Este texto é o ponto de partida para o segundo ano deste Mestrado. Um trabalho que consideramos necessário e útil para a preservação das memórias torrienses ligadas ao seu Património Industrial.
CASA HIPÓLITO: HISTÓRIA, MEMÓRIAS E PATRIMÓNIO DE UMA
FÁBRICA TORRIENSE
«A vida é memória,
colecção de imagens fabulosas e um olhar desolado que as contempla; um olhar
que vem através da noite do infinito e brilha, dentro em nós, como a própria
luz da consciência.» (Teixeira de Pascoaes)[1]
PONTO DE PARTIDA
Em 29/12/1999, sob o título «O triste fim de ano dos trabalhadores da Casa Hipólito» lia-se no
jornal PÚBLICO: «Os últimos 400
trabalhadores da metalurgica Casa Hipólito, dos 1400 iniciais, estão
desesperados após a falência da empresa decretada há um mês. A dívida em
indemnizações e salários em atraso ascende a um milhão de contos. O plano de
recuperação da casa tornada famosa pelos seus candeeiros a petróleo, segundo os
empregados, foi marcado por incumprimentos e pela delapidação de um vasto
património, que já nem chega para um quarto das dívidas.»
A unidade industrial de que aqui se fala
marcou todo o século XX da vila de Torres Vedras – elevada a cidade em 1979. Teve
origem na pequena oficina de latoaria de António Hipólito, em 1900, e ao longo
do século cresceu, tornou-se adulta, passou por uma fase de esplendor, entrou
em decadência e extinguiu-se no ultimo ano do século. Milhares de braços lá
trabalharam, tornando próspera a empresa Casa
Hipólito que, pouco a pouco, se firmou no mercado nacional e, a partir da
Segunda Guerra Mundial, cresceu para o mercado externo com um significativo
volume de exportações. Especializou-se em maquinaria ligeira para a lavoura
vitivinícola – o grande sector produtivo do concelho torriense – e em material
de queima como fogareiros a petróleo e, mais tarde, candeeiros portáteis
“Petromax” e aparelhos de gás.
A pequena latoaria transformou-se
na Fábrica A a laborar em pleno
núcleo urbano de Torres Vedras, expandindo-se, depois, com a Fábrica B, nos arredores da vila e em
múltiplas instalações de armazenamento, comércio e serviços sociais localizados
em pontos diversos da urbe. António Hipólito, o latoeiro que viera de Alcobaça
em busca de uma oportunidade de trabalho, foi agraciado pelo Governo português,
em 1930, com a Comenda da Ordem de Mérito
Agrícola e Industrial[2] - num reconhecimento
público pelo seu contributo para a economia regional e nacional.
A Casa Hipólito imprimiu um sinal indelével na memória colectiva
torriense. Havia famílias completas na fábrica, pais e filhos, às vezes em
gerações sucessivas. Muitos vinham das aldeias dos arredores, campesinos que se
tornavam operários e que acumulavam os dois modos de vida. Da presença tutelar
da Hipólito ficou a memória que
muitos ainda hoje desfiam com saudade, lamentando o seu desaparecimento que
teve, naturalmente, consequências gravosas nos rendimentos das famílias e, por
via disso, no comércio local.
De notar que a existência da Casa Hipólito induziu o aparecimento de outras empresas concorrentes na
mesma área de produção, a mais importante das quais foi a empresa FAS – Francisco António da Silva. Torres
Vedras chegou a ser, assim, um importante pólo das indústrias metalúrgicas ligadas
ao sector agrícola vitivinícola de que o concelho é um dos principais expoentes
a nível nacional.
Em paralelo com a vida da fábrica Hipólito enraizou-se na
sociedade torriense a família do fundador, António Hipólito, que ainda hoje tem
expressão bem visível na numerosa descendência. Quando aquele morreu, em 1954,
a fábrica ficou entregue aos quatro filhos – António, João, José e Alberto – e
ao genro Vasco Parreira. Este acabou por se tornar o administrador principal e
erguer a fábrica ao ponto mais alto da sua evolução. Está por escrever a
história desta família que marcou a vila, uma linhagem operária que se guindou
à classe média, com todas as virtudes e defeitos de um percurso hipoteticamente
exemplar da evolução da própria sociedade portuguesa.
