; definição de regras de conduta, sujeitas a limitações impostas/negociadas por e com esses modelos; estabilidade económica sem excesso de meios, para não induzir a falsa ideia de que tudo é devido e permitido. 
Este exemplo, oportunamente trazido pelo Manuel L., lembrou-me o caso de Teixeira de Pascoaes que, no Livro de Memórias, rememora o seu passado e encontra nele a base da vida presente:

           «A vida é memória, colecção de imagens fabulosas e um olhar desolado que as contempla; um olhar que vem através da noite do infinito e brilha, dentro em nós, como a própria luz da consciência.»[1]

          Isto é: a consciência é a representação da identidade e radica na memória do vivido em relação com os outros. Sem o acervo da experiência não há memória e sem memória o sujeito é um fantasma a caminho da auto-aniquilação – como Mário de Sá-Carneiro que se suicidou com 26 anos.




[1] Teixeira de Pascoaes – Livro de memórias. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, p. 46

COMEMORAÇÃO, MEMÓRIA E HISTÓRIA

                                                                               



Quarenta anos após o 25 de Abril de 74, qual o significado da comemoração daquele acontecimento? Propomo-nos reflectir sobre as diferentes percepções do tempo histórico e procurar entender as teias em que se cruzam as memórias e a história na comemoração daquela data. E também reconhecer o papel do ensino na formação de uma memória histórica que corrija as limitações e as manipulações da memória colectiva.


Neste Abril de 2014, em revistas, jornais, reportagens na televisão e na rádio, milhares de páginas foram escritas e imagens divulgadas, mostrando à saciedade que «as memórias não nos transmitem a realidade, mas a visão, a imagem, a representação que os seres humanos têm da realidade»[1] .
Não há um 25 de Abril, há múltiplos. E se a memória colectiva é o resultado de um jogo oculto entre lembrança e esquecimento[2], é bem visível nesta multiplicidade que os mecanismos desse jogo variam de acordo com factores subjectivos muito diversos, consoante os contextos sócio-políticos em que se moveram os actores daquele acontecimento histórico - o que torna muito problemática a abordagem tendencialmente objectiva do historiador, mais ainda se ele mesmo foi actor. [3] Veja-se, a título de exemplo, o livro de Raquel Varela, HISTÓRIA DO POVO NA REVOLUÇÃO PORTUGUESA 1974/75, Bertrand Editora, Lisboa, 2014, recentemente publicado e desde logo objecto de polémica pelo olhar inovador e, de certo modo, questionador de uma certa historiografia dominante.
Contudo, paralelamente ao esforço dos historiadores para estabelecerem uma leitura científica do nosso passado recente, mantêm-se activas as fontes da memória colectiva, seja a de cariz favorável ao 25 de Abril seja a de sinal contrário, como é o caso da assunção clara das memórias de alguns anti-abrilistas militantes, na revista do semanário Expresso 25 DE ABRIL 40 ANOS. Esta diversidade sublinha quanto é ilusório um consenso sobre aquela data, como se confirmou com as duas comemorações antagónicas na Assembleia da República e no Largo do Carmo e como – apesar dos apelos do Presidente da República, é impraticável o entendimento entre os partidos políticos acerca dos problemas essenciais do país.[4]

A comemoração dos 40 anos do 25 de Abril  inscreve-se na tendência comemoracionista característica das sociedades contemporâneas, fenómeno bem estudado por Fernando Catroga e Maria Isabel João.[5] O acto de comemorar reveste sempre a intenção de perpetuar algo, opondo à inexorável marcha do tempo a barreira da rememoração. É uma forma de prevenir o esquecimento e de garantir a presença do passado junto das franjas populacionais mais jovens que, por não terem vivenciado os acontecimentos considerados dignos de comemoração, têm tendência para os desvalorizar. Contudo, estas comemorações são bem diversas das que o Estado Novo obsessivamente promoveu, na senda da sua permanente autojustificação e que tiveram, em 1940, o coroamento lógico com a junção das duas datas mais simbólicas da nacionalidade, a da fundação de Portugal e a da Restauração da independência. Aquelas revestiram-se de elevado sentido simbólico, aparentemente imunes à impossibilidade de consenso que, sabemo-lo hoje, não passava de ilusória promessa de unanimismo nacionalista e desprezo militante por qualquer visão oposta – em contraste com as de agora, permeáveis à evidência de que qualquer acto comemorativo está sujeito «às tensões decorrentes da luta pela hegemonização do poder simbólico, condição essencial de radicação de todo o poder[6]

