quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

OS PAINÉIS SETECENTISTAS DO CONVENTO DA GRAÇA DE TORRES VEDRAS

    
          É um conjunto de sete painéis historiados de azulejo do séc. XVIII, do Claustro do Convento de Nossa Senhora da Graça em Torres Vedras, relativos à vida de D. Frei Aleixo de Meneses (1559-1617) que foi Prior deste convento nos anos de 1588 a 1590.
Faz parte de um conjunto mais vasto de painéis historiados que se encontram em várias dependências deste edifício religioso: Portaria, com cenas alusivas à vida de S. Gonçalo; Ante-sacristia e Sacristia com episódios da vida de figuras veneráveis da Ordem de Santo Agostinho.
Estudado por Santos Simões e José Meco, este conjunto é, talvez, o mais significativo da iconografia agostiniana em Portugal.



    A estrutura dos painéis é idêntica, diferindo na largura, de modo a adaptarem-se às dimensões das paredes e dos vãos que as interrompem. Em azulejos vitrificados em azul sobre branco, cenas figuradas, com grande riqueza de pormenores: paisagens campestres e urbanas, marinha com profusão de naus, caravelas e pequenos barcos; interiores em perspectiva, com pormenores arquitectónicos; grupos de figuras humanas em cenas da vida quotidiana, no campo ou em lugares urbanos, em movimentação cerimonial ou como assistentes de cerimónias protocolares ou religiosas, com grande realismo no tratamento dos panejamentos e das expressões faciais. 



    Estas cenas estão contidas em guarnições que as emolduram, constituídas por festões, frisos fitomórficos, volutas, putis e outros ornatos. Em destaque central, duas composições, uma superior e outra inferior, em que se articulam legendas inscritas em cartelas, que explicam o conteúdo das cenas e que são suportadas por grupos escultóricos de ornatos com anjos segurando sanefas. As do ponto superior têm um emblema com as insígnias da Ordem de Santo Agostinho - coração em chamas trespassado por uma seta e um livro aberto – encimadas pela águia bicéfala e a mitra episcopal. Cada extremidade dos painéis é rematada com o desenho de um balaústre e um pote pontiagudo em cima, e pequenos anjos segurando festões. 



  A autoria é atribuída ao Mestre P.M.P. por Santos Simões e corroborada por José Meco. Fundamentação: a uniformidade das composições dos diversos conjuntos do edifício – Portaria, Ante-sacristia, Sacristia e Claustro – bem como o desenho das figuras, o tipo de decorativismo e outras características estudadas por José Meco em relação ao desconhecido que assinava com as três letras, permitem concluir que se trata de uma encomenda única para os espaços referidos. Incluída no chamado Ciclo dos Grandes Mestres - entre 1700 e 1730.

Pormenores:





































Fotos: Joaquim Moedas Duarte

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BIBLIOGRAFIA

MECO, José 

               O azulejo em Portugal, Lisboa, Edições Alfa S.A., 1989

               Azulejaria portuguesa, Col. Património Português, 3ª ed., Lisboa, Bertrand editora, 1989



SIMÕES. J. M. dos Santos 

                  Azulejaria em Portugal no século XVIII. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Edição                     revista e actualizada, 2010




terça-feira, 31 de dezembro de 2013

PATRIMÓNIO DESINTEGRADO...


Enquanto vou lendo e reflectindo sobre o conceito de património integrado, sou assaltado pela ideia do seu contrário: património desintegrado.
Penso, por exemplo, no ex-libris de Torres Vedras, o Chafariz dos Canos, recentemente restaurado num belo trabalho da Nova Conservação.
Quem olhe hoje para aquele monumento tem a desagradável sensação de ver uma múmia: por mais bem conservada que esteja, ela tem em si uma aura de morte.
Chafariz dos Canos, Torres Vedras, anos 20 do séc. XX

Aquele chafariz era um lugar de encontros, de quem passava e matava a sede... e ficava à conversa... Lugar de almocreves com seus animais, de caminheiros que vinham de longe, de peregrinos a caminho de Santiago, de aguadeiros que vendiam água ao domicílio...

O que resta de tudo isso é uma estrutura gótica encimada por um acrescento quinhentista, completamente desintegrada do sítio em que foi construída e da necessidade para que foi concebida.