TEMA
Propomo-nos estudar e descrever a história desta empresa,
para que dela perdure um conhecimento fundamentado do que foi, do que fez e do
que significou para a comunidade envolvente a sua prosperidade, decadência e
morte. Este será o tema central do nosso trabalho - inspirado no programa de
salvaguarda do património industrial inserto na Carta de Nizhny Tagil, de Julho de 2003, e nos Princípios de Dublin, de Novembro de 2011, que a completaram. Este
movimento, relativamente recente no percurso já secular da defesa do Património,
tem tido em Portugal uma crescente expressão bem visível nos numerosos museus
dedicados ao trabalho em geral e à indústria em particular, uma realidade que acompanhou
a tendência europeia que se verificou sobretudo a partir da segunda metade do
século XX, no pós Segunda Guerra Mundial, resultante do trabalho de
reconstrução e de recuperação de memórias destruídas pelo conflito. Se é certo
que a Sousa Viterbo se deve a primeira utilização conhecida em Portugal da
expressão “arqueologia industrial”–
num artigo por ele escrito em 1896[3] – só muito mais tarde ela
viria a ser generalizada, acompanhando um surto importante de trabalhos
dedicados ao património industrial. Hoje é possível escorar a investigação na
área do património industrial num complexo teórico/prático assinalável, de que
os contributos de Jorge Custódio, José Amado Mendes, Paulo Oliveira Ramos,
Deolinda Folgado e outros são expressão significativa.
PROBLEMATIZAÇÃO
Torres Vedras, terra onde se instalou durante o século XX
uma florescente indústria de metalurgia ligeira, não acautelou os vestígios
desse passado. Da existência material da Casa
Hipólito nada resta a não ser alguns objectos da sua produção. Máquinas e
edifícios foram vendidos para satisfazer dívidas aos credores e aos trabalhadores.
Contudo, é justo referir que a Câmara Municipal de Torres Vedras, já neste
século, decidiu intervir para salvaguardar o que restava do espólio da empresa,
vandalizado nas instalações abandonadas. Esse acervo está hoje à guarda do
Museu Municipal Leonel Trindade e encontra-se em fase de inventariação.[4] É constituído por dossiês
de documentação administrativa e espólio de desenho técnico, ali guardados com o objectivo de «preservar e promover o valor patrimonial e social do
arquivo da Casa Hipólito como garante principal para aqueles que procuram
informação sobre a temática da indústria no Concelho de Torres Vedras.» - no dizer do site da Câmara Municipal de Torres
Vedras.
OBJECTIVO
Se os vestígios edificados bem como
a maquinaria da Casa Hipólito já não
existem, há uma área que ainda é
possível estudar e salvaguardar - aquela que os Princípios de Dublin definem como «(…) os documentos que testemunham processos industriais antigos ou
corrente de produção(…)» (Ponto 1) ou «(…)
as dimensões imateriais suportadas pela memória (…)» (Ponto 2). Os
documentos fazem parte do espólio à guarda do Museu, que acima referimos; a memória reside em muitos torrienses que
trabalharam na Casa Hipólito e que
anseiam por dar testemunho, bem como em escritos da imprensa local que se
encontram no arquivo da Biblioteca Municipal de Torres Vedras. São vestígios
históricos de valor desigual mas imprescindível para fixar em letra perene o
que, como memória colectiva, é precário e contingente.
Propomos como objectivo da nossa
dissertação o estudo destes vestígios bem como a recolha de testemunhos orais mais
significativos. É uma área em que se cruzam memória
e história, termos aparentemente
antitéticos mas que se completam quando abordados a partir de metodologias
rigorosas e que, como demonstrou Pierre
Nora, constituem o fundamento dos lugares
de memória em que se ancora decisivamente a identidade dos grupos humanos.
A Casa Hipólito é um desses lugares,
situado no território do património industrial, em que se cruzam valores
simbólicos e elementos identitários[5] ainda hoje tão importantes
para a comunidade humana torriense. A este propósito já escrevemos noutro
lugar:
«Quando a “Casa Hipólito” ou a “Fundição de Dois
Portos” – indústrias locais de Torres Vedras que prosperaram no séc XX – se
afundam na falência e fecham as portas, tal significa o apagamento súbito de um
passado recente cuja memória urge preservar para que as novas gerações entendam
as razões do vazio sócio-económico que se instalou numa cidade subitamente órfã
da sua prosperidade.»[6]
METODOLOGIA
Que
metodologia seguir? Qual a mais adequada para o que nos propomos realizar?