Tal como acontecia ainda não há muito tempo com o 5 de Outubro e a implantação da República, as comemorações do 25 de Abril mostraram, mais uma vez, que se trata de uma data geradora de conflitos interpretativos. Mas essa é, afinal, a matriz comum a qualquer data em particular ou a qualquer narrativa histórica em geral.[7]
Será que tais dissensões radicam na questão de saber se é possível uma historiografia consensual, universalmente aceite, tão indiscutível como a lei da gravidade? Tal hipótese é sustentada por um certo discurso comum que apela para o julgamento da história como justificativo de opções tomadas: “A história dirá quem tem razão!” – ouvimos ainda, aqui e ali. Mas esta é uma questão que a historiografia já resolveu desde que a chamada Nova História rejeitou as ilusões positivistas e estabeleceu as bases da história crítica – visão histórica não partilhada, naturalmente, pelo regime anterior a Abril de 74 para o qual só poderia existir uma história oficial, ensinada no “livro único”.

Adiantamos outra hipótese: apesar do copioso acervo de trabalhos históricos dedicados ao 25 de Abril e aos anos que se lhe seguiram[8], permanecem áreas de penumbra em que não parece possível, ainda, destrinçar o que é memória colectiva do que é história. É uma hipótese viável se aceitarmos que foi nesse espaço que se defrontaram as interpretações ideológicas sobre o Abril de 1974, desde essa data até ao presente.
Maurice Halbwachs abordou aprofundadamente esta questão e propôs que a história só tem lugar depois do apagamento da memória colectiva, o que pressupõe um afastamento temporal entre o historiador e o acontecimento narrado. Memória e história seriam conceitos antitéticos, a segunda só teria lugar quando se extinguisse a primeira.

«C'est qu'en général l'histoire ne commence qu'au point où finit la tradition, au moment où s'éteint ou se décompose la mémoire sociale. Tant qu'un souvenir subsiste, il est inutile de le fixer par écrit, ni même de le fixer purement et simplement. Aussi le besoin d'écrire l'histoire d'une période, d'une société, et même d'une personne ne s'éveille-t-il que lorsqu'elles sont déjà trop éloignées dans le passé pour qu'on ait chance de trouver longtemps encore autour de soi beaucoup de témoins qui en conservent quelque souvenir.»[9]

Pierre Nora acentuou esta oposição entre memória e história quando escreveu que «longe de serem sinónimos, tudo as opõe.»[10]
Curiosamente, esta concepção era a que presidia ao ensino da história em Portugal antes de Abril de 1974. Mas aí a história contemporânea estava afastada dos programas escolares por razões claramente ideológicas e não por outras. O regime de Salazar/Caetano entendia que seria nociva a abordagem do que chamava “os novos ventos da história”, emergentes após o final da Segunda Guerra Mundial, caracterizados pela implantação dos regimes democráticos de tipo ocidental e pela concessão da autodeterminação e independência aos povos colonizados. Este vazio de história permitia que fosse a memória colectiva, elaborada ou manipulada pelo regime, a sustentar e justificar as suas opções políticas. Impôs-se assim uma narrativa ideológica coerente e globalizadora expressa no slogan “Deus, Pátria, Autoridade e Família”, resumo e bandeira de valores indiscutíveis e universais[11]. Nesta construção ideológica encontramos todas as características da memória colectiva exaustivamente descritas por Halbwachs na obra citada, bem como por Pierre Nora em Les lieux de mémoire[12] - bem esquematizadas por Maria Isabel João[13].

