sábado, 26 de setembro de 2015

CASA HIPÓLITO - A GALINHA QUE PÕE OVOS DE OURO - MEMÓRIAS DE UMA POLÉMICA







O tema central deste colóquio, integrado nas Jornadas Europeias do Património 2015, é o das memórias da Casa Hipólito. O que trazemos hoje ao conhecimento público é a memória de uma polémica no jornal BADALADAS, na década de 60 do século passado.



Como sabemos, a CASA HIPÓLITO marcou o século XX de Torres Vedras. Teve origem na pequena oficina de latoaria de António Hipólito em 1902 e ao longo do século cresceu, passou por uma fase de esplendor, entrou em decadência e extinguiu-se em 1999. Milhares de braços lá trabalharam…Alguns deles estão hoje aqui.
Está em marcha o processo que levará à narração da História desta empresa, à recolha  de memórias de quem lá trabalhou e ao levantamento e fixação de elementos do Património Industrial de que ela é exemplo maior no concelho de Torres Vedras.
Que fontes podem ser usadas para atingir estes objectivos?
Resumidamente, são estas:

1.                    Fundo da Casa Hipólito, que resulta da iniciativa meritória da Câmara Municipal de Torres
Vedras que recolheu uma parte dos salvados e a guarda neste Museu, onde está a ser inventariada;
2.           Informações dispersas por Arquivos diversos (estatísticas, relatórios, registos, actas, etc);
3.           Testemunhos orais a recolher em entrevistas ou depoimentos escritos;
4.           Imprensa local: notícias, reportagens, textos de opinião e peças publicitárias…

Vamos fixar-nos neste último núcleo, o da imprensa local.

É hoje consensual entre os historiadores o reconhecimento da importância e relevância da imprensa como fonte de estudo da História Local. Em Torres Vedras ela existe desde 1885 . Entre essa data e 1935 surgiram 21 títulos, entre semanários, quinzenários, trimensais e mensais, com tempos de vida muito variáveis, de acordo com as circunstâncias. 1935 é uma data de referência, relacionada com a afirmação do Estado Novo, de cariz totalitário, e corresponde ao ano a partir do qual rareou o aparecimento de novos títulos. A partir daí até 1974 apenas se contam 4 novos jornais, de periodicidade variável. Em 1948 surgiu o jornal BADALADAS, uma folha paroquial com saída mensal, mais tarde quinzenal e, a partir de 1960, semanal, o qual viria a tornar-se o órgão da imprensa local de referência e que ainda hoje se publica, com uma tiragem de cerca de 12 000 exemplares. Após 1974, ano da revolução do 25 de Abril, surgiram três novos semanários, com existência mais ou menos longa, - mas sempre de alguns anos, ou mais de uma década. – e ainda várias revistas ou jornais centrados na área cultural.

A imprensa local é um espaço público por excelência. Nele se cruzam notícias, opiniões e curiosidades que exprimem a ambiência cultural da comunidade que a produz. A característica essencial é o facto de os autores se considerarem originários “da terra”, por nascimento ou opção de residência, o que lhes dá, no seu entender, legitimidade para emitirem opinião ou transmitirem notícias. Não raro encontramos no que escrevem a evocação dessa qualidade, aliada à intenção de “defenderem os legítimos interesses das populações”.

  É claro que a utilização das peças jornalísticas como fonte histórica requer cuidados e reservas óbvios. Todos nos lembramos da caricatura do homem que dizia, de jornal na mão: “É verdade o que estou a dizer, vem escrito aqui no jornal…”
No entanto, e reportando-nos à História da Casa Hipólito, há muitos factos que se teriam perdido totalmente se não tivessem sido registados nas páginas dos nossos jornais.
O exemplo mais flagrante é o da própria data do início da empresa de António Hipólito que, a partir de certa altura – por razões publicitárias - passou a ser referida como tendo sido fundada no ano de 1900. O que não corresponde à realidade, como se prova pelo anúncio publicado pelo próprio António Hipólito no semanário FOLHA DE TORRES VEDRAS de 17 de Agosto de 1902 – repetido em jornais posteriores:
«NOVA OFICINA DE LATOEIRO DE ANTÓNIO HYPÓLITO / 43 – Rua Serpa Pinto - 43 // Participa ao público que tendo saído da antiga oficina Joaquim Franco, se estabeleceu por sua conta. Encarrega-se de qualquer obra respeitante à sua arte, concertos de bombas, canalizações, construção por sistema apereiçoado de gazómetros de acetilene, etc, etc. Tudo por preços muito limitados.»

