quinta-feira, 6 de março de 2014

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A ESCRITA DA HISTÓRIA



A PARTIR DA CITAÇÃO DE CARLO GINZBURG:


«O conhecimento histórico 
é indirecto, indiciário, conjectural» 


É possível encontrar um sentido explicativo para as acções humanas ao longo do tempo? É pertinente falar-se, ainda hoje, de oposição entre ciências da natureza e ciências humanas? Estas reflexões foram suscitadas por um texto de Carlo Ginzburg[1] que escava na história das ideias e isola o conceito de “indício” como base de um modelo de conhecimento operativo para áreas como a Medicina e a História. Qual o lugar deste modelo no estado actual das ciências históricas?

Comecemos por uma digressão prévia para indagar a validade, as características e os limites do conhecimento[2] histórico, bem como dos métodos para o atingir. Não são problemas novos, vêm sendo abordados há muito. Foi sobretudo com o incremento das ciências naturais no século XIX e as propostas positivistas para o estabelecimento de bases científicas universais que a história passou do patamar narrativo elementar para a abordagem das grandes linhas da evolução do homem em sociedade. Foi o tempo das extensas obras históricas, tributárias da crença de que a exaustividade descritiva que tudo abarcasse seria a base suficiente para o conhecimento científico do passado. Historiadores como Ranke, estabelecem o primado do acontecimento como objecto de estudo da História. Ao historiador compete procurar e inventariar todos os documentos disponíveis a partir dos quais será possível chegar ao conhecimento histórico neutro, objectivamente descrito. «O historiador apenas se propõe descrever as coisas tal como se passaram»[3]. Esta concepção partia da premissa de que o passado seria inteiramente cognoscível e inteligível se dele fosse possível recuperar todos os acontecimentos considerados importantes e colocá-los perante o olhar, à maneira de fotogramas. Daí a elaboração de grandes colectâneas de documentos antigos, de que o Portugaliae Monumenta Historica de Herculano é um bom exemplo. Mas esta era uma prática redutora: não é por se ter disponível um manancial de dados que entenderemos o sentido da sua existência, como acreditavam os positivistas. Esta simples constatação determinou uma inflexão em todas as ciências, em que se incluiu a história, a que Joaquim Barradas de Carvalho chamou de «revolução epistemológica» que «transportou todas as ciências de uma epistemologia com base no conhecimento sensível para uma epistemologia com base no conhecimento inteligível»[4]. E Herculano que havia garantido a preservação de milhares de documentos dispersos por cartórios e conventos de todo o país, foi o primeiro a pôr em prática uma «História crítica de Portugal»[5].

Todavia, a história tem uma história muito mais longa. Desde sempre os homens sentiram necessidade de deixar testemunho para os vindouros, como se quisessem garantir um lugar na história que viesse a ser feita no futuro. Esse é o significado primitivo do monumento[6], tal como Trajano o perpetuou na célebre coluna. A história escrita, nascida com Heródoto, inicia com Tucídides o caminho da inteligibilidade racional que será retomada, muitos séculos depois, pela historiografia alemã oitocentista, fundadora da moderna ciência histórica.[7]O percurso dos que escreveram história ao longo dos séculos passou pela intencionalidade glorificadora do poder, deteve-se na crença de que ela poderia ser mestra da vida e moralizadora de costumes, anunciou-se como «clara certidão da verdade» e foi, até, entretenimento de cortesãos e dos próprios historiadores. É patente, desde pelo menos o séc. XVII - com Mabillon e Espinosa, entre outros -  a preocupação pela crítica do documento como fonte histórica, o que levou Marc Bloch a escrever que «desde então as regras essenciais do método crítico estavam, em suma, fixadas»[8]. O que significa que a história não tinha de se adequar ao paradigma da metodologia científica aplicada às ciências ditas exactas porque já havia encontrado o seu próprio caminho.

Mas não foi um caminho ameno. A complexificação da vida em sociedade supõe formas equivalentes de a analisar. A sociologia desbravou mato por todo o séc. XIX e entrou no seguinte com o equipamento necessário à análise social. Podemos dizer que a história evoluiu em paralelo como uma sociologia do passado humano. Mas se assim foi, por que razão continuou a ser, durante tanto tempo, objecto de controvérsia, ou, até, uma fonte de equívocos[9]?

J. Le Goff aborda esta questão a partir do que ele chama «Paradoxos e ambiguidades da história»[10]. Desde logo porque a palavra história pode ter três significados: o que aconteceu, o relato do que aconteceu e uma ficção que nunca aconteceu. A afirmação da história como disciplina das ciências humanas e a defesa da sua cientificidade confronta-se com esta ambiguidade que está no centro das teorias da história, desde Benedetto Croce a Collingwood. Alguns historiadores do séc. XIX, como vimos, acreditaram na possibilidade de uma história exaustiva e objectiva, aceite por todos como o eram os axiomas matemáticos. Outros, como Marx, partiram da análise dos dados disponíveis e julgaram ter encontrado as leis que explicam toda a evolução histórica. Era a afirmação de uma história racional, a opor àqueles que teimavam em não lhe reconhecer um estatuto científico pleno. A primeira metade do séc. XX, com a brutal emergência dos nacionalismos e a expansão das experiências políticas fundadas na visão marxista, foi determinante para a evolução decisiva da forma de escrever a história e responder, pela positiva, aos seus detractores. Foram os historiadores dos Annales, em França – com destaque para Lucien Fevre e Marc Bloch - que, a partir dos anos 30, pugnaram decisivamente contra o pressuposto teórico de irmanar a história com as ciências da Natureza, afirmando a especificidade do seu objecto de estudo contra as pretensões neo-positivistas do Círculo de Viena. A história, mais do que estudo do passado, é «a ciência dos homens no tempo», como escreveu Marc Bloch, feita por homens a partir das perspectivas do seu próprio tempo. Por isso «o passado é uma construção e uma reinterpretação constante»[11] e ao historiador compete tanto descrever como compreender.

