sábado, 16 de agosto de 2014

EXERCÍCIO DE RECENSÃO CRÍTICA




Adelaide Ginga Tchen
A AVENTURA SURREALISTA
O movimento em Portugal do casulo à transfiguração
Lisboa / Edições Colibri / 2001

Partindo do seu trabalho de dissertação de mestrado em História do século XX, defendido em 1999 na FCSH da Universidade Nova de Lisboa, Adelaide Tchen propõe-nos, nesta obra, uma visão de conjunto sobre o surrealismo em Portugal. O título aponta, desde logo, para uma perspectiva caracterizadora acerca deste movimento artístico, designado como aventura que se desenrola num processo de metamorfose - de um espaço fechado para a transformação, porventura inesperada.

Começando por referir que uma abordagem histórica do surrealismo é aparentemente paradoxal se tivermos em conta a advertência de Mário Cesariny acerca da impossibilidde de fazer a história deste movimento, a autora enfrenta decisivamente o desafio e organiza a obra segundo o esquema clássico de círculos concêntricos, partindo do exterior geral– o contexto internacional – para o interior particular da eclosão do movimento em Portugal com a análise dos dois grupos surrealistas que se formaram em oposição mútua e a descrição dos três momentos particulares do seu percurso – a importância da Escola António Arroio como alfobre de criatividade dos futuros surrealistas; o impacto das exposições realizadas nos anos 40 /50; e as repercussões da actividade surrealista nos arquivos da PIDE. Em complemento, no final do volume, é apresentada uma circunstanciada cronologia comparada, a seis colunas, em que, para além da referência/data, são postos em paralelo o surrealismo em Portugal, na França e no mundo, além do referente político. É um excelente instrumento de trabalho para quem pretenda aprofundar conhecimentos sobre esta época.

A contextualização internacional é analisada com rigor e de forma sistemática, a partir da ambiência sócio-cultural criada com a primeira Grande Guerra. Milhões de homens haviam sucumbido num conflito que fez desmoronar todas as crenças na ideia de progresso civilizacional. Onde estava a razão humana? Que forças obscuras se desencadearam para tão espantosa hecatombe? Freud, no final de oitocentos, mostrara como funciona a mente e desvendara os recessos mais escusos onde se geram as paixões, os desequilíbrios, os desejos inconfessados, os recalcamentos, os sonhos, as associações de ideias. A razão, noção que alimentara a crença no progresso humano desde o século XVIII, revelava-se ilusão perigosa que esconde a realidade mais profunda da mente humana, as camadas do sub-consciente e do inconsciente, onde se recalcam as pulsões. O conhecimento deste mundo interior poderia explicar a violência com que milhões de homens se enfrentaram e destruiram.

O movimento Dada, designação que, por nada significar pretende significar tudo, é a primeira resposta do mundo artístico à demência da humanidade e que encontra nas teorias de Freud uma sugestão de romper com o velho mundo sepultado nos campos de batalha. O homem é muito mais do que a feroz animalidade destruidora com que se organiza em sociedade. Na sequência deste movimento, André Breton, em França, lança o seu primeiro Manifesto Surrealista (1924) que congrega numerosos artistas em torno de um conceito revolucionário: o artista é um libertador sem bandeira, um iconoclasta sem emblema, um veículo de liberdade onde viajam a arte, a cultura, a cidadania, a vida. Uma totalidade em que coexistem os fantasmas interiores mais obscuros e os mais elevados e luminosos ideais de realização humana. Nem estética nem moral. Coexistência do sonho com a realidade. Assunção do irracionalismo como espaço de libertação. O surrealismo foi um poderoso vulcão cultural que espalhou chamas e cinzas por todo o mundo e que, de certo modo, ainda hoje alimenta as pulsões mais enigmáticas da arte e da literatura contemporâneas. No dizer de um historiador do movimento, “mais do que revolta – inspiração Dada – o surrealismo apontava para a revolução”.