Chafariz dos Canos, 2012, depois do recente restauro

Dir-se-á que não podia deixar de ser assim, os tempos mudaram, etc. Só em parte concordo. Porque o que falta ali é uma leitura que dê sentido àquela construção. Para isso há ideias mas pouca vontade de as pôr em prática. Fez-se agora uma placa explicativa, finalmente, mas continuo a achar que é pouco.
Entretanto os passeantes param, tiram fotografias, dizem que é muito giro e seguem, indiferentes. Porque o que ali está é um bom exemplo de património desintegrado.

NOTA: bem sei que esta é uma boutade que joga apenas com o antónimo de sentido da palavra integrado. Peço que me relevem a brincadeira que, no entanto, se refere a uma questão que considero muito séria.

O CONCEITO DE "ARTE TOTAL"

ARTE TOTAL PARA UMA VISÃO GLOBAL DA VIDA

A expressão de Oliveira Martins que se refere ao reinado de D. João V como “entusiasmo desvairado dessa ópera ao divino”, prefigura, avant la lettre, a perspectiva de análise que hoje designamos por “arte total”. De facto, que outra manifestação artística tem um carácter tão global como a ópera? Ela é um poderoso estimulante sensorial, através dos sons – canto e música -, e das imagens – cenografia e salas de espectáculo. Porém, a metáfora do historiador oitocentista tem um alcance mais vasto pois ela aplica-se à envolvente social que rodeou a corte do rei magnânimo: verdadeira sociedade do espectáculo em que, desde o cerimonial das procissões aos solenes Te Deum, da “montanha de pedra” de Mafra aos banquetes de inúmeros serviços, da Capela de S. João Baptista de S. Roque às igrejas paroquiais de todo o país, tudo concorria para produzir o efeito de manifestação do poder régio através do luxo e do espavento.

Convento de Cardais, Lisboa


O guião deste espectáculo tem dois aspectos complementares: a envolvência religiosa determinada pelas disposições tridentinas e a afirmação do poder monárquico absoluto. São eles que orientam as práticas políticas e as opções artísticas, só possíveis com a remessa maciça de ouro e diamantes do Brasil.

PATRIMÓNIO INTEGRADO E PEÇAS EM CONTEXTO


O tema do património integrado suscita-me algumas reflexões que articulo com a experiência de visitas a museus onde há grande profusão de arte sacra – estou a lembrar-me do Museu N. Arte Antiga, do Tesouro da Sé de Braga ou do Museu junto à igreja de S. Roque, em Lisboa.
A questão previa a pôr seria: qual o lugar das peças numa perspectiva de património integrado? Questão que se pode colocar em relação a 90% (ou mais...) das peças do património religioso expostas num Museu. As imagens, as alfaias litúrgicas - paramentos e objectos de culto como as cruzes procissionais, os turíbulos, as navetas, os cálices, as custódias, os castiçais, Missais, etc – são frequentemente expostos como objectos em si, sem contexto, a não ser o que lhe é atribuído em legendas e folhas de sala. Muitas vezes a enorme quantidade dessas peças tende a anular o efeito expositivo – seja pedagógico, seja informativo ou, até, de simples fruição estética.
É claro que a exposição põe problemas de segurança muito sérios que o recurso a vitrines anti-roubo resolve em grande parte. Seria impensável recolocar estas peças nos altares, nas credências ou nos tronos – embora isso permitisse uma leitura global e a compreensão do seu significado.

Ora é aqui que o conceito de património integrado poderá ser mais abrangente. Não apenas o espaço inicial de que as peças eram parte integrante ou onde mais tarde se integraram, mas também os espaços dedicados em que se devem estudar formas mais eficazes de os mostrar, nomeadamente os Museus.
Creio que isso está implícito no Decreto-Lei 120/97 de 16 de Maio, quando refere, na alínea b) do nº 5 do Artº 18: «(…) promovendo a criação de espaços museológicos, de centros explicativos ou interpretativos e de programas pedagógicos.»


