O tema central deste colóquio,
integrado nas Jornadas Europeias do Património 2015, é o das memórias da Casa
Hipólito. O que trazemos hoje ao conhecimento público é a memória de uma
polémica no jornal BADALADAS, na década de 60 do século passado.
Como sabemos, a CASA HIPÓLITO
marcou o século XX de Torres Vedras. Teve origem na pequena oficina de latoaria
de António Hipólito em 1902 e ao longo do século cresceu, passou por uma fase
de esplendor, entrou em decadência e extinguiu-se em 1999. Milhares de braços
lá trabalharam…Alguns deles estão hoje aqui.
Está em marcha o processo que
levará à narração da História desta empresa, à recolha de memórias de quem lá trabalhou e ao
levantamento e fixação de elementos do Património Industrial de que ela é
exemplo maior no concelho de Torres Vedras.
Que fontes podem ser usadas para
atingir estes objectivos?
Resumidamente, são estas:
1.
Fundo da Casa Hipólito, que resulta da
iniciativa meritória da Câmara Municipal de Torres
Vedras
que recolheu uma parte dos salvados e a guarda neste Museu, onde está a ser
inventariada;
2. Informações
dispersas por Arquivos diversos (estatísticas, relatórios, registos, actas, etc);
3. Testemunhos
orais a recolher em entrevistas ou depoimentos escritos;
4. Imprensa
local: notícias, reportagens, textos de opinião e peças publicitárias…
Vamos
fixar-nos neste último núcleo, o da imprensa
local.
É
hoje consensual entre os historiadores o reconhecimento da importância e
relevância da imprensa como fonte de estudo da História Local. Em Torres Vedras
ela existe desde 1885 . Entre essa data e 1935 surgiram 21 títulos, entre
semanários, quinzenários, trimensais e mensais, com tempos de vida muito
variáveis, de acordo com as circunstâncias. 1935 é uma data de referência,
relacionada com a afirmação do Estado Novo, de cariz totalitário, e corresponde
ao ano a partir do qual rareou o aparecimento de novos títulos. A partir daí
até 1974 apenas se contam 4 novos jornais, de periodicidade variável. Em 1948
surgiu o jornal BADALADAS, uma folha paroquial com saída mensal, mais tarde
quinzenal e, a partir de 1960, semanal, o qual viria a tornar-se o órgão da
imprensa local de referência e que ainda hoje se publica, com uma tiragem de
cerca de 12 000 exemplares. Após 1974, ano da revolução do 25 de Abril,
surgiram três novos semanários, com existência mais ou menos longa, - mas
sempre de alguns anos, ou mais de uma década. – e ainda várias revistas ou
jornais centrados na área cultural.
A
imprensa local é um espaço público
por excelência. Nele se cruzam notícias, opiniões e curiosidades que exprimem a
ambiência cultural da comunidade que a produz. A característica essencial é o
facto de os autores se considerarem originários “da terra”, por nascimento ou opção de residência, o que lhes dá, no
seu entender, legitimidade para emitirem opinião ou transmitirem notícias. Não
raro encontramos no que escrevem a evocação dessa qualidade, aliada à intenção
de “defenderem os legítimos interesses
das populações”.
É claro que a utilização das peças
jornalísticas como fonte histórica requer cuidados e reservas óbvios. Todos nos
lembramos da caricatura do homem que dizia, de jornal na mão: “É verdade o que
estou a dizer, vem escrito aqui no jornal…”
No
entanto, e reportando-nos à História da Casa Hipólito, há muitos factos que se
teriam perdido totalmente se não tivessem sido registados nas páginas dos
nossos jornais.
O
exemplo mais flagrante é o da própria data do início da empresa de António
Hipólito que, a partir de certa altura – por razões publicitárias - passou a
ser referida como tendo sido fundada no ano de 1900. O que não corresponde à
realidade, como se prova pelo anúncio publicado pelo próprio António Hipólito
no semanário FOLHA DE TORRES VEDRAS de 17 de Agosto de 1902 – repetido em
jornais posteriores:
«NOVA OFICINA DE LATOEIRO DE ANTÓNIO
HYPÓLITO / 43 – Rua Serpa Pinto - 43 // Participa ao público que tendo saído da
antiga oficina Joaquim Franco, se estabeleceu por sua conta. Encarrega-se de
qualquer obra respeitante à sua arte, concertos de bombas, canalizações,
construção por sistema apereiçoado de gazómetros de acetilene, etc, etc. Tudo
por preços muito limitados.»
Trago
para esta sessão um elemento significativo para o conhecimento de um período importante
da Casa Hipólito, na década de 60 do século passado: um conjunto de artigos de
opinião publicado entre 26 de Junho de 1965 e 8 de Janeiro de 1966.
Naquela
época a Casa Hipólito enfrentava sérios problemas com a falta de instalações
suficientes para a contínua expansão da sua actividade.