Adelaide Tchen analisa pormenorizadamente o percurso inicial de Breton e dos que se lhe juntaram – Aragon, Éluard, Péret e Pierre Unik -  focando-se em um dos aspectos que mais controvérsia gerou - a relação entre o surrealismo e o comunismo que irrompera na Rússia, promessa de concretização política do desejo revolucionário de transformar o mundo. O surrealismo viverá sempre dividido entre a opção da liberdade total sem peias de qualquer ordem – o anarquismo e o individualismo – e a eficácia da acção política através da estratégia partidária como forma de destronar o poder capitalista. Esta tensão virá a repercutir-se no nosso país, como circunstanciadamente é descrito na segunda parte da obra, a mais longa, dedicada ao “despontar do surrealismo em Portugal”. A autora analisa o copioso espólio documental preservado em arquivos diversos, a acção dos seus defensores e praticantes, as lutas que os opuseram entre si e também com o regime ditatorial que então vigorava. Estávamos na segunda metade da década de 40, no rescaldo da segunda Grande Guerra. O surrealismo chegava tarde a Portugal, o que se explica por factores como a consabida periferia do país, conjugada com uma situação política marcada pela afirmação do Estado Novo e por especificidades culturais como uma certa pujança cultural sob a égide de António Ferro e o prolongamento das manifestações futuristas na sequência do Orpheu. Contudo, este movimento não surgiu do nada, como erupção inesperada no meio do deserto, antes resultou de um demorado processo em que artistas plásticos e da literatura se conjugaram em acções de oposição ao Estado Novo e às suas formas de estrangulamento cultural, caso da censura, da polícia política e de uma “política do espírito” que erigia a tradição nacionalista como base da identidade do país. É o tempo do que veio a chamar-se neo-realismo, em que a arte surge como elemento da acção conjunta contra a asfixia reinante, com todos os equívocos e contradições gerados pelas diversas tendências em presença e em que se dá em Portugal o que sucedera noutros países quanto à deriva artística para áreas políticas ligadas ao movimento comunista internacional.

Num estilo de escrita marcado pela clareza e objectividade a que não faltam pormenores de observação subtil que humanizam a actuação dos protagonistas da aventura surrealista, Adelaide Tchen descreve e analisa este período com enorme soma de pormenores que traçam um quadro vivo e sugestivo da vida cultural portuguesa nos anos finais da década de 40 e inícios de 50. A afirmação do Grupo Surrealista de Lisboa, o aparecimento, em oposição, dos Surrealistas, o abandono das posições de apoio à luta política directa, a afirmação da pujança da arte como forma suprema de libertação, o confronto, apesar de tudo, com a polícia política que via nestes desalinhados um perigo para a ordem pública e uma ameaça à integridade moral da nação, tudo isto é abordado com brilhantismo e qualidade textual, fazendo de uma obra aparentemente circunscrita na sua temática central, um notável estudo de caracterização cultural de uma época decisiva na nossa história contemporânea.

            Na breve conclusão de quatro páginas a autora sintetiza as grandes linhas caracterizadoras do surrealismo português: perfilhando a ligação a França, pátria de origem do movimento, manteve a autonomia, derivada da especificidade sócio-política portuguesa; tal como acontecera com outros movimentos de vanguarda no dealbar do século XX, o surrealismo surgiu tardiamente em Portugal, mercê de condições intrínsecas já atrás referidas; afirmou-se em ruptura com o neo-realismo; apesar de uma certa pujança e capacidade de inquietar os espíritos, o surrealismo em Portugal nunca foi capaz de superar as contradições que o minaram desde o início, nomeadamente a impossibilidade prática de conjugar esforços colectivos a partir da afirmação de feroz e irredutível individualismo dos seus próceres.
Esta aventura surrealista terá sido, pois, um «movimento de rutura, com as suas próprias ruturas internas, (…) sem mártires nem heróis(…)» - conclui a autora na última das 208 páginas deste livro.
Esta é, quanto a nós, uma obra imprescindível para quem pretenda conhecer o movimento surrealista em Portugal do ponto de vista da sua especificidade cultural e da articulação com o contexto sócio-político da época em que surgiu entre nós, o pós segunda Guerra Mundial. Tal como a autora avisa logo na introdução, não se trata de uma análise estética da produção artística e literária surrealista pois «o que se pretende é um melhor conhecimento do que motivou o aparecimento do surrealismo em Portugal, da razão do seu atraso, do momento histórico em que se afirmou, da relação entre os seus intervenientes.» Em nossa opinião isso é plenamente conseguido e uma das razões é o recurso a documentação escrita que nunca tinha sido manuseada de forma sistemática. É o caso da numerosa correspondência trocada entre os protagonistas da aventura surrealista, e também, os catálogos das exposições, artigos, panfletos, comunicados, entrevistas, livros, depoimentos mais recentes e, por último, os arquivos da PIDE/DGS. Estas fontes são criteriosamente convocadas ao longo da obra, numa fluência de exposição que torna a sua leitura extremamente atraente e proveitosa.