Estava aberto o caminho para o que veio a chamar-se a Nova História que «é, antes de mais, uma história sempre nova»[12]onde cabem não só os grandes temas tradicionais da política, da evolução económica e dos movimentos sociais como também os das mentalidades, dos grupos minoritários e todos os recantos da vida quotidiana, desde o consumo ao corpo, da sexualidade à vida privada.

Esta evolução – já referida como pan-historização ou história bulímica[13]- tem potencialidades positivas ou negativas consoante a qualidade das abordagens. Jacques Le Goff alerta para os perigos de uma história anedótica, alimentada pela frivolidade das descrições superficiais destinadas a um público ávido e pouco exigente.[14]Aponta como alternativa a contextualização dos estudos do quotidiano «no seio de uma análise dos sistemas históricos, que contribuam para explicar o seu funcionamento».[15]

É neste ponto que introduzo a citação de Carlo Ginzburg, retirada de um texto incluído numa colectânea do mesmo autor[16]:

«Mesmo que o historiador não possa deixar de se referir, explicita ou implicitamente, a séries de fenómenos comparáveis, a sua estratégia cognoscitiva assim como os seus códigos expressivos permanecem intrinsecamente individualizantes (mesmo que o indivíduo seja um grupo social ou uma sociedade inteira). Nesse sentido, o historiador é comparável ao médico, que utiliza os quadros nosográficos para analisar o mal específico de cada doente. E, como o do médico, o conhecimento histórico é indirecto, indiciário, conjectural.» 

Apesar de publicado muitos anos depois da primeira revolução dos Annales o seu autor ainda sente necessidade de se referir à velha querela: «talvez possa ajudar a sair dos incómodos da contraposição entre “racionalismo” e “irracionalismo” – diz na introdução do texto intitulado «Sinais, raízes de um paradigma indiciário». Este pequeno ensaio é um exercício de erudição em torno do conceito de indício de que o autor encontra exemplos em múltiplas referências históricas. O primeiro é um método usado por um crítico de arte, G. Morelli, que consistia na atenção prestada aos pormenores na apreciação de quadros de pintura, com o intuito de descobrir a sua autenticidade. Determinados indícios, resultantes de características aparentemente pouco importantes, eram decisivos para a atribuição da autoria. C. Ginzburg (CG) mostra como este método indiciário teve uma enorme importância para Freud e a sua psicanálise e, paralelamente, chama a atenção para as tramas policiais de Conan Doyle. Em todos os casos estão médicos envolvidos e é notório que o hábito e a necessidade de diagnosticar doenças a partir de sinais, indícios ténues, levou-os a alargarem tal método a outras áreas de investigação. CG recua na história e encontra na actividade dos caçadores pré-históricos e nos adivinhos da Mesopotâmia o mesmo recurso à observação minuciosa de detalhes com vista a descobrir pistas de caça ou sinais de acontecimentos futuros. Trata-se, pois, no entender de CG, de uma competência que vem da noite dos tempos, que garantiu durante milénios a sobrevivência humana. Contudo, a afirmação do «paradigma científico centrado na física galileana» desvalorizou esta forma de conhecimento. CG refere que a história, onde não há lugar para a experimentação e a repetibilidade, sempre esteve de fora do paradigma galileano e que foi no séc. XVII que os avanços da historiografia chamaram a atenção para o carácter indiciário do conhecimento histórico – o «método crítico» de que falava M. Bloch, como já referimos, e que Carbonell ilustra exuberantemente na listagem de documentos publicados por toda a Europa nesse século[17].

Para CG o paradigma galileano não se aplica à medicina ou à história, áreas em que o objecto de estudo é iminentemente individualizante. Parece persistir a ideia de fragilidade da medicina, incapaz de alcançar o rigor próprio das ciências[18], ou da história cuja base de estudo é o indivíduo, o homem. Porém, como CG conclui, «este tipo de rigor é não só inatingível mas também indesejável para as formas de saber mais ligadas à experiência quotidiana»[19]. Ele não explica esta afirmação que, fora do contexto de uma obra já vasta, poderá parecer polémica. A verdade é que a prática historiográfica de CG mostra uma preferência que se situa nos antípodas da história tradicional quando escolhe como objecto de estudo a vida de um anónimo moleiro em O queijo e os vermes. Naturalmente, a abordagem metodológica não pode ser a mesma da grande história social, da demografia ou da história económica, ela terá de usar outros meios mais subtis na procura de sinais e indícios que terá de encontrar em fontes muitas vezes inusitadas. Mas podemos perguntar: será este modelo muito diferente do tradicional modelo heurístico-hermenêutico há muito consolidado na historiografia?