No entanto esta visão radical que opunha memória e história está hoje muito atenuada como tem sido demonstrado por François Dosse, pois assentava na concepção da história como disciplina positivista, firmada na crença da total objectividade dos processos hermenêuticos, uma perspectiva epistemológica actualmente posta em causa. Walter Benjamin opôs a este modelo, um outro voltado para a interpretação dos acontecimentos e para a busca do seu sentido[14], o que abre caminho à confluência entre os dados de conhecimento facultados pelas memórias – individual e colectiva - e o trabalho do historiador que os analisa e lê, numa mediação crítica garantida pelos modernos instrumentos de pesquisa hoje universalmente aceites como base de conhecimento científico reconhecido à historiografia contemporânea.[15]

A revalorização da história contemporânea assim operada abre caminho à sua abordagem como disciplina nuclear no sistema de ensino. Longe de ficar à espera que os anos passem para depois se pronunciar sobre os acontecimentos, a história assume a capacidade para ler os acontecimentos contemporâneos à luz de práticas historiográficas já testadas, em articulação com as metodologias usadas pelas outras ciências humanas, nomeadamente a sociologia e a antropologia; mas também a economia política, o direito, a diplomática, a psicologia social, a demografia, a geografia, etc.
Ao contrário do que seria de esperar, os jovens têm uma visão maioritariamente crítica sobre a ditadura[16], o que pode significar que se identificam com o maior valor atribuído ao 25 de Abril – a conquista da Liberdade. Contudo, é bem sabido que as memórias são realidades voláteis que sofrem a usura do tempo e das circunstâncias. Períodos de crise, ciclos de penúria material, desemprego e insegurança podem fazer inverter muito rapidamente os elementos positivos de identidade social. É por isso que o ensino da História é um factor crucial para a consciencialização cívica das gerações mais novas e uma barreira para as manipulações de caudilhos populistas que sempre aparecem nos períodos conturbados da vida social.

O ensino da História pode e deve «contribuir para forjar uma memória fundada na razão, informada, crítica e plural. Uma memória histórica que tenha quadros de referência suficientes para pensar sobre o mundo e a sociedade, para continuar a informar-se e a ter interesse pela história.»[17]
As comemorações do 25 de Abril avivam memórias contraditórias entre os que o viveram e induz incertezas de apreciação entre os jovens que dele ouvem falar. Constituem um momento de acentuado valor simbólico em que o passado penetra no presente mas é por este contaminado pelas dissensões e contradições que pontuam a marcha das sociedades humanas. A partir dessa força simbólica, os poderes constituídos têm tendência a invocar uma unidade perdida que teria existido na data comemorada.[18] Fazem-no como forma de exorcizar as divergências do presente ou de defender projectos de futuro, o que significa, de qualquer modo, formas mais ou menos subtis de manipulação das memórias.
Cabe aos guardiões da História a defesa de uma memória crítica que se oponha às manipulações e apetreche as novas gerações com instrumentos de análise e de compreensão do passado que lhes permitam intervir na vida social e política como cidadãos lúcidos e conscientes.

Joaquim Moedas Duarte
"Memórias e Identidades" - Mestrado em 
ESTUDOS DO PATRIMÓNIO
2014



BIBLIOGRAFIA

CATROGA, Fernando – Ritualizações da história / As comemorações como liturgias cívicas, in:
História da história de Portugal – sécs XIX-XX. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996.

JOÃO, Maria Isabel – Memória e identidade, Universidade Aberta, 2014.

JOÃO, Maria Isabel - Memória, história e educação. In: separata da Revista NW noroeste, revista            de História, Núcleo de Estudos Históricos da Universidade do Minho, Braga, 2005.

HALBWACHS, Maurice - La mémoire colective. Édition critique, Paris,: Éditions Albin Michel,
            1997.

TORGAL, Luís Reis – História, divulgação e ficção, in: História da história de Portugal – sécs XIX-XX. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996.

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WEBGRAFIA

BARRIÈRE, Philippe - La Deuxième Guerre mondiale entre histoire et mémoire(s): épistémologie,
méthodologie et déontologie [Em linha]. [Cons. em 30 Abril 2014]. Disponível em: < http://www.ac-grenoble.fr/histoire/programmes/lycee/classique/terminale/hist/histoireetmemoirei.pdf

DOSSE, François -  Entre histoire et mémoire:une histoire social de la mémoire [Em linha] Raison présente,
Setembro 1998, p. 3. [Consultada em 30 Abril 2014]. Disponível em: <

JOÃO, Maria Isabel - Memória e história: os problemas e o método, [Em linha], UAb, disponível
em:

JOÃO, Maria Isabel  – O ensino e a memória histórica. [Em linha] Associação de Professores de História,
               s.d., Opinião. [Cons. 4 Maio 2014]. Disponível em:<
               http://www.aph.pt/ex_opiniao7.php

REZOLA, Inácia – Ensinar a história do século XX: o 25 de Abril [Em linha]. Associação de Professores
de História, Circular informação 81, Maio 2012, com um detalhado registo do movimento editorial acerca do 25 de Abril. [Cons. 4 Maio 2014]. Disponível em:<

RICOEUR, Paul  – Memória, história, esquecimento. Conferência proferida em Budapeste em 8 de Março
de 2003. [Em linha]. [Cons. 4 Maio 2014]. Disponível em:<

SILVA, Helenice Rodrigues da – “Rememoração” / Comemoração: as utilizações sociais da memória. [Em
linha]. Revista Brasileira de História, vol 22, nº 44, São Paulo, 2002. [Cons. 4 Maio 2014].






[1] Cf: Maria Isabel João, Memória e história: os problemas e o método, [Em linha], UAb, disponível em https://www.dropbox.com/sh/dqtan65xgi515hy/g6rR-Y-jtG/T1_Memoria_e_%20Historia.pdf, p.1.
[2] Cf Paul Ricoeur – Memória, história, esquecimento. Conferência proferida em Budapeste em 8 de Março de 2003. [Em linha]. [Cons. 4 Maio 2014]. Disponível em:<
[3] Cf: Luís Reis Torgal – História, divulgação e ficção, in: História da história de Portugal – sécs XIX-XX. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, pp. 491- 545. O autor analisa detalhadamente a relação entre a escrita da história e o posicionamento ideológico de quem a escreve alargando o campo de pesquisa à área da divulgação histórica, a mais vulnerável à manipulação com fins doutrinários.
[4] Cf. Discurso de Cavaco Silva na Assembleia da República na sessão solene de 25 de Abril de 2014. Disponível em: http://www.presidencia.pt/?idc=22&idi=83219.
[5] Fernando Catroga – Ritualizações da história / As comemorações como liturgias cívicas, in: História da história de Portugal – sécs XIX-XX. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, pp. 547-671.
Maria Isabel João – Memória e Império – comemorações em Portugal (1880-1960). Dissertação de Doutoramento em História Contemporânea.[Em linha]Universidade Aberta, 1999.[Cons. 4 Maio 2014]. Disponível em:< https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/2466
[6] Fernando Catroga, op. cit, p. 548.
[7] Cf. Luís Reis Torgal, op.cit., p.491: «Seja como for, entendemos como José Mattoso, que a história é, efectivamente, uma “representação de representações”.»
[8] Ver artigo de Inácia Rezola – Ensinar a história do século XX: o 25 de Abril [Em linha]. Associação de Professores de História, Circular informação 81, Maio 2012, com um detalhado registo do movimento editorial àcerca do 25 de Abril. [Cons. 4 Maio 2014]. Disponível em:<
[9] Maurice Halbwachs – La mémoire colective. Édition critique, Paris, Éditions Albin Michel, 1997, p. 130.
[10] Citado por François Dosse in Entre histoire et mémoire:une histoire social de la mémoire [Em linha] Raison présente, Setembro 1998, p. 3. [Consultada em 30 Abril 2014]. Disponível em: <