Não por acaso, este longo ensaio foi distinguido em 1999 com o Prémio de História Contemporânea Dr. Vitor de Sá e em 2000 com uma Menção Honrosa do Prémio Fundação Mário Soares.

J. Moedas Duarte

CAMILLE PISSARRO – UM PINTOR IMPRESSIONISTA

Auto-retrato

O nome é caracteristicamente judeu: Jacob Abraham Camille Pissarro. O que nos levou ao seu estudo foi o facto curioso de ser descendente de judeus de Bragança, saídos de Portugal no século XVIII. Quem foi este homem que marcou a pintura europeia da segunda metade do século XIX?

Ente Junho e Setembro de 2005 o MoMA de Nova Iorque realizou uma exposição notável [1] em que se procurou evidenciar os laços artísticos que se estabeleceram entre Pissarro e Cézanne, um e outro figuras cimeiras do movimento que viria a ser conhecido por impressionismo. Postas em confronto, as telas denotavam uma orientação artística comum servida por sensibilidades naturalmente distintas. A contiguidade potenciava mutuamente a expressividade de cada uma. A verdade é que Cézanne, um pouco mais novo que Pissarro, se considerava seu discípulo e ambos percorreram juntos uma parte do seus próprios caminhos, quando procuravam impor uma nova forma de pintar: ao ar livre, com temas da vida quotidiana, procurando captar a luz na primeira impressão com que olhavam cada parcela do mundo exterior. Porfiavam em chegar a «uma composição de luz e não de coisas, dispensando uma repartição equilibrada das imagens sobre a tela e a representação do espaço em perspectiva.»[2]

Fixemo-nos em Pissarro.[3] Nascido em 1830, nas Antilhas, numa família francesa ligada ao comércio - pai: Abraham Frederic Gabriel Pissaro, descendente de judeus portugueses de Bragança; mãe: Rachel Manzano-Pomie -, cedo mostrou inclinação para a pintura, o que não agradou aos pais. Com 11 anos foi mandado para Paris para completar a educação escolar. De novo em casa, com 17 anos, esperava-o o comércio. No entanto a inclinação artística foi mais forte e teve a sorte de encontrar o pintor dinamarquês Melbye que o convidou a acompanhar numa viagem à Venezuela. Em 1854 está de novo em casa mas, pouco depois, com o apoio do pai que reconheceu a impossibilidade de o ver singrar nos negócios familiares, voltou a Paris onde frequenta cursos de arte com o apoio de Melbye. Inicialmente influenciado pelo paisagismo de feição realista de Corot, procura novos caminhos expressivos. Encontra-se com Monet, mais novo mas de educação burguesa semelhante e ambos experimentam as técnicas pictóricas que levarão à afirmação de uma nova e revolucionária forma de pintura, o impressionismo. As cores deixam de ser misturadas na paleta para aparecerem autónomas na tela. O que se representa já não é a reprodução fiel da natureza, sustentada pela linha rigorosa do desenho, mas o instante fugaz do olhar, impressionado pela tonalidade da luz. Esta, sempre mutante, requer a pincelada rápida que a capte na sua essência. Em vez do esforçado trabalho sobre o claro-escuro, tão explorado pelos tenebristas e realistas, uma afirmação desassombrada da subjectividade do olhar, aberto aos contrastes da natureza filtrados pela percepção do pintor[4].