Em
1971 Paul Veyne lançou uma asserção polémica: «Não existe método da história porque a história não tem nenhuma
exigência; ela está satisfeita desde que se contem coisas verdadeiras.»[7]
Provavelmente, pretendia resgatar a frescura inicial das narrativas históricas
– como a gesta de Gilgamesh ou as páginas de Fernão Lopes – do pesado aparato
da heurística e da hermenêutica e com isso terá reaberto caminhos que a prática
cerradamente objectivista da historiografia dos Annales parecia estreitar.
Entre
uma e outra tendências, não haverá um caminho
do meio? Parece-nos atrativa a desconstrução de Paul Veyne, - que afinal
não pôs em causa a morosa marcha da historiografia em direcção ao estatuto
científico, em que ele, aliás, se empenhou - porque abriu novas perspectivas de análise ao
historiador. Mas não partilhamos a radicalidade da negação metodológica. Quem
caminha deve ter um mapa e um propósito de chegada, mesmo que esteja aberto a
inesperadas veredas. Partilhamos a ideia de que não há construção da História
sem projecto orientador pois ela exige «processos
erigidos que procuram conhecer o objecto de trabalho de forma total e
sistemática».[8]
Há
uma experiência acumulada de prática metodológica que deve estar presente em
qualquer trabalho de carácter histórico. A escolha criteriosa das fontes e o
cruzamento das informações que elas facultam, a definição das balizas
cronológicas, a delimitação do campo de análise, a comparação com outros
trabalhos realizados na mesma área temática, a análise dos documentos a partir
de novos instrumentos conceptuais, a procura de diferentes perspectivas de
abordagem – tudo isso faz parte da ferramenta que o historiador deve ter à mão
e manusear com perícia e flexibilidade.
Assim
sendo, passemos aos aspectos metodológicos concretos. O tema e os objectivos do
nosso trabalho têm como suporte documental quatro núcleos fundamentais de
fontes:
1. o
Fundo da Casa Hipólito;
2. as
informações dispersas por Arquivos
diversos (estatísticas, relatórios, registos, actas);
3. os
testemunhos orais a recolher em
entrevistas ou depoimentos escritos;
4. as
notícias, reportagens e textos de opinião contidos na imprensa local.
A abordagem dos
pontos 1 e 2 supõe metodologias indutivas mistas de carácter
qualitativo e
quantitativo, de modo a seriar e interpretar os dados à medida que forem recolhidos.
Será uma fase morosa de análise de conteúdos que levará à sua classificação e interpretação,
em paralelo com o cruzamento de dados e confrontação de informações.
O núcleo 3, pela sua especificidade, suscita-nos algumas reflexões
preliminares. Ele tem a ver com as memórias - a memória colectiva e a memória
social, - noções que encontramos em muitos textos com uma carga semântica
equivalente. A primeira criou raízes com as obras de M. Halbwachs e tem maior
uso no mundo francófono; a segunda está mais ligada ao universo anglófono[9].
Contudo, parece-nos que, nas margens da semelhança semântica, há zonas
autónomas que talvez possam ser consideradas. É a regularidade e persistência
das manifestações culturais e o seu reconhecimento como património por um grupo
social que confere à memória colectiva o carácter de memória social. Isto é: o
conceito de memória colectiva
aplica-se às formas indiferenciadas e inorgânicas com que o passado se
apresenta à memória de um grupo humano: os mitos, as narrações fabulosas, a
recordação de factos transfigurada por narrativas mais ou menos fantasiosas.
Essa amálgama que se esbate num passado comum constituirá a base de uma memória colectiva. Terá sido este o
entendimento de Jacques Le Goff quando escreveu:«preferir-se-á reservar a designação de memória colectiva para os povos
sem escrita» [10].
Já o conceito de memória social poderá
aplicar-se às formas organizadas de abordar o passado, - caso da historiografia, na perspectiva da função social da história, -
bem como ao reconhecimento/apropriação de sinais específicos (monumentos,
património material) e de manifestações culturais (património imaterial)
susceptíveis de conferir consciência identitária a um determinado grupo humano.