Neste ponto consideramos que seria necessário acrescentar que, em história, o método indiciário, só por si, não é fiável. É um recurso em situações de investigação pouco documentadas, em passagens estreitas, em passos mal iluminados, em que a intuição (a firasa árabe que CG refere no final do seu texto) pode desempenhar um papel importante. Mas ela terá de ser confirmada com dados mais complexos e amplos que funcionem como meios de prova posteriores. Caso contrário, como bem diz um leitor esclarecido deste texto, tememos que CG tenha «colocado a historiografia em um campo minado», no qual a «pesquisa se situa na vizinhança do místico, do sagaz, do imponderável, do mágico.»[20]

Uma ideia subliminar em todo o ensaio de CG é a de que a eficácia do investigador/historiador na decifração dos indícios depende da sua competência em ler o que parece oculto e da adesão interior a todo o processo. É bem conhecida a famosa metáfora do caçador que procura os sinais da presa no labirinto da floresta. Só isso lhe permitirá atingir o conhecimento histórico através de conjecturas. Curiosamente encontramos formulações similares em historiadores como Marc Bloch ou José Mattoso, bem distantes da micro-história que usualmente se associa aos estudos de CG. O primeiro tem uma frase que se tornou clássica: «O bom historiador, esse, assemelha-se ao monstro da lenda. Onde farejar carne humana é que está a sua caça.»[21] E José Mattoso numa conferência, em 1986, sobre “A escrita da história”, referiu-se insistentemente à importância dos indícios: «Nada daquilo que se quer conhecer existe já. Só o podemos apreender por meio de indícios dispersos…»[22]. E mais adiante: «O esquema orientador deste trabalho não é apenas de natureza científico, ou seja, lógico, racional e discursivo. Tem de se inspirar também nos processos da imaginação e da perspicácia. É preciso detectar as anomalias, fazer falar indícios mudos…»[23]. Mattoso diz também que esta capacidade de decifração implica uma mobilização interior - «exercício contemplativo» - e poética: «a observação atenta do real, da ‘espantosa realidade das coisas’, como diz Alberto Caeiro»[24].

Em conclusão, podemos dizer que hoje parece ultrapassada a antiga e muito debatida oposição entre metodologias. A complexidade do mundo em que se insere a natureza e a história dos homens requer formas diferenciadas de o estudar e explicar. Os métodos devem adaptar-se aos objectos de estudo e não o contrário. A historiografia actual dispõe hoje de um manancial quase infinito de recursos metodológicos que não suporta a menorização que porventura lhe queiram atribuir – de que são exemplo certas concepções irracionalistas surgidas com o chamado pós-modernismo. Qualquer manual de teoria da história – ou até de filosofia – enumera os passos do método histórico, desde a heurística à crítica dos documentos e à elaboração da síntese – reforçados com o enorme desenvolvimento das chamadas disciplinas auxiliares da história.

Mas tais recursos nada são sem o homem que os utiliza, à semelhança, aliás, de qualquer outra disciplina científica. E apesar deles, continua a ser imprescindível a capacidade para discernir, perscrutar, imaginar, pôr hipóteses. E chegar ao conhecimento histórico a partir de metodologias adaptadas a cada área de estudo, seja o moleiro de CG ou a identificação de um país, de José Mattoso.








[1] GINZBURG, Carlo – Sinais, raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais. Morfologia e história. S. Paulo, Companhia das letras, 1991.pp.143-179.
[2] Tomamos o conceito de conhecimento no sentido que lhe é dado pela epistemologia na perspectiva de Bachelard que “instala uma ruptura essencial entre o senso comum e a ciência”.(Cf ANTUNES, Alberto; ESTANQUEIRO, António; VIDIGAL, Mário – Dicionário breve da Filosofia. 4ª ed. Lisboa: Editorial Presença, 2000. p.61)
[3] BLOCH, Marc - Introdução à História. [s.l], Publicações Europa-América, 1974.p. 121.
[4] CARVALHO, Joaquim Barradas de – Da história-crónica à história-ciência. Viseu: Livros Horizonte, colec. Horizonte, nº 16, 1972. p. 54; 89 e sg.
[5] Idem, p. 90.
[6] CHOAY, Françoise – Alegoria do património. 2ª ed. Lisboa: Edições 70, 2013. ISBN 978-972-44-1205-4. p.18.
[7] CARBONELL, Charles-Olivier – Historiografia. Lisboa: Editorial Teorema, 1987. p. 19.
[8] BLOCH, Marc – op.cit. p. 78.
[9] «Estas dificuldades não são vícios de método, são equívocos bem fundamentados.» - diz Paul Ricoeur, citado por LE GOFF, Jacques – História. In: Enciclopédia Einaudi, Memória-História. Volume I, Porto: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985. p. 161.
[10] LE GOFF, J. ob.cit., p. 160 e 162.
[11] Idem, p. 163.
[12] CARBONELL, Charles-Olivier – op.cit. p. 157.
[13] LE GOFF, Jacques –op.cit. p. 242.
[14] LE GOFF, Jacques – A história do quotidiano. In: História e nova historia – DUBY,G.[ et al.] Viseu, Editorial Teorema, 1986. p. 78.
[15] Idem, p. 79.
[16] GINZBURG, Carlo – op.cit. pp.156-157.

[17] CARBONELL, Charles-Olivier – op.cit.. p. 98 e seg.
[18] GINZBURG, Carlo – ob.cit., p.166.
[19] Idem, p.178.
[20] CUNHA, Marcus Vinicius da – História da educação e retórica, ethos e pathos como meios de prova. [Em linha]. Scielo Boooks. [Consultado em 18 Janeiro 2014].p. 18. Disponível em: http://books.scielo.org/id/8w6rd/pdf/silva-9788579831294-02.pdf
[21]BLOCH, Marc – op.cit.p.28.
[22] MATTOSO, José – A escrita da história, teoria e métodos. Lisboa: Editorial Estampa, 1997. ISBN 972-33-1279-4. p.18-19.
[23] Idem, p. 25.
[24] Ibidem, p.18.