[11] Cf: Discurso de Salazar pronunciado em Braga, no 10º aniversário do 28 de Maio, em 1936: «Não discutimos Deus e a virtude. Não discutimos a Pátria e a Nação. Não discutimos a autoridade e o seu prestígio. Não discutimos a família e a sua moral». In: Discursos, Vol. II, Coimbra Editora, 1936, pp. 128/129.
[12] Citado por Philippe Barrière in La Deuxième Guerre mondiale entre histoire et mémoire(s): épistémologie, méthodologie et déontologie [Em linha]. [Cons. em 30 Abril 2014]. Disponível em: < http://www.ac-grenoble.fr/histoire/programmes/lycee/classique/terminale/hist/histoireetmemoirei.pdf
[13] «[A] Memória colectiva é espontânea ou elaborada, fruto da vivência e dos interesses dos grupos, funda-se no sentimento, na emoção, numa visão  subjectiva e idealizada do passado e do próprio grupo, é imprecisa, vaga em relação ao tempo e ao espaço e pouco fiel aos factos, conserva por um momento, apaga, reinventa a seu gosto. A memória colectiva geralmente divide.» in: Maria Isabel João – Memória e identidade, Universidade Aberta, 2014.
[14] Cf. François Dosse, op. cit. p. 5.
[15] Cf. Helenice Rodrigues da Silva – “Rememoração” / Comemoração: as utilizações sociais da memória. [Em linha]. Revista Brasileira de História, vol 22, nº 44, São Paulo, 2002. [Cons. 4 Maio 2014]. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882002000200008&script=sci_arttext >
[16] Cf. Inácia Rezola, op. cit., p.2
[17] Cf. Maria Isabel João – O ensino e a memória histórica. [Em linha] Associação de Professores de História, s.d., Opinião. [Cons. 4 Maio 2014]. Disponível em:< http://www.aph.pt/ex_opiniao7.php ;
E também: - Memória, história e educação. In: separata da Revista NW noroeste, revista de História, Núcleo de Estudos Históricos da Universidade do Minho, Braga, 2005.
[18] Cf. comunicação ao país do Primeiro Ministro Passos Coelho em 4 de Maio de 2014 em que invoca uma mítica pureza unanimista do 25 de Abril para justificar as suas opções políticas.

EM TORNO DO CONCEITO DE LUGAR DE MEMÓRIA





Este texto propõe-se reflectir sobre um conceito que se vulgarizou e passou a andar associado à noção de património e de memória colectiva. Partimos de um caso concreto para tentarmos definir a origem e a fortuna da expressão criada por Pierre Nora na sua monumental obra “Les lieux de mémoire”.


Nas comemorações dos 200 anos da Guerra Peninsular, em 2010, numa visita guiada ao lugar da batalha da Roliça[1] (concelho do Bombarral), registámos este pequeno monumento situado no meio de pomares de pereiras e macieiras. Trata-se de um túmulo com os restos mortais do tenente-coronel Lake, comandante do regimento 29 do exército britânico que ali se bateu contra os franceses em 17 de Agosto de 1808.
Citamos um texto documental: «Noventa anos depois destes acontecimentos, o 29º regimento faz escala em Portugal, na viagem de regresso a Inglaterra depois da Guerra dos Bóeres na África do Sul. Fiel à tradição, o regimento visita a Roliça para homenagear os seus antepassados mortos. Fazem-se escavações. Pelos despojos encontrados, são reconhecidos os restos mortais do lendário coronel Lake que emocionadamente depositam no singelo túmulo que ali constroem.
No silêncio da paisagem este monumento, mais do que lembrar um nome, perpetua a memória de tantos soldados desconhecidos que aqui se bateram na Guerra Peninsular[2]