Paul Ricoeur descreveu este processo como a passagem da memória/matriz para a memória
instruída pela História – processo não tão linear quanto parece. É que
entre a memória e a História há um espaço conceptual percorrido pela escrita
historiográfica, muitas vezes em confronto com os dados parcelares e
tendencialmente subjectivos da memória.[11]
É a partir destes pressupostos –
aqui enunciados de forma sintéctica - que
a recolha e o tratamento dos testemunhos orais dos operários e outros
trabalhadores da Casa Hipólito, base
de um corpus organizado de memórias a
preservar em arquivo histórico, concretizará a transmutação da memória colectiva do que foi aquela
fábrica ao longo de um século, em memória
social, enquadrada e contextualizada na História Local, elemento
imprescindível para o enriquecimento da consciência identitária da comunidade
torriense.[12]Temos
em conta que a recolha de testemunhos - histórias de vida integradas no
contexto de um grupo social de características operárias,[13]- levanta problemas específicos
de tratamento e sistematização se for realizada numa perspectiva antropológica.
Não é o caso do que nos propomos fazer pois apontamos para a simples recolha de
testemunhos – em suporte fotográfico, com o correspondente registo escrito.
De que modo será feita essa
recolha? Tendo em conta o elevado número de trabalhadores da Casa Hipólito
ainda vivos e/ou disponíveis, haverá que fazer uma amostragem, o que supõe a
definição de critérios de selecção. Dispomos de fontes de acesso – registos
administrativos, União dos Sindicatos de Torres Vedras ou o processo judicial
da falência da empresa, por exemplo – mas ainda não definimos os critérios mais
significativos para a amostragem pretendida, operação que reservamos para uma
fase posterior do trabalho.
Os testemunhos recolhidos, depois
de editados, são destinados, por um lado, a um dos capítulos da nossa
dissertação; por outro, a uma mostra a
integrar numa exposição temporária ou num futuro pólo museológico dedicado à
indústria vitivinícola torriense, procurando adaptar a Torres Vedras uma
experiência realizada com êxito no Museu Marítimo de Ílhavo, a chamada Caixa da Memória, em que a memória dos
pescadores será aqui substituída pela dos operários da Casa Hipólito.[14] Parece-nos um bom e profícuo
exemplo de como enfrentar a “crise da
memória” de que fala o autor daquela experiência quando refere:
«O turbilhão pós-moderno reabilitou a importância
integradora do local, reanimou as pequenas e singulares narrativas, como
despertou o interesse por certos grupos sociais marginalizados.»[15]
Outra questão metodológica prende-se com o âmbito local de que fala este autor. De facto,
o estudo e a preservação destas memórias projecta-as para o âmbito da História
Local, um ramo da historiografia que tem vindo a ganhar importância crescente.
Também aqui se destaca Torres Vedras com a realização anual de encontros de
História Local sob a designação de Turres
Veteras e que já vai na 17ª edição, com Actas publicadas de todos eles.[16] É, para nós, uma
motivação suplementar podermos concretizar um pequeno contributo para este
caudal de investigação e escrita historiográfica. A este propósito foi-nos muito útil a
reflexão de Francisco Ribeiro da Silva que caracteriza de forma rigorosa e bem sistematizada
este tipo de trabalho historiográfico.[17] Identificamo-nos,
sobremaneira, com as indicações dadas quanto aos princípios metodológicos de
que destacamos a «terceira norma:
escolher um tema de que se goste.» Com efeito, a nossa opção envolve uma
grande componente afectiva. Conhecemos muita gente que trabalhou na Hipólito, acompanhámos as lutas
sindicais pela preservação dos postos de trabalho, testemunhámos a angústia dos
trabalhadores e de alguns dos membros da família Hipólito quando a empresa
iniciou a marcha descendente que a levaria ao abismo. Contar esta história é
dar expressão à memória colectiva de uma comunidade que ainda hoje parece órfã
da prosperidade perdida e de prestar tributo moral a centenas de obreiros que
fizeram da Casa Hipólito uma marca de
prestígio nacional e internacional.
Abordemos, por último, a questão
metodológica relacionada com o tratamento do núcleo 4 das fontes. Trata-se da
recolha e tratamento de informações a partir do corpus da imprensa local constituído por todos os periódicos
publicados em Torres Vedras desde 1900 até 2010.
Qual a importância e a relevância da imprensa
como fonte de estudo da História Local? Em Torres Vedras existe imprensa
local desde 1885[18]. Entre
essa data e 1935 surgiram 21 títulos, entre semanários, quinzenários,
trimensais e mensais, com tempos de vida muito variáveis, de acordo com as
circunstâncias. 1935 é uma data de referência, relacionada com a afirmação do
Estado Novo, de cariz totalitário, e corresponde ao ano a partir do qual rareou
o aparecimento de novos títulos. A partir daí até 1974 apenas se contam 4 novos
jornais, de periodicidade variável. Em 1948 surgiu o jornal BADALADAS, uma folha paroquial com saída
mensal, mais tarde quinzenal e, a partir de 1960, semanal, o qual viria a
tornar-se o órgão da imprensa local de referência e que ainda hoje se publica,
com uma tiragem de cerca de 12 000 exemplares. Após 1974, ano da revolução
do 25 de Abril, surgiram três novos semanários, com existência mais ou menos
longa, - mas sempre de alguns anos, ou mais de uma década. – e ainda várias
revistas ou jornais centrados na área cultural.