Trago para esta sessão um elemento significativo para o conhecimento de um período importante da Casa Hipólito, na década de 60 do século passado: um conjunto de artigos de opinião publicado entre 26 de Junho de 1965 e 8 de Janeiro de 1966.
Naquela época a Casa Hipólito enfrentava sérios problemas com a falta de instalações suficientes para a contínua expansão da sua actividade.
Em meados da década anterior – 1953/54 – havia sido construído o grande edifício junto à Igreja de Santiago, - a chamada Fábrica A - com quatro pisos, mas logo se verificou que era insuficiente, o que levou à construção de Pavilhões na área da Várzea e armazéns no Patim – tudo ali perto mas em instalações descontínuas. As autorizações da Câmara eram concedidas a título precário “visto o Plano de Urbanização, superiormente aprovado, prever em prazo mais ou menos longo, a transferência para a Zona própria, das indústrias existentes na Zona habitacional.”(Acta da Câmara em 1954)
  A ideia de se fazer uma nova fábrica na chamada Várzea de Arenes já estava em marcha em 1960, quando a empresa informa a Câmara Municipal que aceita “aterro sem lixo e em qualquer quantidade” no terreno a ela destinado. A construção ali de novos  pavilhões está prestes a iniciar-se. Porém, a Câmara Municipal, a braços com falta de recursos financeiros, considera que não pode arcar sozinha com a construção dos acessos à zona industrial de Arenes. Além do pedido ao Estado, pede a comparticipação da Casa Hipólito em 200 contos, sem a qual não dará “início aos trabalhos de terraplanagem e pavimentação a betuminoso do acesso em causa” (Actas da Câmara M. em 1965 e 1966). A empresa, porém, não concorda com isso e faz constar que está disposta a migrar para outro concelho, para um terreno que já terá adquirido, à entrada da Malveira, no vizinho município de Mafra. Inicia-se um processo de braço de ferro que está na origem da polémica surgida no Badaladas, a que atrás fizemos referência.

Em boa verdade, a questão já fora levantada em 7 de Dezembro de 1963 nas páginas do Badaladas, num artigo assinado pelo Dr. Moura Guedes e que se intitulava: “O problema da Casa Hipólito”. No meio de considerações genéricas sobre a legitimidade dos direitos e deveres em confronto, da parte da Casa Hipólito e da Câmara Municipal, o articulista apontava o cerne do problema:
“Cremos que foi infeliz a aquisição de terreno para o Bairro Industrial, atento o facto de ser de aluvião, o que encarece as construções, e de estar rodeado de pessoas que certamente procuram aproveitar-se da oportunidade para valorizarem emasiadamente as sua courelas.”
A isto acrescem os custos de urbanização do local. O autor entende assim como natural que a empresa pense numa “sucursal noutra região onde o terreno fosse mais favorável e o custo da obra muito inferior.” Termina apelando para que as forças em presença encontrem “uma solução que não seja prejudicial e desagradável para o concelho.”




A polémica vai estalar um ano e meio depois.
Em 26 de Junho de 1965, surge na primeira página do Badaladas um artigo com um título bombástico: TORRIENSES! SALVEM A “GALINHA QUE PÕE OVOS DE OURO”.
Era seu autor João da Costa Miranda, torriense do Varatojo, emigrado há 40 anos na Argentina, onde se tornou um industrial de mérito, que viera passar uma temporada a Portugal.  
Usando uma linguagem emotiva, chama a atenção para o que considera uma tragédia que está prestes a acontecer. Numa visita às novas instalações de Arenes, ouvira de António Hipólito Júnior, gerente da fábrica, queixas amargas contra a Câmara Municipal que dificultava a resolução de problemas da empresa. A tragédia era que a Casa Hipólito já adquirira 30 hectares num concelho vizinho e projectava mudar-se para lá. Em tom melodramático, lembrando os grandes benefícios proporcionados por uma grande empresa como a Hipólito, interroga: “Teve de vir um torriense de tão longe para ver a gravidade desta situação?” E clama, já no final: “Não deixem escapar das mãos uma indústria tão próspera! (…)Tenham um só ponto de mira: a grandeza de Torres Vedras – Salvem “a galinha que põe ovos de ouro.”

Naturalmente este artigo teve resposta imediata da Câmara Municipal na semana seguinte, em 3 de Julho, em que emitiu um COMUNICADO. Em tom conciliatório, elogia o bairrismo do ilustre emigrante mas lamenta que, depois das queixas que ouviu ao gerente da Hipólito, não se tenha informado junto da Câmara e dos Serviços Municipalizados acerca da pertinência das mesmas. Se o tivesse feito, saberia que a Casa Hipólito pedira tarifas de energia eléctrica mais baixas para seu uso exclusivo e que os Serviços Municipalizados submeteram esse pedido à aprovação superior mas que tais tarifas fossem para todos os industriais. E que, a ser aceite tal pedido, o Município perderia o modesto lucro anual, com prejuízo para a generalidade da população, nomeadamente a da zona rural que espera pela electrificação pública. Lembra depois os vários pedidos já feitos pela Casa Hipólito e que foram aceites. Mas recorda outros que não o puderam ser porque implicariam um tratamento de privilégio, inadmissível para uma empresa que tem muitos milhares de contos de lucro.
 