Assim a expressão património integrado – inicialmente aplicado aos bens «cuja finalidade e existência foi determinada pelo próprio edifício que os contém» (Cf. Luís Ferreira Calado, “Património integrado ou a alma dos monumentos”, caderno do IPPAR nº 4, Lisboa, 2003) alarga-se e enriquece-se. Nele incluiremos os objectos de carácter funcional que foram imprescindíveis na vida quotidiana dos imóveis e para os quais foram adquiridos.

Poderão estar já separados desses imóveis e expostos ou guardados em espaços dedicados. Mas deverão ser valorizados através dos meios previstos na Lei, atrás referidos, evitando a exposição exaustiva e privilegiando a criação de contextos que permitam a compreensão da sua função nos actos litúrgicos a que eram destinados.

Se, em rigor, esses objectos estão excluídos do conceito de património integrado, é necessário que deles se faça uma leitura integrada do seu significado.

(Fotos: J. Moedas Duarte / Igreja e Museu de S. Roque, Lisboa)

TORRES AO CENTRO - UM EXEMPLO DE RECUPERAÇÃO DO CENTRO HISTÓRICO

Se me permitem, entro aqui para referir um projecto que se desenvolve no âmbito do que temos denominado “reutilização” e que conheço bem por dois motivos: decorre em Torres Vedras e envolve uma associação de cujos corpos gerentes faço parte (Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras).


Trata-se do projecto FORUM CULTURAL que se destina à reconstrução de um edifício da zona histórica para sede de várias associações, o qual se insere no programa mais vasto intitulado TORRES AO CENTRO.

A visita ao sítio de que deixo a ligação poderá esclarecer melhor do que se trata:

Em meu entender – embora seja parte interessada – esta é uma iniciativa importante e, de certo modo, exemplar, do modo como se pode dar mais vida a um Centro Histórico social e urbanisticamente decadente. Tem aspectos negativos, é verdade. Destaco a prevalência demasiada à dinamização cultural, em detrimento dos Serviços, que abandonaram o Centro Histórico em busca de instalações modernas, sem curar de modernizar espaços no próprio CH, como seria desejável. Igualmente, foi descurada a recuperação para habitação, não acautelando o necessário rejuvenescimento da população residente.

Reutilizar os velhos edifícios é uma forma de os preservar, quer como habitação quer como SERVIÇOS. Neste caso os serviços culturais marcam o espaço mas, sem a complementaridade de outros de âmbito diferente, corre-se o risco de circunscrever ou demarcar demasiado os tipos de utilização.


Sendo uma iniciativa positiva, sabemos bem que os próximos anos, com a abertura e o funcionamento destes espaços, serão determinantes para perceber qual a verdadeira dimensão do programa Torres ao Centro

REUTILIZAÇÃO COMO FORMA DE SALVAGUARDA


Sobre a problemática da reutilização de edifícios classificados como bens patrimoniais, há que referir o maior perigo que ameaça este recurso de conservação patrimonial. A este propósito lembro-me de um artigo de opinião inserto na revista “Pedra & Cal” (nº 12, Abril/Maio/Junho 2010), da autoria do Arquitecto José Aguiar, cujo título é bem expressivo: “Os Monumentos Nacionais não têm de ser todos pousadas e hotéis sem charme”. O autor cita, muito a propósito, a Carta de Atenas (1931) e a Carta de Veneza (1964) que estabelecem claramente a prevalência do usufruto público sobre os interesses privados, e dá exemplos de más soluções que resultam da subversão desse princípio.

Lembremos, ainda, que um dos problemas da reutilização de edifícios antigos, em Portugal – sejam monumentos, sejam conjuntos edificados nos Centros Históricos com valor patrimonial – é a falta de preparação das empresas de construção que não sabem recuperar o antigo, preferindo o bota-abaixo para construir tudo de novo, ao contrário de muitos países da Europa em que a reabilitação supera a construção nova.

(Foto: Pousada da Flor da Rosa, Crato. Origem: http://www.portugalvirtual.pt/pousadas/crato/pt/)

A LEI DE BASES DO PATRIMÓNIO E OS CIDADÃOS



Sobre a classificação e inventariação de bens culturais muito poderíamos discorrer. Pego pela ponta mais óbvia: a leitura da Lei nº 107/2001, de 8 de Setembro, que podemos designar por Lei de Bases do Património Cultural. Não me canso de a reler, aprendo sempre algo mais em cada leitura. Ela representa um avanço notabilíssimo para todos os patrimonialistas e um baluarte a defender com denodo.