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BIBLIOGRAFIA

ANTUNES, Alberto; ESTANQUEIRO, António; VIDIGAL, Mário – Dicionário breve da Filosofia. 4ª ed. Lisboa: Editorial Presença, 2000. 
AUDOIN-ROUZEAU, Stéphane  [et al.] – Os historiadores. Lisboa: Editorial Teorema, 2005. ISBN 972-695-641-2.     
BLOCH, Marc. Introdução à História. [s.l], Publicações Europa-América, 1974.
CARBONELL, Charles-Olivier – Historiografia. Lisboa: Editorial Teorema, 1987.
CARVALHO, Joaquim Barradas de – Da história-crónica à história-ciência. Viseu: Livros Horizonte, colec. Horizonte, nº 16, 1972.
CHOAY, Françoise – Alegoria do património. 2ª ed. Lisboa: Edições 70, 2013. ISBN 978-972-44-1205-4.
CONNERTON, Paul – Como as sociedades recordam. Oeiras: Celta Editora. 1ª edição, 1993. ISBN 972-8027-07-9.
CUNHA, Marcus Vinicius da – História da educação e retórica, ethos e pathos como meios de prova. [Em linha]. Scielo Boooks. [Consultado em 18 Janeiro 2014]. Disponível em: http://books.scielo.org/id/8w6rd/pdf/silva-9788579831294-02.pdf
DUBY, Georges [et al.] - História e nova história. Lisboa: Editorial Teorema, 1986
GINZBURG, Carlo – Sinais, raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais. Morfologia e história. [Em linha].S. Paulo, Companhia das letras, 1991.p.143-179. [Consultado em 10 Jan 2014]. Disponível em:  http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/82454/mod_resource/content/1/Ginzburg_carlo.pdf
GINZBURG, Carlo – A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991. ISBN 972-29-0256-3.
GONÇALVES, Carla Alexandra – Metodologia do trabalho científico. Lisboa: Universidade Aberta, 2012.
LE GOFF, Jacques – A história do quotidiano. In: História e nova historia – DUBY,G.[ et al.] Viseu, Editorial Teorema, 1986.
LE GOFF, Jacques – História. In: Enciclopédia Einaudi, Memória-História. Volume I, Porto: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985.
MARROU, H.-I. – Do conhecimento histórico. Lisboa: Editorial Aster, 2ª ed. [1968?].
MATTOSO, José – A escrita da história, teoria e métodos. Lisboa: Editorial Estampa, 1997. ISBN 972-33-1279-4.



DOCUMENTOS INTERNACIONAIS SOBRE A SALVAGUARDA DO PATRIMÓNIO



CARTA DE ATENAS (1931)

Deste importante documento (“o primeiro acto normativo internacional exclusivamente dedicado ao património” [1]), destaco o ponto VII b), “Papel da educação no respeito pelos monumentos”. Depois de alguns considerandos, diz textualmente:
“…que os educadores sensibilizem a infância e a juventude para que evitem degradar os monumentos, quaisquer que eles sejam, e lhes ensinem a se interessarem, de uma maneira geral, pela protecção dos testemunhos de todas as civilizações.”[2]
Hoje é um lugar comum evidenciar o valor do ensino/educação para todos, um dos avanços civilizacionais mais expressivos. E tanto mais se o contrastarmos com o que se passava, por exemplo, no tempo de Alexandre Herculano, como vimos aquando do estudo dos nossos patrimonialistas. Ressoam ainda os seus vitupérios contra os discípulos de Átila e a crassa ignorância que não poupava ninguém, dos vereadores municipais às gentes do Governo: “Dos males que os séculos passados legaram ao presente nenhum foi tão fatal como a ignorância em que deliberadamente se conservavam as multidões.” [3] A esta ignorância atribuía Herculano o desprezo e os maus tratos a que estavam sujeitos os monumentos pátrios. Este passo da Carta de Atenas parece responder, um século depois, à violenta denúncia do grande historiador.
De 1931 para cá um longo caminho foi percorrido. A educação patrimonial tornou-se um tema recorrente nas nossas escolas, sobretudo depois da revitalização do Poder Local, pós Abril de 1974. Deu-se cada vez mais valor aos sinais identitários das comunidades com destaque para os monumentos edificados e as tradições populares, como o provam as inúmeras iniciativas realizadas um pouco por todo o lado em que se mobilizam escolas, autarquias e associações culturais. E não é por acaso que se verifica, de há uns anos a esta parte, um significativo aumento de cursos universitários ligados à temática do Património – bem patente no sítio do IGESPAR[4].

De referir que a Carta de Atenas está na origem da Resolução sobre a conservação de monumentos históricos e de obras de arte, aprovada pela Assembleia da Sociedade das Nações em 10 de Outubro de 1932. Neste documento, a segunda das cinco recomendações aprovadas reforça o ponto VII b) da Carta de Atenas e alarga o seu âmbito “ao público em geral, para o envolver na protecção dos testemunhos de todas as civilizações.” [5]

[1] LOPES, Flávio e CORREIA, Miguel Brito – Património arquitectónico e arqueológico, cartas, recomendações e convenções internacionais. Lisboa: Livros Horizonte, 2004. ISBN 972-24-1307-4.(p.17)
[2] Idem, p. 46.
[3] HERCULANO, Alexandre – Monumentos pátrios. In Opúsculos I. Organização, introdução e notas de Jorge Custódio e José Manuel Garcia. Porto: Editorial Presença, 1982.
[4] IGESPAR -  Instituições de Ensino com Formação em Áreas Relacionadas com o Património [Em linha][consultado em 12 de Janeiro de 2014]. Disponível em: http://www.igespar.pt/pt/patrimonio/formacaoempatrimonio/
[5] LOPES, Flávio…, ibidem, p.17 e p. 50.