O Oise junto de Pontoise

Depois de alguns insucessos, viu reconhecido o seu trabalho em anos posteriores, ao mesmo tempo que se deslocou para a zona rural de Pontoise, inspiradora da claridade luminosa das suas telas de que é exemplo brilhante “O Oise junto de Pontoise”. Casou em 1861 com Julie Vellay e deste casamento nascem oito filhos e as concomitantes dificuldades de sustento, agravadas pela guerra franco-prussiana que obrigam a família a fixar-se em Inglaterra. No regresso percebe que centenas de quadros que havia pintado e deixado em armazém tinham sido destruídos. Não se deixa abater pelo infortúnio e é nesta fase que trabalha com Cézanne, sempre em busca de novos temas e olhares. Encontra reconhecimento da parte de alguns patrocinadores que lhe compram as telas e garantem mercado, mas sempre na fronteira da sobrevivência. Viaja pela Europa e expõe em grupo com outros pintores que comungam da mesma determinação de afrontarem o que consideram uma arte destituída de vida e amortalhada em regras académicas e que se assumem, assim, como revolucionários contra a estética caduca. Por isso, a designação com que George Rivière, um crítico contemporâneo os define, em 1877: «Tratar um tema pelas suas tonalidades e não pelo próprio tema é o que distingue os impressionistas dos outros pintores»[5].

Uma característica de Camille Pissarro foi a sua abertura constante a novas experiências. Daí que tenha aderido, em fase adiantada da sua vida, ao chamado “pontilhismo”, tentativa de renovação de processos pictóricos baseados na decomposição da cor, e que teve em Seurat o seu maior representante. Contudo Pissarro regressa ao seu estilo inconfundível, caracterizado pelas paisagens luminosas e, já na fase final da sua vida, marcada por problemas de visão, à representação da vida urbana com suas ruas e gente do povo na sua labuta. Trabalhando a óleo, mas usando por vezes a aguarela e o pastel, Pissarro marcou a pintura do final de oitocentos pelo modo como captou a atmosfera de cada lugar através de um trabalho rigoroso com a luz, em centenas de telas que constituem um imenso e luminoso legado pictórico[6].
Morreu em 13 de Novembro de 1903 em Paris e repousa no mais célebre cemitério daquela cidade, o Pére Lachaise.

11 de Maio de 2014
Joaquim Moedas Duarte



[1] Pioneering Modern Painting: Cézanne and Pissarro 1865-1885, patente ao público entre 26 de Junho e 12 de Setembro, de 2005. Cf: http://www.moma.org/interactives/exhibitions/2005/cezannepissarro/ [Consult. 10/05/2014].
[2] Cf: Lionello Venturi – Para compreender a pintura, de Giotto a Chagal. Lisboa: Estúdios Cor, 1972, p. 158.
[3] Cf: Célia Soares Marinotti – Campo e cidade: um estudo das relações texto-imagem em Cesário Verde e em Camille Pissarrro. Dissertação de Mestrado em Letras na Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2012. Seguimos os dados biográficos que, segundo a autora, foram retirados da obra Vida e Obra de Camille Pissarro, de Linda Doeser, Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. Igualmente nos servimos de referências biográficas sobre C. Pissarro in: Arquivo de Pinturas de Camile Pissarro [Em linha][Consult. 11/05/2014]. Disponível em: http://aidobonsai.com/tag/pinturas-de-camile-pissarro/
[4] Cf: Guia de História da Arte, dir. de Sandro Sproccati, Lisboa: Editorial Presença, 3ª ed., 1997, pp. 125-133.
[5] Idem, p. 126.
[6] Ver reproduções neste sítio-em-linha: http://www.wikipaintings.org/en/camille-pissarro/


A ARTE PERDEU A INOCÊNCIA?