Na altura da visita, a expressão lugar de memória surgiu espontaneamente para designar este espaço tão intensamente evocativo. Não nos detivemos sobre o seu conteúdo mais profundo ou sequer sobre o facto de a expressão nos ter ocorrido de modo tão natural. Foi agora, no contexto da unidade curricular Memórias e Identidades, em leituras complementares, que nos interrogámos sobre a pertinência da designação. Ela entrou há muito no vocabulário corrente, podemos dizer com propriedade que já faz parte da nossa memória colectiva. De onde veio? Como se impôs?
Segundo Joel Candau[3] foi Frances A. Yates, na obra A arte da memória, publicada em 1975, quem pela primeira vez estudou sistematicamente a relação entre memória e lugar. Partiu da verificação de que a retórica antiga cultivava o domínio da memória como instrumento para os oradores que não dispunham dos meios que hoje temos e que, para isso, usavam a associação de um lugar a um conteúdo. A memorização do discurso apoiava-se na fixação prévia de um itinerário de lugares, de modo a garantir que a visualização mental permitisse ou facilitasse a colagem de cada parte do discurso, no que Yates chamou «sistema de lugares de memória».[4] Este processo baseava-se no conhecimento empírico de que a memória se apoia em espaços fixados pela nossa visão. Note-se que ainda hoje as reconstituições criminais são feitas nos lugares do crime como forma de induzir mais facilmente o reconhecimento de algo que se passou.
Pierre Nora retomou a expressão «lugar de memória» num contexto totalmente diferente. Assumindo-se como alguém da terceira geração dos Annales e ligado à chamada Nova História, centrou o seu trabalho em torno do estudo e análise da história contemporânea francesa. François Dosse, autor de uma biografia de P. Nora[5], descreve o percurso algo excêntrico deste académico. Sendo professor universitário nas décadas de 70 e 80, ganhou notoriedade como editor de obras históricas, movido por uma inesgotável curiosidade e abertura a todos os contributos dos seus pares. A sua capacidade para investigar em parceria com outros historiadores leva-o a colaborar com Jacques Le Goff, primeiro, e depois, com uma vasta equipa de mais de cem historiadores que coordenou entre meados dos anos 80 e 90. No âmbito desse trabalho são publicados «sete volumes, 135 artigos, mais de 5600 páginas»[6] sob o título genérico Les lieux de mémoire, um empreendimento gigantesco que alterou decisivamente o panorama da historiografia francesa, como refere Armelle Enders[7] e cuja amplitude «seria irracional tentar resumir em poucas linhas», como diz J. Candau. Citando A. Enders: «Esse empreendimento 'memorial', coordenado por Pierre Nora, tem por origem seu seminário sobre história do presente, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, e durará mais de 10 anos, concluído em 1993 com a publicação do último tomo dos "Lugares da memória". Propondo o retorno ao questionamento sobre a nação mediante a análise dos 'lugares da memória' (material, simbólico, funcional), o primeiro tomo consagra-se à "República" (1 volume sobre o século XIX), o segundo (3 volumes) à "Nação" (a partir da Idade Média), e o terceiro (3 volumes) às "Franças" (les France).»
Importa reter que a feliz expressão “lugares de memória” em torno da qual se erigiu a obra, acabou por se vulgarizar e até banalizar, apropriada por uma opinião pública ávida de história mas pouco dada à leitura e à reflexão. Passou a funcionar como os modernos sound bites da comunicação social, facto a que não terá sido estranha a utilização do próprio Jack Lang, ministro da cultura em 1986, que nela se apoiou para defender o relançamento de políticas de defesa do Património. É o que o próprio Pierre Nora explica numa extensa e muito elucidativa entrevista dada a Ana Fonseca Brefe, em 1999[8]:
«Eu seria malvisto se reclamasse dessa difusão e só posso me alegrar de ver a noção servir a boas causas. Mas é preciso reconhecer que o sucesso, como acontece na maior parte das vezes, se faz ao preço de interpretações empobrecidas e mesmo em um contra-senso. Um lugar de memória, para mim, não poderia nunca ser reduzido a um objeto material, mas sim, ao contrário. A noção é feita para liberar a significação simbólica, memorial – portanto abstrata – dos objetos que podem ser materiais, mas na maior parte das vezes não o são. Na verdade, existem somente lugares de memória imateriais, senão seria suficiente que falássemos de memoriais
Tentemos aprofundar a questão de saber como se constituiu este conceito que, afinal, aponta para um conteúdo desmaterializado da memória. Na referida entrevista P. Nora explica longamente que não partiu de uma teorização prévia, mas sim da intuição de que era necessário um novo olhar sobre a história da França. O seu projecto centra-se na observação das profundas mudanças históricas desde Napoleão até aos nossos dias, com a aceleração da história/acontecimento e a contradição entre a sedimentação da memória colectiva – mítica, sagrada, emotiva - e a fixação de uma historiografia que a problematiza, dessacraliza e desmitifica. Diz Nora: «A história é reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenómeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história uma representação do passado[9]