Em
meados da década anterior – 1953/54 – havia sido construído o grande edifício
junto à Igreja de Santiago, - a chamada Fábrica A - com quatro pisos, mas logo
se verificou que era insuficiente, o que levou à construção de Pavilhões na
área da Várzea e armazéns no Patim – tudo ali perto mas em instalações
descontínuas. As autorizações da Câmara eram concedidas a título precário “visto o Plano de Urbanização, superiormente
aprovado, prever em prazo mais ou menos longo, a transferência para a Zona
própria, das indústrias existentes na Zona habitacional.”(Acta da Câmara em
1954)
A ideia de se fazer uma nova fábrica na
chamada Várzea de Arenes já estava em marcha em 1960, quando a empresa informa
a Câmara Municipal que aceita “aterro sem
lixo e em qualquer quantidade” no terreno a ela destinado. A construção ali
de novos pavilhões está prestes a
iniciar-se. Porém, a Câmara Municipal, a braços com falta de recursos
financeiros, considera que não pode arcar sozinha com a construção dos acessos
à zona industrial de Arenes. Além do pedido ao Estado, pede a comparticipação
da Casa Hipólito em 200 contos, sem a qual não dará “início aos trabalhos de terraplanagem e pavimentação a betuminoso do
acesso em causa” (Actas da Câmara M. em 1965 e 1966). A empresa, porém, não
concorda com isso e faz constar que está disposta a migrar para outro concelho,
para um terreno que já terá adquirido, à entrada da Malveira, no vizinho município
de Mafra. Inicia-se um processo de braço de ferro que está na origem da
polémica surgida no Badaladas, a que atrás fizemos referência.
Em
boa verdade, a questão já fora levantada em 7 de Dezembro de 1963 nas páginas
do Badaladas, num artigo assinado pelo Dr. Moura Guedes e que se intitulava: “O
problema da Casa Hipólito”. No meio de considerações genéricas sobre a
legitimidade dos direitos e deveres em confronto, da parte da Casa Hipólito e
da Câmara Municipal, o articulista apontava o cerne do problema:
“Cremos que foi infeliz a aquisição
de terreno para o Bairro Industrial, atento o facto de ser de aluvião, o que
encarece as construções, e de estar rodeado de pessoas que certamente procuram
aproveitar-se da oportunidade para valorizarem emasiadamente as sua courelas.”
A
isto acrescem os custos de urbanização do local. O autor entende assim como
natural que a empresa pense numa “sucursal
noutra região onde o terreno fosse mais favorável e o custo da obra muito
inferior.” Termina apelando para que as forças em presença encontrem “uma solução que não seja prejudicial e
desagradável para o concelho.”
A
polémica vai estalar um ano e meio depois.
Em
26 de Junho de 1965, surge na primeira página do Badaladas um artigo com um
título bombástico: TORRIENSES! SALVEM A
“GALINHA QUE PÕE OVOS DE OURO”.
Era
seu autor João da Costa Miranda, torriense do Varatojo, emigrado há 40 anos na
Argentina, onde se tornou um industrial de mérito, que viera passar uma
temporada a Portugal.
Usando
uma linguagem emotiva, chama a atenção para o que considera uma tragédia que
está prestes a acontecer. Numa visita às novas instalações de Arenes, ouvira de
António Hipólito Júnior, gerente da fábrica, queixas amargas contra a Câmara
Municipal que dificultava a resolução de problemas da empresa. A tragédia era
que a Casa Hipólito já adquirira 30 hectares num concelho vizinho e projectava
mudar-se para lá. Em tom melodramático, lembrando os grandes benefícios
proporcionados por uma grande empresa como a Hipólito, interroga: “Teve de vir um torriense de tão longe para
ver a gravidade desta situação?” E clama, já no final: “Não deixem escapar das mãos uma indústria tão próspera! (…)Tenham um
só ponto de mira: a grandeza de Torres Vedras – Salvem “a galinha que põe ovos
de ouro.”
Naturalmente
este artigo teve resposta imediata da Câmara Municipal na semana seguinte, em 3
de Julho, em que emitiu um COMUNICADO.
Em tom conciliatório, elogia o bairrismo do ilustre emigrante mas lamenta que,
depois das queixas que ouviu ao gerente da Hipólito, não se tenha informado
junto da Câmara e dos Serviços Municipalizados acerca da pertinência das
mesmas. Se o tivesse feito, saberia que a Casa Hipólito pedira tarifas de
energia eléctrica mais baixas para seu uso exclusivo e que os Serviços
Municipalizados submeteram esse pedido à aprovação superior mas que tais
tarifas fossem para todos os industriais.
E que, a ser aceite tal pedido, o Município perderia o modesto lucro anual, com
prejuízo para a generalidade da população, nomeadamente a da zona rural que
espera pela electrificação pública. Lembra depois os vários pedidos já feitos
pela Casa Hipólito e que foram aceites. Mas recorda outros que não o puderam
ser porque implicariam um tratamento de privilégio, inadmissível para uma
empresa que tem muitos milhares de contos de lucro.