O
reconhecimento da imprensa regional como fonte histórica é hoje comummente
aceite, seja no âmbito da chamada Micro-História, seja no da História Cultural,
das Mentalidades, do Quotidiano, etc. Há uma relação óbvia entre os limites de
actuação desta imprensa e o âmbito restrito das abordagens históricas focadas
no local, no particular, numa célula social ou num espaço delimitado geografica
e cronologicamente. Apesar de dirigida ao conceito lato de imprensa, parece-nos
elucidativa esta citação de António Nóvoa:
«A análise da imprensa permite
apreender discursos que articulam práticas e teorias, que se situam no nível
macro do sistema, mas, também no plano micro da experiência concreta, que
exprimem desejos de futuro ao mesmo tempo que denunciam situações do presente.»[19]
Lucas
S. Vieira[20],
sublinhando a importância da imprensa como fonte histórica, reconhece que ela é
cada vez mais um instrumento de pesquisa em todas as áreas das ciências sociais
e humanas, estando já distante o tempo em que «a imprensa era considerada como fonte suspeita (…) pois apresentava
problemas de credibilidade.» E mais adiante: «Nestas últimas décadas incorporamos a perspectiva de que todo
documento, e não só a imprensa, é também monumento.»[21]
É
nesta perspectiva que a análise sistemática da imprensa local dirigida a uma
bem definida área de estudo – neste caso, a Casa
Hipólito e a actividade vitivinícola
local - permitirá obter informações
importantes para o conhecimento desta parcela da História Local torriense.
Pelas
pesquisas preliminares que já fizemos, todos esses dados estão disponíveis mas
dispersos, na penumbra das prateleiras de arquivo, à espera de quem os resgate
do esquecimento. Há uma memória social da comunidade torriense que corre o
risco de se diluir na descaracterização resultante do afluxo de novas camadas
populacionais, desenraizadas do tempo e do espaço comuns, que aqui se têm
fixado nas últimas décadas. É contra este apagamento da memória identitária que
urge trazer à luz novos elementos de pertença. As páginas da imprensa local,
onde várias gerações de cidadãos deixaram textos informativos ou de opinião,
merecem ser relidas, agora à luz do nosso presente, para que seja possível ao
presente compreender melhor o passado e ao passado estar de novo presente.
Posto
isto, haverá que definir as várias etapas do trabalho. Vamos seguir de perto
algumas sugestões, induzidas pela leitura de um texto estimulante de Renée
Zicman.[22]
Esta autora aponta o Método da Análise de
Conteúdo como um útil instrumento de trabalho aprofundado nos anos 50 e 60
pela aplicação às várias áreas das Ciências Sociais:
«Este instrumental metodológico polimorfo e polifuncional,
caracteriza-se fundamentalmente como um exercício de desocultação fornecendo-nos
uma melhor ‘descrição’ dos textos e permitindo-nos avançar para além das
significações primeiras dos discursos e escapar dos perigos da compreensão
espontânea.»[23]
Depois
de enumerar os quatro tipos de Análise de
Conteúdo – temática, semiológica, de discurso e de argumentação – a autora
fixa-se na análise temática como
sendo a opção que melhor responde ao trabalho de pesquisa como aquele que
pretendemos realizar. Há que analisar a frequência, o tipo e a relevância de
cada texto sobre a temática que nos interessa, de modo a interrogar, esclarecer
ou completar informações provenientes das outras fontes. Cada entrada
referenciada será registada em fichas separadas que, só por si, constituirão um
manancial de utilidade evidente para a redacção final do nosso trabalho ou,
quem sabe, para outras abordagens a realizar no futuro.