CARTA DE VENEZA (1964)

É um documento histórico que ainda hoje constitui ponto de referência incontornável, verdadeira “Magna Carta” da salvaguarda dos monumentos e sítios. A sua importância é reforçada pelo número de participantes e de países que estiveram no Congresso[1] em que foi aprovada: mais de 500 e 61, respectivamente. Portugal esteve presente e fez parte da comissão redactora da Carta através do Arq. Luís Benavente[2] e/ou do Arq. João Vaz Martins [3].
Destaco a totalidade do Artigo 11º, que começa assim: “A unidade de estilo não deve constituir um objectivo a alcançar no decurso de um restauro. Pelo contrário, devem ser respeitados os contributos válidos das diferentes épocas de construção.”[4]
A razão da escolha prende-se com a importância dos princípios orientadores das intervenções nos monumentos, matéria altamente polémica como o demonstra o percurso das várias tendências dominantes desde a segunda metade do séc. XIX até meados do séc.XX: «Viollet-le-Duc e o restauro estilístico; John Ruskin e o movimento anti-restauro; Luca Beltrami e o restauro histórico; Camilo Boito e o restauro científico; Alois Riegl e o culto moderno dos monumentos; Gustavo Giovannoni: monumento e sítio histórico», - citando os capítulos de um livro dedicado ao estudo do restauro dos nossos monumentos nacionais entre 1929 e 1960 [5].
Entre nós, depois das intervenções desastrosas em muitos dos nossos principais monumentos e que Ramalho Ortigão denunciou vigorosamente em O culto da arte em Portugal, - recentemente estudado nesta Unidade Curricular - o Estado Novo, saído do pronunciamento e ditadura militares (1926 a 1932,) lançou um vasto programa de restauro através da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN). Tratou-se de uma opção abertamente ideológica defendida por António de Oliveira Salazar, primeira figura do novo regime político, no sentido de exaltar os valores da antiga portugalidade, a partir de um corpo doutrinário fundado noIntegralismo Lusitano de António Sardinha, entre outros contributos teóricos de figuras como o Cardeal Cerejeira. Tais princípios, aplicados ao restauro dos monumentos em ruínas, tinham como linha condutora «conferir aos nossos monumentos “a pureza da sua traça primitiva”, procurando refazê-los dos “atentados cometidos no século XVII e XVIII” [6].
A intenção era limpar os monumentos dos acrescentos abusivos e devolvê-los ao seu primitivo aspecto. Na prática, o que aconteceu em muitos casos foi a mutilação irreversível através do apagamento das marcas naturais da historicidade. Esta linha de orientação encontrou algumas resistências, mesmo dentro da própria DGEMN, caso do Arq. Raul Lino, funcionário Superior daquele organismo oficial. Curiosamente, os dois participantes da representação portuguesa ao Congresso de onde saiu a Carta de Veneza, foram figuras de destaque da DGEMN que acabaram por subscrever as novas directrizes, em tudo contrárias às sua práticas anteriores.



[1] 2º Congresso Internacional de Arquitectos e Técnicos de Monumentos Históricos realizado de 25 a 31 de Maio de 1964, em Veneza.
[2]  MARIZ, Vera Félix- De Atenas a Veneza, o percurso do Arquitecto Luís Benavente.[Em linha] Actas do Simpósio Património em Construção, LNEC, 2011. [Consultado em 11 Janeiro 2014]. Disponível em:<URL:
[3] NETO, Maria João Baptista – Memória, propaganda e poder – O restauro dos Monumentos Nacionais (1929-1960). 1ª edição. Porto: Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 2001, p. 229-233
[4] LOPES, Flávio e CORREIA, Miguel Brito – Património arquitectónico e arqueológico, cartas, recomendações e convenções internacionais. Lisboa: Livros Horizonte, 2004. ISBN 972-24-1307-4. P. 105.
[5] Idem, Sumário, p. 3..
[6] Ibidem, p. 234.







CARTA DE CRACÓVIA  (2000)