Na semana seguinte, em 10 de Julho, João da
Costa Miranda responde com um pequeno texto agradecendo a gentileza da resposta
camarária mas invocando que apenas pretendera “lançar um grito de alarme”. Não ouvira as duas partes em litígio
porque entendia não ter o direito nem a
autoridade moral para fazer de árbitro.
Uma semana depois, em resposta ao Comunicado
da Câmara de 3 de Julho, surge em “Cartas
ao Director" um extenso texto no qual João Alexandre Moreira, antigo
responsável pelos Serviços Municipalizados, contesta as opções da Câmara em
relação às tarifas eléctricas cobradas à Casa Hipólito. E recorre a dados
estatísticos para provar a sua opinião.
Em 21 de Agosto é a vez de o Conselho de
Administração dos Serviços Municipalizados contestar o teor do texto de João
Alexandre Moreira. Evoca a complexidade do problema dos tarifários da
electricidade, mostra outros dados estatísticos e prova que o novo tarifário é
mais rentável para o Município.
Sendo Verão, a assunto hibernou. Teremos de
esperar pelo jornal de 25 de Dezembro de 1965 para lermos um novo e muito
extenso texto do tal emigrante, João da Costa Miranda. Em destaque na primeira
página e com recurso a pontos de exclamação, titula: “Na iminência de uma enorme e irreparável perda! Torrienses! Intentem
salvar a «galinha que põe ovos de ouro».
Lamenta
que se tenha transformado em letra morta o seu grito de alerta há seis meses
atrás. E entra numa análise detalhada dos vários aspectos do problema para
propor a criação de uma Comissão idónea que estude o problema e investigue, sem
demoras burocráticas “se tudo isto é
falso alarme ou se o concelho de Torres Vedras está realmente prestes a perder
um dos seus fortes pilares.”
Uma
semana depois, em 1 de Janeiro de 1966, assinada por Moura Guedes, surge a
reacção a este texto, intitulada “Resposta
a um apelo”. O autor recorda que o problema central de toda esta questão é
o dos acessos viários à nova fábrica de Arenes os quais implicam a compra ou a
expropriação de terrenos de vários proprietários. E aponta: “O Sr. João Miranda não faz a mais pequena
ideia do trabalho que isso representa”. Lembra que, reconhecendo o valor e
importância da Casa Hipólito, o Município deve olhar para a totalidade do
território e da população concelhios. E diz claramente que “até hoje, nenhuma outra empresa de Torres Vedras exigiu e obteve da
Câmara Municipal qualquer esforço ou sacrifício que, de longe, se parecesse com
aqueles que tem feito pela Casa Hipólito.»
João
da Costa Miranda estava prestes a partir para a Argentina mas ainda escreveu um
terceiro e último artigo, publicado em 8 de Janeiro de 1966: “Mais um apelo – Torrienses!”. Ao tom dramático dos artigos
anteriores junta o sentimento de amargura por ver que os seus apelos não
suscitaram respostas capazes mas apenas meias tintas, paninhos quentes, ironias
jocosas, observações descabidas. Nada mais lhe resta senão dar por finda a
sua missão “nesta lamentável e espinhosa
controvérsia”,(…) “agradecer as atenções recebidas e desejar de todo o coração
que a luz se faça nas vossas mentes…”
Termina
em acorde crescendo, citando o que a mãe do último rei mouro de Granada disse
ao filho, ao vê-lo chorar pela perda irreparável do seu reino: «Chora agora como criança por aquilo que não
soubeste defender como homem».
À
distância de 50 anos, temos dificuldade em avaliar a pertinência e oportunidade
desta polémica. Sabemos, no entanto, que ela teve larga repercussão no meio
torriense, como não podia deixar de ser numa urbe de reduzida dimensão,
apertada nas malhas do que é hoje o seu Centro Histórico.
Sabemos,
também, que a empresa não se deslocalizou. Ao vermos hoje aquele espaço aberto
da Várzea de Arenes, bem urbanizado e com múltiplos pavilhões de comércio e
pequenas indústrias , já não conseguimos imaginá-lo como ele era no início dos
anos 60: boas terras de amanho agrícola,
onde medravam hortas e pomares, mas alagadiço e sujeito a cheias frequentes. Um
longo caminho se andou e a Casa Hipólito construiu ali imponentes conjuntos de naves
fabris, escritórios e um refeitório de belo recorte modernista.
Mal
sabia João da Costa Miranda, o interveniente emigrante de 1965, que o seu apelo viria a ter dolorosa
actualidade trinta e poucos anos depois,
quando a falência decretou a morte da empresa a que ele chamava a “galinha que põe ovos de ouro"
Joaquim
Moedas Duarte
19
de Setembro de 2015
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