É neste conflito entre vivido e reflectido, entre emoção e razão, que se evidencia a importância da memória, lugar de fixação de lembranças e esquecimentos num tempo mais espesso e duradouro que, de alguma forma, representa uma resistência à aceleração da história, ritmada pelos media que transmitem ao homem contemporâneo «a sensação de hegemonia do efémero»[10].
O grande projecto de Nora que se vai centrar numa história da memória radica nas profundas mudanças verificadas na sociedade francesa a partir dos anos 70: fim do grande ciclo de crescimento económico pós-guerra e do predomínio da ruralidade, fim da ideia de França como grande potência mundial, «fim da ideia revolucionária como organizadora do sentido da história».[11] Nora detecta na sociedade francesa uma espécie de consciência de perda colectiva que leva à revalorização do passado nacional e induz como compensação o crescente culto do património. Este fenómeno leva-o à procura dos «objectos que fossem portadores dessa expressão do sentimento nacional»[12] e cita, como exemplos, o Panteão, os monumentos aos mortos, a bandeira nacional, o 14 de Julho, os museus, etc – memoriais em que se ancorava a consciência nacional e de que ele vai tentar descobrir o modo como se instituíram e consolidaram. Um vasto campo que se alargou à medida que o ia percorrendo e onde se cruzam temas como o das comemorações com seus ritos colectivos ou o da própria história da historiografia – esse grande território em que evoluem as noções cruciais de memória e história, numa conflitualidade surda que cabe ao historiador das sociedades contemporâneas compreender e explicar. Nora refere que se tratou de uma empresa de que nem tinha noção da dimensão quando a ela se abalançou mas que, com o tempo, foi ganhando novos contornos. O próprio conceito de que temos vindo a tratar é assim visto por ele:
«(…) se eu me precipitei sobre a expressão os lugares da memória, que me pareceu se impor desde o princípio para abranger objectos tão diferentes uns dos outros, essa noção em si mesma quando quisemos defini-la, cercá-la intelectualmente, tivemos muitos problemas para fazê-lo. Assim, eu levei muito tempo para elaborá-la, e ela, progressivamente, se transformou.»[13]
Isto é: o conceito de lugar de memória não é unívoco. Nem o próprio Nora lhe reconhece nitidez de contornos já que ele evoluiu ao longo dos anos em que a obra foi sendo publicada. Contudo, numa fase final destes estudos propôs uma definição que nos pode ajudar a entender a complexidade do conceito:
«Lugar de memória, então: toda unidade significativa, de ordem material ou ideal, que a vontade dos homens ou o trabalho do tempo converteu em elemento simbólico do património memorial de uma comunidade qualquer.»[14] (Pierre Nora – Les lieux de mémoire, Paris: Gallimard, 1997)
Margarida S. Neves[15] sistematiza a sua leitura de Nora referindo que os lugares de memória têm três componentes: material, funcional e simbólica. Explicitando o seu conteúdo diremos que a componente material é aquela em que os sentidos apreendem os sinais da memória colectiva – caso dos memoriais construídos nos lugares de batalhas, os arcos do triunfo, as placas comemorativas, as bandeiras, os hinos, etc; a funcional que se refere à memória como sinal de identidade, de demarcação ou, até, de afrontamento face a grupos antagónicos – os rituais comemorativos, por exemplo, associados ou não à componente material; e a terceira componente simbólica constituída pelos significados mais profundos que a memória colectiva atribui a determinados lugares.
Em qualquer caso, estes lugares são espaços materiais ou ideais onde coexistem a história e a memória, em conflito ou em complementaridade, e sempre em mutação de acordo com as épocas e os grupos que deles se apropriam ou que os impõem. Um caso paradigmático de um destes lugares de memória é o promontório de Sagres cujo processo de mitificação Maria Isabel João estudou[16], evidenciando o modo como se construiu uma narrativa que se foi incorporando na memória colectiva, em oposição a uma historiografia que se tem mostrado insuficiente para erradicar os traços mais marcantes dessa memória.
Em jeito de conclusão, cremos ter delineado em breve resumo a origem e o processo de afirmação do conceito de lugar de memória. Voltando ao túmulo de Lake nos campos da Roliça, talvez o olhemos agora com outro entendimento. É um lugar de memória porque contém em si um simbolismo que o transcende como simples registo fúnebre; e também porque nele convergiram uma vontade de celebrar, um desejo de evocar e um apelo a inscrever na eternidade da memória colectiva um acontecimento que a história regista como definitivamente passado.
J. Moedas Duarte
Trabalho elaborado no âmbito da disciplina 
"Memórias e identidades" do Mestrado em Estudos do Património, 2014 