http://www.fiuc.org/cms/NEWS_message_list.php?lang=ENG&entry_id=1009

É muito interessante observar as reacções do público numa exposição de arte contemporânea. A primeira verificação é que elas são diametralmente opostas às que se observam numa museu perante obras reconhecidas como clássicas. Enquanto aqui o público tem uma atitude reverencial, ali observa-se um certo ar interrogativo e alguns sorrisos contrafeitos.
Não seria mais natural o contrário: o público reconhecer como sua a arte que brota do seu tempo e estranhar a arte de outros tempos?
A explicação é que o público que vai aos museus e às exposições já incorporou uma história da arte através da sua vivência cultural. Talvez seja aqui que resida o problema central da arte nos nossos dias: está deformada pela acumulação dos estudos de História da Arte e pela sacralização conferida pela musealização. Perdeu a inocência.

Por isso é tão estimulante visitar uma exposição de arte contemporânea na companhia de uma criança… 

J. Moedas Duarte

RUPTURA E COSMOPOLITISMO NA ARTE PORTUGUESA DO INÍCIO DO SÉCULO XX




Nos alvores do século XX português um pequeno mas aguerrido grupo de artistas instala a inquietação e a desordem no sossegado ambiente cultural de Lisboa e Porto e faz da arte um campo de confronto e ruptura. Portugal era um país rural com cerca de 75%  de analfabetos, precários meios de comunicação e incipientes sectores secundário e terciário. O rei D. Carlos pintava marinhas que uma corte ignorante muito admirava, o teatro S. Carlos encenava óperas para um sonolento público de burgueses, os poucos jornais e revistas publicavam folhetins convencionais e poemas de amor às pálidas Lísias e Amarildas. Lisboa cabia toda no Largo do Loreto que Eça sarcasticamente descreve na última página do Crime do Padre Amaro, “esta paz, esta prosperidade, este contentamento… Meus senhores, não admira realmente que sejamos a inveja da Europa!”

Este mundinho pacato é inundado pelo caudaloso rio de uns tantos artistas rebeldes: Santa-Rita, Amadeo de Souza-Cardoso, Cristiano Cruz, Fernando Pessoa, Eduardo Viana, Abel Manta, Benanrdo Marques, Mário Eloy, Almada Negreiros… São uma minoria, decerto, como já o haviam sido os temerários revolucionários da Rotunda que derrubaram a Monarquia. Suficientes, no entanto, para abalarem os alicerces da velha sociedade portuguesa, beata, tradicionalista e estranha aos grandes ventos que varriam a Europa.

Esta elite de artistas revolucionários era a mais recente vaga de estrangeirados que, desde o séc. XVIII, vinha corroendo ciclicamente as grossas paredes do nosso endémico atraso cultural. Vindos de Paris – com a excepção de F. Pessoa, de raiz anglófila -  traziam as novidades das novas tendências artísticas, sobretudo na pintura, mas também na literatura, provocando escândalo com as suas exposições livres e levando ao desespero os críticos de arte, viciados no naturalismo bucólico oitocentista. Este espírito cosmopolita estava em frontal rota de colisão com o tacanho provincianismo das elites tradicionais portuguesas.

Para nós, o grande expoente deste espírito insubordinado e rebelde é Almada Negreiros. Homem de múltiplas expressões, marca as artes plásticas e a literatura com a sua iconoclastia destemida e provocadora. “Morra o Dantas, morra, pim!” ainda hoje ecoa como a mais violenta diatribe contra o academismo e o imobilismo na arte e no modo de estar na vida. Almada, que marcou a primeira geração modernista com a proclamação do espírito futurista,  cuja longevidade o prolonga para a segunda geração modernista, nos anos 20 e 30, e o leva a aceitar colaborar em projectos do Estado Novo sob a égide de António Ferro, marcará indelevelmente o panorama cultural português na primeira metade do século XX.