Discutida e aprovada por peritos de 51 países, depois de longa preparação prévia, é um documento que se assume como herdeiro daCarta de Veneza – referida no início e no final do “Preâmbulo”. Mas vai mais longe na definição de métodos e técnicas de conservação e restauro, na definição dos tipos de património construído, nos âmbitos de actuação e, até, na proposta de conceitos e terminologia. Reconhece a diversidade cultural da Europa e apela a que cada comunidade encontre o seu próprio caminho de identificação e gestão do seu património.
Das formulações expressas nesta Carta destaco o ponto 12:
«A pluralidade de valores do património e a diversidade de interesses requerem uma estrutura de comunicação que permita uma participação efectiva dos cidadãos no processo, para além dos especialistas e gestores culturais. Caberá às comunidades adoptar os métodos e as formas apropriadas para assegurar uma verdadeira participação dos cidadãos e das instituições nos processos de decisão.»[1]
Parece-me essencial esta perspectiva de participação dos cidadãos na gestão das questões do património. Curiosamente, a palavraparticipação aparece duas vezes no ponto 12 e uma vez na primeira frase do ponto 13. De facto, o património cultural é uma área demasiado importante para ser tratada apenas pelos peritos e decisores políticos, por mais bem preparados que estejam. É hoje evidente que a preservação dos bens patrimoniais exige a atenção e a participação activa do cidadão comum, até pela pluralidade de valores -sociais, económicos, turísticos - em jogo nas questões do património.
Cabe aqui referir que a nossa Lei nº 107/2001, de 8 de Setembro, que “estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural”, publicada menos de um ano depois da Carta de Cracóvia, já legisla sobre esta participação dos cidadãos. O Artigo 10º, desdobrado em 7 pontos, prevê e incentiva a criação de “Estruturas associativas de defesa do património cultural”. A proximidade de datas de publicação destes dois documentos sugere, até, que Portugal foi pioneiro de algumas das orientações saídas da Carta de Cracóvia. Isso mesmo foi referido por Elísio Summavielle, na altura Subdirector da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, aquando da sua intervenção no Colóquio dedicado ao “Associativismo e Património”, realizado em Santarém em 29 e 30 de Março de 2003[2]. Intitulada «”Cracóvia 2000” – uma carta para o futuro», a sua comunicação sublinha os aspectos inovadores daquele documento no qual Portugal teve participação activa[3].


[1] LOPES, Flávio e CORREIA, Miguel Brito – Património arquitectónico e arqueológico, cartas, recomendações e convenções internacionais. Lisboa: Livros Horizonte, 2004. ISBN 972-24-1307-4.(p.294).
[2] ASSOCIATIVISMO E PATRIMÓNIO. Actas do Colóquio organizado pela Associação de Estudo e Defesa do Património Histórico-Cultural de Santarém, 29 a 30 de Março de 2003.Santarém: Associação de Estudo e Defesa do Património Histórico-Cultural de Santarém e Fundação Passos Canavarro – Arte, Ciência e Democracia, 2003. ISBN: 972-9051-73-9.
[3] Idem, p. 179-183.



quarta-feira, 5 de março de 2014

O TENEBRISMO BARROCO



O conceito de "tenebrismo" tem na Península Ibérica um pendor algo dramático que lhe foi inculcado pelos pintores espanhóis de que em Portugal se seguiu a tendência. 
O que me parece de sublinhar é que, mais do que um conceito estético - a estética, como a entendemos hoje, ainda não existia nesta época, marcada pela tratadística - o tenebrismo é sobretudo uma manifestação da vivência barroca, com a exploração de todas as potencialidades pictóricas do contraste. Esse espírito barroco afirma-se em tudo que signifique a afirmação da paixão da vida e da morte, esse supremo contraste da existência humana.


(Ribera, Martírio de Santo André, Museu de Belas Artes de Budapeste)

CENOGRAFIA E BARROCO



Uma das características do gosto barroco é  a exuberância visual e o movimento. As imagens, pintadas ou esculpidas, são, por natureza, estáticas mas os artistas da época especializaram-se nas técnicas de lhes conferir movimento. As composições são regidas por linhas curvas, em jogos geométricos rigorosos, em pontos e contrapontos, linhas de fuga que quase chegam ao delírio formal. As expressões faciais, os gestos, a celebração do corpo desnudo, os contrastes claro-escuro, as cores violentas, - tudo isso arrasta o espectador para a contemplação imediata e a adesão indiscutível. 
Não se pense, porém, que estamos num mundo comandado pelo irracional. Estes artifícios artísticos baseiam-se em estudos rigorosos - daí a proliferação de tratados artísticos - numa época que deu grande importância às descobertas científicas. Esta arte está, racionalmente,  ao serviço do Poder, é alimentada pelo mecenato senhorial - rei, grande aristocracia e alto clero - e exerce o seu domínio através do fascínio dos efeitos sobre os sentidos. A hierarquia imposta a esta sociedade ancien régime apoia-se no vértice da pirâmide - o lugar onde está Deus - esse lugar indiscutível a partir do qual todos os poderes terrenos se justificam. É o grande teatro do mundo!
cenografia é, afinal, o pano de fundo deste espectáculo, o lugar visualmente organizado para dar coerência aos elementos que o compõem.



TEMÁTICA PROFANA NOS PAINÉIS DE AZULEJO DA IGREJA DA MISERICÓRDIA DE TORRES VEDRAS




Uma das igrejas mais valiosas de Torres Vedras é a da Misericórdia, objecto de restauros recentes que lhe devolveram o brilho. Construída entre 1681 e 1710, tem marcas do séc. XVII - uso expressivo dos mármores, por exemplo - e do séc. XVIII - os silhares de azulejos azuis e a talha joanina nos altares.

O que acho muito curioso neste templo é a temática profana dos painéis de azulejo. Nada de vidas de santos ou de cenas da Bíblia, antes cenas da vida quotidiana, paisagens, nobres passeando, lagos com barcos, pastores. Vida bucólica, em suma.
Jogando mais uma vez com o conceito de património integrado, esta temática parece, obviamente, desintegrada do contexto. Sempre que entro naquele espaço, interrogo-me: porquê este desajustamento?
Só encontro duas explicações:

1- Os painéis não eram destinados àquele espaço, foram trazidos de outro lado, por oferta de alguém,  por ruína do espaço original, ou outro motivo qualquer. 
2 - Sendo uma Igreja anexa ao Hospital do Espírito Santos que ali funcionou até quase ao final do séc. XIX, aquela temática sugeria formas saudáveis de vida, era um lenitivo para os doentes.
É um enigma que talvez tenha explicação no Arquivo da Misericórdia, onde se guardam centenas de livros de registos diversos mas onde, até agora, os investigadores não encontraram dados concretos sobre a construção do templo.