A FECHAR
Parece-nos
oportuno referir que esta proposta de trabalho, sendo de âmbito e responsabilidade
individual de quem a subscreve, se insere no entendimento de que aos cidadãos
compete, cada vez mais, participar activamente na salvaguarda e promoção do
Património Cultural da comunidade de que fazem parte. A nossa inclusão como
membro activo da Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural
de Torres Vedras é a expressão concreta desse entendimento, na linha do que a Convenção de Faro, de 2005, preconiza no
seu Artº 12º - Acesso ao património
cultural e participação democrática, nomeadamente:
«Encorajar
todas as pessoas a participar:
-
No processo de identificação, estudo, interpretação, protecção, conservação e
apresentação
do património cultural;
-
Na reflexão e debate públicos sobre as oportunidades e os desafios que o
património
cultural
representa;
(…)
Reconhecer
o papel das organizações não lucrativas, tanto como parceiros nas actividades
desenvolvidas como enquanto elementos de crítica construtiva das políticas de
património cultural.»[24]
Em Torres Vedras há uma
lacuna notória no que ao Património Industrial diz respeito. Da intensa actividade industrial do século XX –
pois que de épocas anteriores nada se conhece para além da produção artesanal comum a
qualquer vila de cunho marcadamente rural - pouco mais resta do que a memória difusa de
algumas empresas ligadas ao sector vitivinícola. Urge colmatar esta falha
através de estudos parcelares e da consequente exposição pública num futuro
pólo museológico, que contribuam para dar à memória
colectiva a consistência do conhecimento histórico. A nossa maior motivação
é que este trabalho possa ser um contributo válido para esse conhecimento.
*
PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO
Ø Início do trabalho em Setembro de 2014
Ø Cronograma anual desdobrado em cronogramas
mensais, a elaborar oportunamente.
Ø Redacção de Relatórios
de Trabalho mensais, a entregar e debater em entrevista presencial com o
professor orientador
Ø Entrega da dissertação: Novembro de 2015
ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO - PROPOSTA DE ÍNDICE
CASA HIPÓLITO: HISTÓRIA, MEMÓRIAS E PATRIMÓNIO
DE UMA FÁBRICA TORRIENSE
INTRODUÇÃO –
Toca a sirene
PRINCÍPIOS
METODOLÓGICOS – Folha de serviço nº1
PATRIMÓNIO
INDUSTRIAL – O homem fez a indústria e a indústria fez o
homem
CONTEXTO
NACIONAL – A indústria vitivinícola: a fábrica ao serviço
da vinha
CONTEXTO
LOCAL
A urbe torriense no início do séc.XX: demografia
e economia
HISTÓRIA
DE FAMÍLIA
HIPÓLITO – cavalo marinho por terra, de Alcobaça
a Torres Vedras
Fixação
e prole / De operário a Senhor Comendador
Onde
param os descendentes
CASA
HIPÓLITO – UM SÉCULO DE INDÚSTRIA
1900
- Uma latoaria na rua Serpa Pinto
1910
– Metalurgia ligeira alimentada a motor de 5 H.P.
1930
– 2 500 m2, 80 operários, fogões e lanternas
1944
– Casa Hipólito Ldª / Sociedade de pai e filhos na indústria da guerra
1950
– Época de ouro / Morte do fundador (1954)
1960
– 700 operários e exportações em força
1970
– Nova fábrica no Bairro Arenes / Casa Hipólito SARL / Solavancos do
período
revolucionário
1980
– Altos e baixos / Prejuízos, financiamentos de emergência, perda de
competitividade,
desorganização produtiva, gestão pelos credores
1990
– O canto do cisne / Falência e morte
MEMÓRIAS
Sobreviventes
– os que ficaram para contar
O
que diziam os jornais da terra
CONCLUSÃO
O
que resta de tanto labor
RECURSOS E FONTES
BIBLIOGRAFIA
AAVV – Arqueologia
& Indústria. Lisboa: Revista da Associação Portuguesa de
Arqueologia Industrial, nº 1, Julho 1998.
AAVV - Associativismo e
património – Actas do colóquio organizado pela
Associação de Estudo e
Defesa do Património Histórico-Cultural de Santarém,
29 a 30 de Março de 2003. Coord. Maria Emília Vaz Pacheco. Santarém:
Fundação Passos Canavarro, 2003.
AAVV – Patrimonio
industrial:lugares de la memoria. Gijón: Incuna, Associación
de Arqueología Industrial, 2002.
CANDAU, Joël – Antropologia
da memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2013.
CANINAS, João Carlos – Associativismo e defesa do património
(1980-2010). In:
100 anos de património,
memória e identidade. Lisboa: Igespar, 2ª ed., 2011.
CARVALHO, Ana – Os museus e o património cultural imaterial,
estratégias para
o desenvolvimento de boas práticas. Lisboa: Edições Colibri /
CIDEHUS
Universidade de Évora, 2011.