J. Moedas Duarte


O MOVIMENTO SURREALISTA EM PORTUGAL


A localização periférica de Portugal explica em parte o constante atraso da chegada de todas as novas tendências, sejam na arte, na ciência, na moda ou na cultura em geral – situação que só o advento das novas tecnologias a partir dos anos 80 ajudou a esbater.
O caso do surrealismo é paradigmático. Este movimento artístico-cultural, chegado a Portugal em meados dos anos 40, havia surgido em França nos anos 20 (falamos do séc. XX) como consequência e resposta à avassaladora irracionalidade da Primeira Grande Guerra. Milhões de homens haviam sucumbido sob a metralha e os gases de um conflito que desmentiu cruelmente todas as crenças na ideia de progresso civilizacional. Onde estava a razão humana? Que forças obscuras se desencadearam para tão espantosa hecatombe?
Freud, no final de oitocentos, descerrara a cortina da mente humana e desvendara os recessos mais escusos onde se geram as paixões, os desequilíbrios, os desejos incnofessados, os recalcamentos, os sonhos, as associações de ideias. A razão, noção que alimentara a crença no progresso humano desde o luminoso século XVIII, surge então como ilusão perigosa que esconde a realidade mais profunda da mente humana, lá onde se cruzam e conflituam os egos, os super-egos, os inconscientes  e as pulsões sexuais. Só este tenebroso mundo interior poderia explicar a ferocidade com que milhões de homens se enfrentaram e destruiram.
Em França, André Breton lança o seu primeiro Manifesto Surrealista (1924) que congrega numerosos artistas em torno de um conceito revolucionário: o artista é um libertador sem bandeira, um iconoclasta sem emblema, um veículo de liberdade onde viajam a arte, a cultura, a cidadania, a vida. Uma totalidade em que coexistem os fantasmas interiores mais obscuros e os mais elevados e luminosos ideais de realização humana. Nem estética nem moral. Coexistência do sonho com a realidade. Assunção do irracionalismo como espaço de libertação.
O surrealismo foi um poderoso vulcão cultural que espalhou chamas e cinzas por todo o mundo e que, de certo modo, ainda hoje alimenta as pulsões mais obscuras da arte e da literatura contemporâneas.
Voltemos a Portugal. Leia-se: «Curioso é saber que não se fará a história do movimento surrealista em Portugal. Posto entre dois impossíveis, o do início e o do fim, nem os seus protagonistas se qualificam para Herculanos nem os amadores disso, temos visto, se haverao de esforçar.»[1] .
Podemos dizer que em Portugal  o surrealismo entra em meados dos anos 40 com Alexandre O’Neill, António Pedro, Mário Cesariny, Costa Pinto, Vespeira e outros, que se constituem em grupo que terá existência efémera. Contudo, o ideário artístico – com incidência na literatura e na pintura – permanecerá por muito mais tempo, em manifestações individuais.
J. Moedas Duarte


[1] Cf: Mário Cesariny – A intervenção surrealista. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997 (1ª ed. 1966), p. 14.