Ora, a melhor defesa da Lei é pô-la em prática, usá-la intensivamente, explorá-la ao limite. Um dos aspectos mais importantes deste documento é o que diz respeito à participação dos cidadãos na salvaguarda do Património, ampla e explicitamente reconhecida nos artigos 9º e 10º, quer ao nível do indivíduo (9º), quer do colectivo (10º, «Estruturas associativas de defesa do património cultural»).

Vale a pena ler devagar aqueles artigos pois eles interpelam o nosso sentido de responsabilidade cívica. Bem sabemos que as Associações de Defesa do Património tiveram o seu período áureo no pós 25 Abril 74 até meados da década seguinte. Depois houve um decréscimo de actividade. Todavia, as acções enérgicas, e por vezes polémicas, que empreenderam, estão nos caboucos desta Lei 107.

A nós, patrimonialistas, compete dar conteúdo cada vez mais sólido e substantivo às perspectivas abertas pela Lei. Uma delas diz respeito à faculdade de propor a classificação de bens culturais, por exemplo. Outra, mais básica, é «o direito de participação procedimental e de acção popular para a protecção de bens culturais…» ( Artº 9º, nº 2).
Já agora recordo que o Decreto-Lei nº 309/2009, de 23 de Outubro, “estabelece o procedimento de classificação dos bens imóveis de interesse cultural…”. Isto é: diz ao cidadão como deve proceder para pôr em prática o que a Lei 107 prevê.

Por fim: a Lei que reconhece os referidos direitos não se esquece de lembrar (Artº 11º) que eles resultam do dever que “todos têm” de preservar, defender, conservar e valorizar o património cultural.

Donde se conclui que tomar a iniciativa da classificação desses bens, sempre que tal se justifique, sendo um direito do cidadão, é também um dever.

(Foto: J. Moedas Duarte / Castelo de Torres Vedras)

A IMPORTÂNCIA DA INVENTARIAÇÃO DE BENS PATRIMONIAIS





Quando nos debruçamos sobre as questões de salvaguarda do Património edificado ou móvel as categorias de registo em presença são a inventariação e a classificação. Por natureza a classificação é um acto excepcional que recai sobre espécimes que congregam em si os critérios exigentes consignados pela lei. Por essa razão, a inventariação é o instrumento mais importante para o controlo daqueles Patrimónios. Desde logo porque diz respeito à gestão corrente, garantindo o conhecimento e o registo padronizado das peças. Por isso, as entidades responsáveis pela gestão daqueles bens devem garantir a actualização permanente dos registos de inventariação bem como a sua divulgação junto dos agentes que intervêm nas respectivas áreas de localização.

Não por acaso os velhos patrimonialistas do séc XIX erigiram a necessidade de inventariação dos bens como primeiro e decisivo passo para a defesa do Património.
Quer dizer: se a classificação significa a elevação a um determinado patamar, com a consequente e proporcional projecção social, económica, cultural e, até, turística, a inventariação significa a garantia de uma espécie de contabilidade corrente, útil para os estudiosos, necessária para os planificadores e educativa para as comunidades a que pertencem.


A exigência de salvaguarda e conservação não se restringe aos bens classificados, ela deve estar presente também nos bens inventariados. Uma área em que tal se torna decisivo é a das Cartas Arqueológicas, inventariação pormenorizada dos sítios e jazidas, o que as torna imprescindíveis a uma correcta gestão dos solos agrícolas e urbanizáveis. Infelizmente, muitos municípios ainda não contam com este importante recurso de planeamento.

(Foto: J. Moedas Duarte / Castelo de Torres Vedras)

PATRIMÓNIO INDUSTRIAL, MEMÓRIA DO TRABALHO PRODUTIVO



Uma ideia estimulante para a nossa reflexão é a que Françoise Choay propõe, ao denunciar o que classifica como a fetichização do património, expressa em duas formas contraditórias de o olhar: de um lado a perspectiva passadista e nostálgica, resistente à articulação integradora entre o antigo e o novo; do outro a visão progressista que reduz o património preservado a objecto de museu. (cf. CHOAY, Françoise, 2009).