  Na semana seguinte, em 10 de Julho, João da Costa Miranda responde com um pequeno texto agradecendo a gentileza da resposta camarária mas invocando que apenas pretendera “lançar um grito de alarme”. Não ouvira as duas partes em litígio porque entendia  não ter o direito nem a autoridade moral para fazer de árbitro.

  Uma semana depois, em resposta ao Comunicado da Câmara de 3 de Julho, surge em “Cartas ao Director" um extenso texto no qual João Alexandre Moreira, antigo responsável pelos Serviços Municipalizados, contesta as opções da Câmara em relação às tarifas eléctricas cobradas à Casa Hipólito. E recorre a dados estatísticos para provar a sua opinião.

  Em 21 de Agosto é a vez de o Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados contestar o teor do texto de João Alexandre Moreira. Evoca a complexidade do problema dos tarifários da electricidade, mostra outros dados estatísticos e prova que o novo tarifário é mais rentável para o Município.

  Sendo Verão, a assunto hibernou. Teremos de esperar pelo jornal de 25 de Dezembro de 1965 para lermos um novo e muito extenso texto do tal emigrante, João da Costa Miranda. Em destaque na primeira página e com recurso a pontos de exclamação, titula: “Na iminência de uma enorme e irreparável perda! Torrienses! Intentem salvar a «galinha que põe ovos de ouro».
Lamenta que se tenha transformado em letra morta o seu grito de alerta há seis meses atrás. E entra numa análise detalhada dos vários aspectos do problema para propor a criação de uma Comissão idónea que estude o problema e investigue, sem demoras burocráticas “se tudo isto é falso alarme ou se o concelho de Torres Vedras está realmente prestes a perder um dos seus fortes pilares.”

Uma semana depois, em 1 de Janeiro de 1966, assinada por Moura Guedes, surge a reacção a este texto, intitulada “Resposta a um apelo”. O autor recorda que o problema central de toda esta questão é o dos acessos viários à nova fábrica de Arenes os quais implicam a compra ou a expropriação de terrenos de vários proprietários. E aponta: “O Sr. João Miranda não faz a mais pequena ideia do trabalho que isso representa”. Lembra que, reconhecendo o valor e importância da Casa Hipólito, o Município deve olhar para a totalidade do território e da população concelhios. E diz claramente que “até hoje, nenhuma outra empresa de Torres Vedras exigiu e obteve da Câmara Municipal qualquer esforço ou sacrifício que, de longe, se parecesse com aqueles que tem feito pela Casa Hipólito.»

João da Costa Miranda estava prestes a partir para a Argentina mas ainda escreveu um terceiro e último artigo, publicado em 8 de Janeiro de 1966: “Mais um apelo – Torrienses!”. Ao tom dramático dos artigos anteriores junta o sentimento de amargura por ver que os seus apelos não suscitaram respostas capazes mas apenas meias tintas, paninhos quentes, ironias jocosas, observações descabidas. Nada mais lhe resta senão dar por finda a sua missão “nesta lamentável e espinhosa controvérsia”,(…) “agradecer as atenções recebidas e desejar de todo o coração que a luz se faça nas vossas mentes…”
Termina em acorde crescendo, citando o que a mãe do último rei mouro de Granada disse ao filho, ao vê-lo chorar pela perda irreparável do seu reino: «Chora agora como criança por aquilo que não soubeste defender como homem».

À distância de 50 anos, temos dificuldade em avaliar a pertinência e oportunidade desta polémica. Sabemos, no entanto, que ela teve larga repercussão no meio torriense, como não podia deixar de ser numa urbe de reduzida dimensão, apertada nas malhas do que é hoje o seu Centro Histórico.
Sabemos, também, que a empresa não se deslocalizou. Ao vermos hoje aquele espaço aberto da Várzea de Arenes, bem urbanizado e com múltiplos pavilhões de comércio e pequenas indústrias , já não conseguimos imaginá-lo como ele era no início dos anos 60:  boas terras de amanho agrícola, onde medravam hortas e pomares, mas alagadiço e sujeito a cheias frequentes. Um longo caminho se andou e a Casa Hipólito construiu ali imponentes conjuntos de naves fabris, escritórios e um refeitório de belo recorte modernista.
Mal sabia João da Costa Miranda, o interveniente emigrante de 1965,  que o seu apelo viria a ter dolorosa actualidade  trinta e poucos anos depois, quando a falência decretou a morte da empresa a que ele chamava a “galinha que põe ovos de ouro"

Joaquim Moedas Duarte
19 de Setembro de 2015

Este texto foi lido no Colóquio integrado nas Jornadas Europeias do Património 2015, no Museu Municipal Leonel Trindade de Torres Vedras. Nesse dia foi aberta ao público uma Mostra Expositiva sobre a Casa Hipólito.











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