COMENTÁRIO CRÍTICO A DOIS VIDEOGRAMAS

                            
Capela de S. Filipe - Forte de S. Filipe, Setúbal
Foto: cordeiro346.blogspot.com

Os dois vídeo-documentários em apreço – com o título genérico “O esplendor do barroco” - abordam os temas centrais da expressividade barroca portuguesa setecentista no campo das artes: o azulejo e a talha. Partindo de uma correcta e significativa selecção de imagens servidas por um texto claro e uma locução perfeita, salientam que um e outro resultam de um processo evolutivo que desemboca no mar largo do século XVIII, marcado pela exuberância artística do reinado de D. João V. Lembrando que o ciclo joanino é marcado por influências artísticas vindas do exterior, com predomínio da linha italianizante, não deixam de sublinhar a constância do gosto português, tanto na azulejaria como na talha.
O primeiro vídeo incide sobre a arte azulejar, território artístico em que a criatividade lusa atingiu a perfeição. Depois da visita inicial ao nártex da ermida de Santo Amaro, em Lisboa, em que predominam ainda as experiências seiscentistas policromáticas dos amarelos, azuis e verdes, entramos no séc. XVIII com a viragem para a opção monocromática em tons de azul, de que a igreja de S. Vitor, em Braga, é um exemplo, pela mão de Gabriel del Barco. Na Casa do Corpo Santo, em Setúbal, com azulejos do monogramista PMP, está patente a passagem do chamado “estilo nacional” para o barroco joanino em que ganha expressão a estética barroca a jogar com o “efeito de conjunto”. (Cf. António Horta Fernandes – A cultura barroca em Portugal in: O Barroco, Anne-Laure Angoulvent. Mem Martins: Publicações Europa-América, col. Saber nº 234, 1996, p. 140.)
O ciclo dos mestres – o citado PMP e os Oliveira Bernardes (António e Policarpo, pai e filho) – marca a primeira metade do séc. XVIII com produções magníficas espalhadas por todo o país. A capela de S. Filipe, em Setúbal, com o completo revestimento das paredes e da abóbada e a igreja do convento de S. Domingos em Benfica, com a articulação entre os painéis de azulejo e a talha dourada – são-nos apresentados como dois exemplos deste período áureo do azulejo português.  
O segundo vídeo-documentário aborda a talha revestida a ouro e a sua evolução do estilo nacional ao joanino. Enquanto o primeiro, confinado aos fundos planos das capelas, ganhara em relevo decorativo o que perdera em sentido arquitectural, o segundo afirma-se com notável vigor em formas dinâmicas e salientes que conferem profundidade aos espaços e um acentuado efeito cénico pela monumentalidade do conjunto. Santos Pacheco é o mestre entalhador que interpreta esta renovação na capela-mor da Igreja dos Paulistas em Lisboa e no grandioso retábulo-mor da Sé do Porto.
O ponto culminante do desenvolvimento da arte da talha é atingido nas igrejas franciscanas do Porto, S. Francisco e Santa Clara. A talha sobra dos fundos planos retabulares e invade os espaços disponíveis entre os vãos, os tetos e as colunas, criando um efeito de conjunto avassalador. Os interiores transformam-se em grutas de madeira entalhada e dourada, com formas exuberantes onde os motivos decorativos se enovelam entre anjos, puti, imagens de Cristo, da Virgem e dos santos, num delírio formal que corresponde ao programa catequético barroco e em que se evidencia o contraste entre o despojamento exterior das igrejas e a “opulência refulgente do interior”- imagem alegórica da dualidade corpo/alma. A referência, obrigatória, aos órgãos da Sé de Braga culmina a apreciação da talha da época joanina.

Passando para outro plano, parece-nos que o conteúdo informativo-analítico destes documentários é, de certo modo, redutor e insuficiente. Dando relevo aos aspectos descritivos das manifestações artísticas, deixa na sombra a abordagem das condicionantes históricas de carácter político-económicas ou sócio-culturais. Reconhecemos o carácter didáctico destes vídeos e supomos, até, que eles fazem parte de um conjunto maior que, porventura, fará uma análise detalhada dos aspectos que consideramos em falta. Contudo, apresentados assim, não deixam de ter, em nossa opinião, um alcance limitado.
De facto, o fenómeno do barroco português apenas se entende à luz de uma contextualização histórica cuidada que redima pelo rigor as tentações do descritivismo artístico. Nessa conformidade, será imprescindível referir a ambiência religiosa marcada pela Contra-reforma geradora da presença obsessiva da Igreja como instituição central na sociedade portuguesa, a consolidação da independência política após a Restauração de 1640, a progressiva afirmação do poder régio absolutista e a afluência do ouro do Brasil.
Concluindo, é justo referir que estes videogramas, apesar das limitações referidas, documentam de modo expressivo aquele que é, indubitavelmente, um dos mais importantes momentos da História da Arte portuguesa

Torres Vedras, 20 de Abril de 2014


Joaquim Moedas Duarte

[ Obs. Este comentário tem como objecto dois videogramas da Universidade Aberta. ]




UMA HISTÓRIA DE AMOR, UM LUGAR DE MEMÓRIA



(Foto de Eduardo Gajeiro)