A contradição radica na própria ambiguidade do conceito de Património que se alargou exponencialmente a todas as áreas da actividade humana. (cf. POULOT, Dominique, 2001). Daí a necessidade de reafirmar a abordagem histórico-sociológica que articule, simultaneamente, os valores do tempo longo (dimensão maior da História) e do tempo curto (vivências quotidianas), de modo a que o conceito de Património reassuma a dimensão de portador de consciência histórica e de memória das comunidades humanas.

Uma das áreas mais recentes da tendência patrimonializadora é a do Património Industrial que ganhou expressão sobretudo depois da 2ª Guerra Mundial. Aqui, a carga histórica do tempo longo cede à verificação do imediato, marca da contemporaneidade. Emergem as memórias de quotidianos recentes, símbolos de um presente que se extingue debaixo dos nossos olhos, induzindo valores importantes como o turismo cultural de crescente expressão económica e a reutilização criteriosa e criativa de antigas instalações fabris.


Quando a “Casa Hipólito” ou a “Fundição de Dois Portos” – indústrias locais de Torres Vedras que prosperaram no séc XX – se afundam na falência e fecham as portas, tal significa o apagamento súbito de um passado recente cuja memória urge preservar para que as novas gerações entendam as razões do vazio sócio-económico que se instalou numa cidade subitamente órfã da sua prosperidade.

A Carta de Nizhny Tagil sobre o Património Industrial, aprovada em 2003, bem como a sua extensão nos chamados “Princípios de Dublin”, de 2011, mostram como estas preocupações locais têm dimensão internacional. Tais documentos apontam para metodologias de identificação, inventário e investigação, indispensáveis para a valorização e preservação deste Património, cada vez mais presente em múltiplas formas de apresentação e interpretação garantidas pelos poderes públicos articulados com as comunidades locais.

Acredita-se que esta saída cultural – preservação dos vestígios físicos acompanhada de uma narrativa histórica esclarecedora – constitua uma mais-valia face à rápida modificação das condições da vida económica, portadora, muitas vezes, de sofrimentos e frustrações. Vemos hoje um Museu do Pão, em Seia, que contrapõe à uniformizada industrialização panificadora a memória de antigas formas de moer e fabricar. Multidões saudosas de antigos sabores e odores invadem aquele espaço e regressam a um passado que ainda há pouco era o seu próprio presente. 


E mais ao sul,  o Museu do Trabalho Michel Giacometti, em Setúbal, mostra os antigos processos da indústria conserveira, em que nos parece ver ainda os vultos dos homens e das mulheres que ocupavam as linhas de produção, ao som de apitos estridentes.

Esta valorização do Património Industrial – cujos exemplos se têm multiplicado de norte a sul do país desde há duas décadas - é, em si mesma, a consagração do bem mais duradouro da História, o trabalho humano, mostrado como processo, como sofrimento, como superação, como riqueza. Aqui, Património já não é Monumento, símbolo de poder, afirmação de elites ou linhagens. É imagem do Homem que, em sociedade, se eleva acima da estrita sobrevivência individual. Por isso a preservação do Património Industrial é indispensável para a persistência da memória histórica desse longo caminho em que, como dizia M. Vieira Natividade, ilustre patrimonialista alcobacense, o homem fez a indústria e a indústria fez o homem.

J. Moedas Duarte

BIBLIOGRAFIA:
CHOAY, Françoise, Le patrimoine en questions – Anthologie pour un combat, Editions du Seuil, 2009, p.XXXV-XXXVI. 
CHOAY, Françoise, Alegoria do património, Edições 70, Lisboa, 2013.
POULOT, Dominique, “La multiplication des patrimoines”, Patrimoine et musée. L’institution de la culture, Paris, Hachette, 2001, pp.198-205
NATIVIDADE, Manuel Vieira - Alcobaça de outro tempo. Notas sobre a indústria e a agricultura, Alcobaça, 1906. [sem refer. de editor]
MENDES, José Amado, O património industrial na museologia contemporânea: o caso português, Ubimuseum ,[em linha],nº 01, pp.89-104. [Consult. 20-XI-2013]. Disponível  na internet: http://www.ubimuseum.ubi.pt/n01/artigos.html