CUSTÓDIO et al. – Museologia
e arqueologia industrial, estudos e projectos.
Lisboa: Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial,
1991.
CUSTÓDIO, Jorge e SANTOS, Luísa – A Real fábrica de fiação de Tomar e a 1ª
geração europeia e americana
de fábricas hidráulicas. Coimbra: Coimbra
Editora, 1990.
FENTRESS, James e WICKHAM,
Chis – Memória social. Lisboa:
Editorial
Teorema, 1992.
FOLGADO, Deolinda e
CUSTÓDIO, Jorge – Caminho do Oriente,
Guia do
Património Industrial. Lisboa: Livros Horizonte, 1999.
GUIMARÃES, Manuel da Silva – História de uma fábrica, a Real fábrica de fiação
de Thomar. Santarém: Edição da Junta
Distrital, 1976.
HALBWACHS, Maurice – La mémoire collective. Paris: Albin
Michel (Nouvelle
édition revue et augmentée),
1997.
LE GOFF, Jacques – Memória. In: Enciclopédia Einaudi, volume 1. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984.
LOPES, Flávio e CORREIA, Miguel Brito - Património arquitectónico e
arqueológico, cartas, recomendações e convenções
internacionais. Lisboa: Livros Horizonte, 2004.
MENDES, J. Amado – Estudos
do património, museus e educação. Coimbra:
mprensa da Universidade de Coimbra, 2ª ed., 2013.
SILVA, Jorge Henrique Pais da – Pretérito presente (Para uma teoria da
preservação do património histórico-artístico). (Texto com a data de
1975). Comissão Organizadora da Campanha
Nacional para a Defesa do Património, s/l, s/d (1978?).
TINOCO,
Alfredo e SOUSA, Élia de – Património industrial e pré-industrial de
Montijo, da obra à memória. Lisboa: Edições Colibri e Câmara
Municipal do Montijo, s/d (2009?)
VAINFAS, Ronaldo – Os protagonistas anônimos da história, Micro-história. Rio
de Janeiro: Editora Campus,
2002.
WEBGRAFIA
ARAÚJO,
Francisca Pereira – Memória e cotidiano: notas sobre a fala de
uma operária de fábricas de
fiação em Campina Grande – Pb. [Em
linha]XII Encontro Nacional de
História Oral – Política, Ética e
Conhecimento,Teresina 6 a 9 de Maio de 2014, Univers. Federal
do
Piauí.[Consult. 12 Julho 2014].Disponível em: http://www.encontro2014.historiaoral.org.br/resources/anais/8/1397490704_ARQUIVO_MemoriaecotidianoI.pdf
FERREIRA, Sónia
– Entre a casa e a fábrica:memórias do
trabalho
operário no feminino. In: AIBR. Revista de antropologia
iberoamericana. [Consult. 9 e Julho 2014]. Disponível
em:
FERREIRA, Maria
Leticia Mazzucchi - Os fios da memória: fábrica
Rheingantz
entre passado, presente e patrimônio.[Em linha] Horizontes
Antropológicos, vol.19 no.39 Porto Alegre Jan./June 2013.[Consult.
10
Julho 2014]. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-
MEMÓRIAS
DO TRABALHO – testemunhos do Porto laboral no século XX.
Candidatura
de projecto à Porto 2001 SA, Capital da cultura, Agosto 1999.
[Consult.
12 Julh 2014]. Disponível em:
FONTES IMPRESSAS E OUTRAS
1. Fundo da Casa
Hipólito, no Museu Municipal de Torres Vedras
2. Arquivo da União Sindical de Torres Vedras
3. Arquivo da Câmara Municipal de Torres Vedras
(Actas do Executivo Municipal, Impostos, licenças…)
4. Arquivos do Registo Predial de Torres Vedras
5. Arquivo do Tribunal da Comarca de Torres Vedras
6. Arquivos dos Ministérios da Indústria, Economia,
Obras Públicas…
7. Anuários e Estatísticas Nacionais
8. Boletim do Trabalho Industrial (Lisboa, Imprensa
Nacional)
9. Imprensa Local de Torres Vedras
10. Entrevistas com membros da família Hipólito
11.
Entrevistas
com antigos trabalhadores da Casa
Hipólito
Torres Vedras, 15 de Julho de 2014
Joaquim Moedas Duarte
[1] Teixeira
de Pascoaes – Livro de memórias.
Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, p. 46
[2] Cf.
jornal A Hora, nº 42, Lisboa, 1936,
p. 30.
[3] Cf. J.
Amado Mendes – Uma nova perspectiva sobre
o património cultural: preservação e requalificação de instalações
industriais. In: Museus e educação.
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2ª ed., 2013, p. 123.
[4] Cf:
Sítio da Câmara Municipal de Torres Vedras [Em linha]. [Consultado em 30 de
Maio de 2014]. Disponível em: : http://www.cm-tvedras.pt/cultura/museu-municipal/doacoes/
[5] Cf: J.
Amado Mendes – Museus e educação.
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2ª ed.,2013, p. 175
[6] J.
Moedas Duarte – Património industrial,
memória do trabalho produtivo. Texto de reflexão no âmbito da Unidade
Curricular História e Teoria do Património, Universidade Aberta, 2013/14.
[7] Paul Veyne – Como se escreve a História. Lisboa:
Ed.70, 1987 (1ª ed. em França:1971) pp. 22-23.
[8] Cf. Carla Alexandra Gonçalves – Metodologia do trabalho científico. Lisboa:
Universidade Aberta, 2012. pp. 19-20
[9] Maria
Isabel João – Memória, História e Educação in: NW noroeste, revista de história, Universidade do Minho, 1, 2005,
p. 85.
[10] Jacques
Le Goff – Memória, in Enciclopédia
Einaudi, volume 1, Memória – História. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1984, p. 14.
[11] Cf.
Paul Ricoeur – Memória, história,
esquecimento. Conferência proferida em Budapeste, 2003. [Consult. 11 Julho
2014]. [Disponível em: http://www.uc.pt/fluc/lif/publicacoes/textos_disponiveis_online/pdf/memoria_historia
]
[12]
Sobre a recolha de testemunhos orais em meio operário, foi-nos útil a leitura
de quatro artigos disponíveis [em linha],
indicados na webgrafia final.
[13]
Cf. James Fentress e Chris Wickham – Memória
social. Lisboa: Editorial Teorema, 1992, p. 142 e sgts. Os autores analisam
as características do que denominam “memórias de classe e de grupo nas
sociedades ocidentais”, apontando alguns problemas inerentes à sua recolha e
estudo.
[14] Cf.
Álvaro Garrido – Culturas marítimas e conservação memorial, a experiência do
Museu Marítimo de Ílhavo. In: Museologia.pt,
nº 3 /2009, pp. 3-11.
[15] Idem, p. 7.
[16] Estes
encontros duram dois dias e são realizados sob a égide do Instituto de Estudos
Regionais e do Municipalismo “Alexandre Herculano”, da Faculdade de Letras de
Lisboa, com a organização e apoio do Sector da Cultura da Câmara Municipal de
Torres Vedras.
[17] Cf:
Francisco Ribeiro da Silva - História local: objectivos, métodos e fontes. [Em
linha] [Consultado em 30 de Maio de 2014]. Disponível em: <: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/3226.pdf
[18]
Torres Vedras seguiu assim
a tendência nacional, anotada por José Tengarrinha - História da imprensa periódica portuguesa. Lisboa: Ed. Caminho, 2ª
ed. 1989. ISBN 972-21-0396-2. p. 233.
[19]
Citado por
Clarice P. Chiareli - A imprensa: um lugar da memória sob o olhar da
História.[Em linha]. Caderno de resumos
& Anais do 2º. Seminário Nacional de História da Historiografia. A dinâmica
do historicismo: tradições historiográficas modernas. Ouro Preto: EdUFOP,
2008. (ISBN: 978-85-288-0057-9) [Consult. 13 Fevereiro 2014]. Disponível em:
[20]
Lucas
Schuab Vieira – A imprensa como fonte para a pesquisa em História: teoria e
método. [Em linha] [Consultado em 13 Fevereiro 2014] Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/vieira-lucas-2013-imprensa-fonte-pesquisa.pdf
[22]
Renée Barata Zicman – História através da imprensa: algumas
considerações metodológicas. [Em linha] Projecto História. Revista do
programa de estudos pós-graduados de História. E-ISSN 2176-2767;ISSN
0102-4442.[Consult. Fevereiro 2014] Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12410
[23] Idem, p. 6
[24] Convenção de Faro [Em linha], disponível
em: http://www.patrimoniocultural.pt/media/uploads/cc/ConvencaodeFaro.pdf
Nenhum comentário:
Postar um comentário