A MODA DAS RECONSTITUIÇÕES HISTÓRICAS


Não ponho em causa estas iniciativas, extremamente úteis para a melhor compreensão dos vestígios do passado. O que me arrepia, por vezes, é a encenação, que se vê, por exemplo nas ruínas construídas no Jardim Público de Évora, para dar um ar medieval à coisa; ou na reconstrução do Forte de S. Vicente (Linhas de Torres) em Torres Vedras, nos anos 60 do séc. XX. São cenários de cinema sem correspondência com a realidade histórica. É um fingimento para fruição das nossas mentes embotadas pelo uso viciante das imagens.
Digo o mesmo em relação à moda das reconstituições históricas: "Feira Medieval"! "Batalha do Vimeiro"! "Tomada de Silves aos Mouros"! Coisas lindas, que acabam todas em barracas de comes e bebes, com os figurantes vestidos a preceito e calçados com ténis de marca! pensativo
Estas coisas acabam por dar da História uma ideia de brincadeira fútil, em que as guerras até eram coisas giras, com muito fumo e gente a cair para o lado em momices de circo.
Desculpem, para esse peditório já dei. Ou se fazem reconstituições com informação condigna e rigorosa e sem espalhafato teatral ou... é melhor deixar a História em paz!


AZULEJARIA PORTUGUESA - SÉC. XVIII




O mundo da azulejaria portuguesa do séc. XVIII é, de facto, um espaço magnífico de criatividade e de altíssimo nível artístico. Os manuais ajudam-nos a entender a sua evolução: no primeiro quartel do século, o chamado Ciclo dos Mestres, de que Gabriel del Barco foi precursor, e em que pontificaram António Pereira, Manuel dos Santos, António de Oliveira Bernardes, seu filho Policarpo de O.B. e o mestre monogramista P.M.P.; a seguir, o período denominado de “grande produção joanina” com nomes como Teotónio dos Santos, Bartolomeu Antunes e Nicolau de Freitas.[1]

Sem intuitos bairristas, chamo a atenção para o mestre P.M.P. que tem, no concelho de Torres Vedras, algumas das suas mais belas obras. Na capela-mor da igreja de Nossa Senhora da Oliveira, em Matacães, há seis painéis alusivos à infância de Cristo que levaram Santos Simões a escrever: «Esta figuração, de uma beleza extraordinária, é das mais características do grande pintor P.M.P., de cerca de 1725-30.[2]

Outras obras: na Capela de Santa Iria, da Mugideira; capela de Nossa Senhora da Pena, da Serra da Vila; e no Hospital José Maria Antunes, antigo convento de Nª Srª dos Anjos.
No entanto, a mais importante situa-se no Convento de Nossa Senhora da Graça. Aqui encontramos, na sala da Portaria, oito painéis representando passos da vida de S. Gonçalo de Lagos – que foi prior deste convento; na antessacristia e sacristia, painéis que cobrem a totalidade das paredes, com cenas de santos ligados à Ordem dos Agostinhos – que habitou este convento entre os séc. XVI e XIX; enfim, no claustro, oito painéis representando cenas da vida de D. Frei Aleixo de Menezes, que foi prior deste convento e, mais tarde, Bispo de Goa. Vitor Serrão referiu-se a esta grande obra como «o vasto e notável ciclo do Convento da Graça de Torres Vedras.»[3]

José Meco, ao caracterizar o estilo do Mestre P.M.P., fala em arte “ingénua e decorativista”[4].
A ilustrar esta caracterização, não resisto a incluir um pormenor de um dos painéis do claustro, que junto em anexo, foto minha. 
Boa noite a todos 
J. Moedas Duarte

[1] PEREIRA, Fernando António Baptista – História da Arte Portuguesa, época moderna (1500-1800). Lisboa: Universidade Aberta, 1ª ed, 2ª impr, 1999.
SERRÃO, Vítor – História da Arte em Portugal, o Barroco. Lisboa: 1ª ed, Editorial Presença, 2003.
[2] SIMÕES, J.M. Santos – Azulejaria em Portugal no século XVIII. Edição revista e actualizada. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, p. 411.
[3] SERRÂO, Vitor – idem, p. 222.
[4] Citado por PEREIRA, Fernando António Baptista, idem, p. 182.







ARTE DOS POBRES, A CERÂMICA


Boa noite a todos

Nas nossas leituras somos como viajantes que encontram lugares inesperados que surpreendem e encantam. Há páginas assim nos textos sobre a azulejaria portuguesa, esse imenso território.
Há dias, na Biblioteca Municipal de Torres Vedras encontrei um lugar desses[1].  Trata-se de um pequeno catálogo de uma exposição de azulejos que percorreu várias cidades da Itália e de outros países da Europa, com uma introdução de G. C. Argan e outros; e um texto de Rafael Salinas Calado (o primeiro Director do Museu Nacional do Azulejo).