WEBSITES:
IGESPAR, Património industrial [em linha], [consultado em 20-XI-2013], disponível na internet <URL: http://www.igespar.pt/pt/patrimonio/itinerarios/industrial1/ >
Associação Portuguesa para o Património Industrial [em linha], [consultado em 19-XI-2013], disponível na internet: <URL: http://www.museudaindustriatextil.org/appi/home.php >(última actualização:14-03-2016)
Rede Indústria, História e Património [em linha], [consultado em 19-XI-2013], disponível na internet: <URL:http://historia-patrimonio-industria.blogspot.pt/ >
CARTA DE NIZNHY TAGIL SOBRE O PATRIMÓNIO INDUSTRIAL [em linha], [consultado em 20-XI-2013], disponível na internet: <URL: 

«Les principes de Dublin» - Principes conjoints ICOMOS-TICCIH pour la conservation des sites, constructions, aires et paysages du patrimoine industriel 
Adoptées par la 17e Assemblée générale de l’ICOMOS le 28 novembre 2011 [em linha], [consultado em 20-XI-2013], disponível na internet: <URL:





segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

PATRIMÓNIO INDUSTRIAL




Aproveitei hoje uma deslocação de trabalho para visitar o complexo museológico da Fábrica da Pólvora em Barcarena (Oeiras). A visita foi suscitada pelos estudos e trabalhos que temos feito e lido sobre a questão do Património Industrial. A impressão que colhi – vigorosa confirmação pela positiva do que já lera sobre aquele espaço – coincide com as apreciações que todos os colegas fazem acerca da importância desta área de Património.

De facto, é uma área em crescente afirmação. De norte a sul do país, no interior mas sobretudo no litoral, com incidência maior nos distritos de Lisboa, Porto e Aveiro, multiplicam-se os museus temáticos relacionados com a produção de materiais, de energia, de bens e de alimentos. Em comum, o facto de todos eles celebrarem o trabalho humano. Muitos exaltam a dureza do quotidiano operário, as más condições laborais, o espírito de sacrifício do trabalhador face à necessidade de garantir a subsistência própria e a dos seus. Outros esmeram-se em mostrar a diversidade dos procedimentos produtivos e a evolução que tiveram ao longo da história daquele espaço industrial. Uns e outros são indispensáveis para a compreensão da História humana.

Alguns dos trabalhos abordam estes aspectos, em sintonia com a Carta de Nizhny ( Cap. Valores do Património Industrial, ii) que se refere ao património industrial como  «…um valor social como parte do registo de vida dos homens e mulheres comuns…».
De salientar que aquele é um documento que reputo de muito importante – juntamente com os “princípios de Dublin” – pois afirma a especificidade e actualidade de uma área decisiva para a preservação da memória das comunidades humanas – mas poucas vezes foi referido nos nossos trabalhos.


Contudo, parece-me indiscutível que, apesar das limitações de espaço e da exiguidade de bibliografia facilmente consultável, todos os trabalhos reflectem a consciencialização dos autores sobre esta mais recente área de preservação do Património Cultural.

ETAPAS DA DEFESA DO PATRIMÓNIO




Quando Ramalho Ortigão escreve o seu violento libelo contra o desleixo e a inoperância dos poderes públicos face ao nosso Património, já muitos anos haviam passado sobre as primeiras medidas de defesa e preservação. Recuando ao séc. XVI, um contributo importante para a salvaguarda do património documental foi a chamada Leitura Nova de D. Manuel I em que o monarca manda tresladar para livros novos de pergaminho os documentos antigos que estavam danificados, acção que se articula com as obras de reconstrução da Torre do Tombo, na mesma época. (1)

Mais tarde encontramos o Alvará em forma de Lei de 1721, de D. João V, e cuja inspiração ou mesmo autoria, segundo Paulo O. Ramos, se pode atribuir a D. Rodrigo Anes de Sá Almeida e Meneses (1676-1733). Paulo O. Ramos faz o levantamento das medidas concretas previstas nesse documento régio, de que podemos destacar, por exemplo, a existência de uma verba para aquisição de achados ou a conservação dos monumentos.(2)

Em 1832 sai um decreto assinado por D. Pedro IV, que cria uma Comissão para a Administração dos bens pertencentes aos Conventos e mosteiros abandonados do Porto.