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BIBLIOGRAFIA
CANDAU, JOEL - Antropologia da memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2013.

WEBGRAFIA
Brefe, Ana Fonseca – Pierre Nora ou o historiador da memória. [Em linha] in:
História Social, Campinas, nº 6, 1999, pp.13-33.[Consult. 10 Maio 2014]. Disponível em: < http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/view/363/314

Enders, Armelle – Les lieux de mémoire, dez anos depois [Em linha]in:Estudos
            históricos, vol.6, nº 11(1993), Centro de Pesquisa e Documentação de História
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http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/issue/view/277 >. Em nota final indica o plano completo da obra.

Gonçalves, Janice - Pierre Nora e o tempo presente: entre a memória e o
património cultural. [Em linha] Historiae, Rio Grande, 3, 2012, pp. 27-46. [Consult. 13 Maio 2014] Disponível em: <

joão, Maria Isabel – Sagres, lugar mítico da memória. [Em linha] In
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 Lisboa : Universidade Aberta, 2005, p.       409-422. [Consult. em 12 Maio
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neves, Margarida Sousa  – Lugares de memória na PUC-Rio. [Em linha]
Pontifícia      Universidade Católica- Núcleo de memória, Rio de Janeiro. [Consult. 13 Maio 2014].      Disponível em:< http://nucleodememoria.vrac.puc-rio.br/site/lugaresmargarida.htm

Ribeiro, Renilson R. – Nos jardins do tempo: memória e história na perspectiva de
Pierre Nora [Emlinha] in: História e-história. [Consult. 11 Maio 2014]. Disponível em:<

Silva, Helenice Rodrigues da – Resenha do livro de François Dosse “Pierre
Nora – homo historicus” inserta na Revista Brasileira de História [Em linha], vol. 31, nº 61, São Paulo, 2011. [Conslt. 11 de Maio de 2014]. Disponível em:< http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882011000100020 >





[3] Joel Candau – Antropologia da memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2013, pp. 60 e 188.
[4] Joel Candau, op. cit, p. 61.
[5] Apoiamo-nos na recensão de Helenice Rodrigues da Silva inserta na Revista Brasileira de História [Em linha], vol. 31, nº 61, São Paulo, 2011. [Conslt. 11 de Maio de 2014]. Disponível em:< http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882011000100020 >
[6] Joel Candau, op. cit, p.188.
[7] Armelle Enders - LES LIEUX DE MEMOIRE, DEZ ANOS DEPOIS.[Em linha]in:Estudos históricos, vol.6, nº 11(1993), Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil  [Consult. 13 Maio 2014]. Disponível em:< http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/issue/view/277 >. Em nota final indica o plano completo da obra.
[8] Ana Fonseca Brefe – Pierre Nora ou o historiador da memória. [Em linha] in: História Social, Campinas, nº 6, 1999, pp.13-33.[Consult. 10 Maio 2014]. Disponível em: <
[9] Cf: Renilson R. Ribeiro – Nos jardins do tempo: memória e história na perspectiva de Pierre Nora [Em linha] in: História e-história. [Consult. 11 Maio 2014]. Disponível em:<
[10] Cf: Renilson R. Ribeiro, idem, p.2
[11] Cf: Ana Fonseca Brefe – Pierre Nora ou o historiador da memória…, p.23.
[12] Idem, p. 24.
[13] Cf: Ana Fonseca Brefe – Pierre Nora ou o historiador da memória…, pp. 25-26.
[14] Citado por Janice Gonçalves in: Pierre Nora e o tempo presente: entre a memória e o património cultural. [ Em linha] Historiae, Rio Grande, 3, 2012, pp. 27-46. [Consult. 13 Maio 2014] Disponível em: < http://www.seer.furg.br/hist/article/view/3260/1937 >
[15] Margarida Sousa Neves – Lugares de memória na PUC-Rio. [Em linha] Pontifícia Universidade Católica- Núcleo de memória, Rio de Janeiro. [Consult. 13 Maio 2014]. Disponível em:< http://nucleodememoria.vrac.puc-rio.br/site/lugaresmargarida.htm
[16] Maria Isabel João – Sagres, lugar mítico da memória. [Em linha] In "Des(a)fiando discursos: Homenagem a Maria Emília Ricardo Marques". Lisboa : Universidade Aberta, 2005, p. 409-422. [Consult. em 12 Maio 2014]Disponível em:< https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/375