O que quero partilhar com os colegas é este excerto da Introdução de Giulio Carlo Argan, sobre a azulejaria:
«É uma arte dos pobres, a cerâmica: feita de um pouco de terra, de um pouco de cor e de fogo. Mas não é uma arte pobre, tanto mais sumptuosa à vista quanto mais simples é a sua matéria e o seu artifício. Mas é exactamente porque os materiais são pobres que mais requintado é o esplendor da cor e do vidrado. É quase uma vitória da riqueza da fantasia sobre a riqueza material.»
Que bom encontrar lugares assim !
Boas viagens!


AINDA O "ILUSIONISMO"



Entre Março e Maio do ano passado o Museu Nacional de Arte Antiga teve uma exposição com o título "Ilusionismos" dedicada ao pintor "quadraturista" Vincenzo Bacherelli. Quem foi este homem?
Artista florentino, esteve em Portugal entre 1701 e 1719, deixando um rasto duradouro do seu trabalho inovador, tanto nos discípulos que criou como nas obras que legou. Destas, podem referir-se um tecto no Palácio das Galveias, outro no Palácio de Alvor (Museu Nacional de Arte Antiga) e, sobretudo, o tecto da Portaria de São Vicente de Fora - todos em Lisboa; daqueles citam-se nomes como António Lobo e Luís Gonçalves Sena, entre outros.
Qual foi a grande inovação trazida por Baccherelli? Trata-se de pintura cenográfica, aplicada nos tectos, em que se cria a ilusão de estruturas arquitectónicas "obliquamente colocadas(...) simulando efeitos de rasgamento de espaço" (Vitor Serrão, História da Arte em Portugal, o Barroco, p. 250 e seg). 

ASPECTOS DA ESTÉTICA DO BARROCO - o "ilusionismo"


                                (Tecto da Portaria do Mosteiro de S. Vicente de Fora, Lisboa. Tirada da net)

Em certo sentido falar em arte da ilusão talvez seja um truísmo. Na verdade, a arte - uma certa arte - apoia-se na ilusão. Essa é a sua base sensorial, sobretudo depois do Renascimento, com a generalização da perspectiva, amplamente utilizada na pintura, mas também na arquitectura e, até, na escultura.
O que é novo no Barroco é que este ilusionismo é assumido como mensagem intencional e não apenas como artifício artístico ou virtuosismo técnico. É uma ilusão levada às últimas consequências com a adesão simultânea do artista e do observador a este jogo de aparências. Porque de aparências se trata, aceites e encorajadas, em nome de uma alegria de viver que esconjura o efémero e a morte. 
Talvez por isso o Barroco nos atraia tanto. Sujeitos que estamos ao minimalismo arquitectónico contemporâneo em nome de uma lucidez racionalmente desencantada, somos seduzidos pelos jogos de luz, forma e movimento com que os artistas de setecentos inundaram o mundo.
Na pesquisa de caminhos de entendimento para esta arte espectacular - porque ao serviço do espectáculo da criação divina que é o mundo - encontrei este pequeno sítio onde o autor encontra formas expressivas de a qualificar:
Des angles de visions insolites, des effets de perspectives, le baroque jongle avecl'espace et les paradoxes : des personnages qui tombent vers le haut, des corps agités par des forces surnaturelles, une architecture charnelle, une géometrie lyrique. Toujours tendue entre matière et esprit, entre ciel et terre, le baroque privilégie la verticalité.

          Un mouvement sans fin, comme une énergie traversant tout l'espace et la matière, des corps sculptés ou peints jusqu'au marbre des colonnes, où  l'observateur lui même, de part l'émotion qui le transporte est traversé de cette même énergie primordiale, une force d'origine divine.

"ENSAIO SOBRE A ESSÊNCIA DO ENSAIO" - Sílvio Lima



Livro publicado em 1944 - há 70 anos! - mantém a aura que fez dele uma obra de referência e ainda actual. Nunca, como hoje, se escreveram tantos textos ensaísticos, seja em livro, seja em artigos, sobretudo no mundo universitário. Sílvio Lima (1) tem um estilo de escrita límpido, rigoroso, fluente, ao serviço de um pensamento muito estruturado. 
O ponto de partida é a questão: «Que é o ensaio? Um género literário - como o são a epopeia, a tragédia, a écloga, a elegia, o soneto, a comédia - ou uma atitude mental, de determinadas características e tendências?»
A sua análise vai centrar-se nos ENSAIOS, de Montaigne, obra de 1580,  o primeiro ensaio dos tempos modernos, a afirmação do pensamento individualizado, liberto, enfim, das peias medievais pela grande revolução renascentista brilhantemente descrita no primeiro capítulo.

E é no segundo capítulo que encontramos a primeira caracterização do texto ensaístico:

«Os Ensaios não constituem (embora à primeira vista o pareçam) uma glosa, ou comentário; são a marcha evolutiva e intérmina de um pensamento que acorda, se desentorpece, estende «as pernas e os braços» e se projecta para a frente, para o espaço vazio, num arranco de autonomia.
Assentemos desde já neste ponto: os «Ensaios » são a rotunda negação do autoritarismo; são a expressão literária de uma atitude mental: a atitude critica. Daqui se colhe já o seguinte: sempre que se repudia a sujeição (a '«ontrainte«), e se põe em exercido a razão judicatória, brota o ensaio, ou o ensaísmo, ou o espirito ensaístico.
Na concepção do ensaio estão, pois implícitas três ideias básicas:
a)      O auto-exercício das faculdades.
b)      A liberdade pessoal
c)      O esforço constante para pensar original.»

(1) Sílvio Lima:  (1904 — 1993)