Em 1852-1857 é criada a Comissão Geológica do Reino, depois designada por Serviços Geológicos de Portugal.

 Quero eu dizer: em vol d’oiseau, listamos exemplos de medidas de defesa do património que permitem a Ramalho Ortigão, que as conhecia,  ajuizar da sua ineficácia ou não observância. No final do séc. XIX, apesar de um certo pioneirismo de espíritos esclarecidos em épocas anteriores, e da acção abnegada de alguns contemporâneos, a regra geral era de desleixo ou de intervenção restaurativa inadequada.

Em Portugal conviviam duas camadas culturalmente distintas: uma, maioritária, de matriz rural e arcaica, profundamente influenciada por um clero ignorante e ultramontano; e outra, minoritária, esclarecida, cosmopolita, informada e relacionada com a cultura mais avançada da Europa.

Os patrimonialistas, de que fala Ortigão, pertenciam a esta estirpe, tal como alguns raros homens do Poder, em oposição à grande massa ignorante e labrega. Também aqui, como em outros contextos, cabe a frase de Napoleão de que "os exércitos caminham à velocidade dos mais lentos".

Era contra isso que Ramalho, tal como já antes Garrett e Herculano, levantava a sua voz de indignada e impaciente ira patriótica.



 NOTAS:
(1)    Cf. LEITURA NOVA in http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4223191 [acedido em 1-XII-2013];
LAGE, Maria Otília Pereira Lage,  Abordar o Património Documental: Territórios, Práticas e Desafios, Colecção Cadernos NEPS 4, Edição:Núcleo de Estudos de População e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Guimarães/2002 [em linha], disponível em http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/792/1/caderno04.pdf,[ acedido em 1-XI-2013].

(2)    Cf. RAMOS, Paulo Oliveira, O alvará régio de 20 de Agosto de 1721 e D. Rodrigo Anes de Sá Almeida e Meneses, o 1º m[arquês de Abrantes.[em linha] in: http://historiadopatrimonio.blogspot.pt/.1-V-2007, [última consulta em 1-XII-2013].

DA CRÍTICA FEROZ À PROPOSTA CONSTRUTIVA

OS NOSSO AUTORES OITOCENTISTAS E O PATRIMÓNIO CULTURAL
por J. Moedas Duarte - Domingo, 3 Novembro 2013, 01:16



DA CRÍTICA FEROZ À PROPOSTA CONSTRUTIVA

Sobre Garrett e Herculano sublinho que poucos como eles contribuíram tanto para a derrota definitiva do Antigo Regime Absolutista. Combateram de armas na mão, sofreram o exílio, arriscaram tudo. Mas ninguém, como eles, criticou tanto o novo Regime Liberal. Não por ser liberal mas por não ter sabido incorporar a genuína tradição da cultura popular e não ter recuperado as instituições medievais que poderiam garantir a descentralização política – nomeadamente o municipalismo. Daí a crítica feroz aos “barões” (A. Garrett, Viagens na minha terra, cap. XIII) ou aos “netos de Átila”(A. Herculano, “ Monumentos Pátrios”, Opúsculos, vol. II)

O VANDALISMO CONTRA O PATRIMÓNIO E OS LIMITES DA PRESERVAÇÃO


VITOR HUGO CLAMA E DENUNCIA EM NOME DE QUÊ?



Antes de me debruçar sobre os nossos escritores oitocentistas, detenho-me ainda na figura de V. Hugo.

Há nele a postura do profeta que clama no deserto, atitude característica dos homens que estão em contradição com o seu tempo e que têm tendência para aumentar desmesuradamente os aspectos que consideram negativos na sociedade. O nosso Herculano também foi um pouco assim...
Volto a referir F. Choay que, a este propósito, avança a ideia de que em V. Hugo - como na corrente romântica de que ele foi figura exponencial - se manifesta a consciência de uma mudança histórica radical com a chegada da Revolução Industrial. Esta nova ordem económica acarreta uma "ruptura traumática do tempo" (cf  Françoise Choay, A alegoria do património, Ed. 70, Lisboa, 2013, p.144) e, perante esta passagem da "fronteira do irremediável" (idem) há que contrapor a defesa do que é perene: os monumentos que são uma herança que recebemos do passado e que devemos legar ao futuro. Há aqui a concepção da História como acumulação de legados, "produtos da inteligência humana", "obra colectiva dos nossos pais" ( cf. último parágrafo de "Guerre aux démolisseurs"),.
"É isto que deveis respeitar, ó homens do meu tempo!" - parece clamar V. Hugo do alto do seu inconformismo.




MAS... SERÁ POSSÍVEL PRESERVAR TUDO?


Michel Lacroix (O princípio de Noé ou a ética da salvaguarda, Instituto Piaget, Lisboa, 1999) fala no "regresso ao passado" como um fenómeno visível nas sociedades contemporâneas, uma reacção saudável "perante a mudança económica, social e urbana que ninguém controla" (p. 16). No fundo, algo de semelhante à reacção dos românticos do séc. XIX face às mudanças provocadas pela Revolução Industrial


No final do livro, interroga: "Que deveremos conservar?"(idem, p. 188)
Esta é a grande questão com que se defrontam todos os dias os autarcas e os cidadãos, organizados ou não em Associações de Defesa do Património. Lacroix, defensor de que "o património não pode esquecer que o desenvolvimento da pessoa é a sua verdadeira finalidade" (idem), deixa uma pergunta inquietante: "Como poderá o homem tomar consciência do que ele é se estiver soterrado debaixo de um passado integralmente conservado?" (ibidem, p. 191)
Ficamos ansiosos pela resposta. Recorrendo mais uma vez ao mito de Noé (o primeiro defensor do Património da Humanidade?...), Lacroix responde: "Deveremos então pôr na arca o que civiliza, o que torna mais humano, salvaguardando ao mesmo tempo a identidade e enraizando..." (as reticências são dele).

Parecendo uma resposta muito pequena para a enormidade da questão, ela deixa em aberto tudo o que nos compete fazer e que está contido nas reticências. É onde teremos de voltar muitas vezes.

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RESPONDENDO A UMA COLEGA:

Concordando com quase tudo o que escreveu, permita-me discordar da conclusão. Se é verdade que há muita falta de conhecimento, grande parte do que foi ( e por vezes continua a ser...) vandalismo  resulta de opções de gente que sabe muito bem o que faz. Então por que o faz?

Há muitas razões que consideram justificativas dos seus actos, de que destaco: vantagens económicas, legítimas no quadro das sociedades liberais; e razões ideológicas, que defendem o primado do presente sobre o passado em nome do progresso, do desenvolvimento, de necessidades sociais, etc.
Nesta perspectva, não basta deplorar o vandalismo, ou criticá-lo com argumentos moralistas: ao denunciá-lo, é preciso desmontar as razões.
É uma opinião, teremos de continuar a debater isto...

COMENTÁRIO AOS TEXTOS DE TRÊS PATRIMONIALISTAS DO SÉC. XIX



UM ASPECTO RELEVANTE DO LIVRO DE ALMEIDA GARRETT


Da leitura dos capítulos selecionados das Viagens na minha terra, destaco as páginas dedicadas ao Convento de S. Francisco (cap. XLI e XLII), como símbolo do vandalismo contra o património edificado.

Almeida Garrett que, tal como Herculano, foi um lutador da liberdade e, de armas na mão, contribuiu para a instauração do regime liberal, aproveita o relato do seu passeio a Santarém para zurzir impiedosamente a ignorância e o desleixo dos barões do novo regime que, entre outras coisas, desprezam e maltratam os monumentos da Santarém medieval. O Convento de S. Francisco, “um dos mais antigos e mais históricos edifícios do reino”, foi “consertado pelas Obras Públicas para servir de quartel de soldados”. E Garrett amaldiçoa as mãos que profanaram a velha urbe e que desonraram Portugal porque “destruíram os padrões da sua história”. A pungente descrição do túmulo do rei D. Fernando, profanado pela bruteza dos soldados que nele buscaram riquezas, é um dos pontos altos de todo o livro, elevando-se à altura das catilinárias de Herculano, cinco anos antes, na revista “Panorama”.