  
Ele veio do Leste, Hungria; ela, do Sudoeste, Portugal. Por volta de 1928 encontraram-se em Paris, onde estudavam pintura. Casaram-se em 1930 e viveram juntos até à morte de Arpad em 1985. Helena morreu sete anos depois. «São a mais bela história de amor e pintura que jamais conheci» - escreveu Mário Cesariny. Uma história assim merecia um memorial que a perpetuasse. Ele existe no coração de Lisboa, às Amoreiras: é a Fundação e a Casa-Atelier Arpad Szenes/Vieira da Silva. A Fundação foi inaugurada em 1994 e a Casa-Atelier em 2013. A primeira ocupa o edifício da antiga Fábrica de tecidos de seda, no Jardim das Amoreiras onde, no século passado, existiam 331 árvores que alimentavam os bichinhos operários. A segunda é a própria casa de família onde a artista e o marido se alojavam quando estavam em Portugal. Uma e outra são vizinhas e cumprem desígnios semelhantes: perpetuar a memória pessoal e artística de dois seres que se encontraram na pintura e que marcaram indelevelmente o panorama artístico português e europeu da primeira metade do século XX.

Tivemos ocasião de visitar a Fundação AS/VS há já alguns anos. Agora, através do sítio-em-linha fizemos uma visita virtual. É um espaço muito bem concebido e concretizado. A página de abertura concentra todos os pontos de ligação de uma forma clara e intuitiva. Evita a tentação esteticista da letra minúscula (o malfadado corpo 7, ou até 6… que encontramos em certas páginas em-linha) ou a articulação pretensamente criativa que exige do leitor um esforço de alguém perdido num labirinto para encontrar as saídas e os regressos de e para o ponto de partida. Apreciamos a simplicidade e do rigor deste sítio. A plataforma em que se insere a página tem capacidade suficiente para que possamos navegar sem os arreliadores tempos de espera, devidos à descarga lenta de imagens e ligações. Aqui tudo se faz com celeridade natural, o que dispõe bem e incentiva a continuar.

Em cada ligação encontramos a informação necessária e suficiente. Vê-se que, também aqui, se resistiu a outra tentação: a do enciclopedismo, do meter tudo, de juntar muitos dados e informações, muitas imagens e ligações para o exterior. Há conta, peso e medida.
As fotos que se incluem são límpidas, não pretensiosas, documentais, sem outro intuito que não seja o de completar a informação escrita. As reproduções de pinturas dos dois artistas são escassas mas de boa qualidade e com as informações técnicas exigíveis. O acervo documental e a biblioteca especializada são bem apresentados, de modo a suscitar a curiosidade para uma visita. É claro que gostaríamos de ver aqui a digitalização para consulta em-linha de uma parte significativa do espólio existente. Desejamos que essa seja a evolução natural, a ter em conta quem vive longe, seja em Portugal ou no estrangeiro.
                                
                Vieira da Silva: Autoportrait (1931)              


 Arpad Szenes: Autoportrait ( 1924-25)     
              
«A colecção do Museu Arpad Szenes-Vieira da Silva reúne um significativo núcleo de pintura e desenho, que cobre um vasto período da produção dos dois artistas: de 1911 a 1985 para Arpad Szenes, e de 1926 a 1986 para Vieira da Silva. O núcleo de gravura da artista inclui também obras de 1990 e 1991, um ano antes da sua morte.
A colecção de obras de arte do Museu incorpora ainda obras de artistas contemporâneos do casal, seus amigos, admiradores ou discípulos - no caso de Arpad Szenes, donde se destaca um conjunto de obras de artistas portugueses, na sua maioria em início de carreira.
A colecção integra ainda edições especiais ilustradas por Arpad Szenes e Vieira da Silva, um importante núcleo de fotografia proveniente do arquivo pessoal dos artistas e um fundo epistolográfico de cerca de 4 000 itens que remonta aos anos 1930, data coincidente com a ida de Vieira da Silva para Paris e posterior casamento com Arpad Szenes e engloba a correspondência do casal Szenes com artistas e intelectuais portugueses e estrangeiros ao longo de décadas.» (Do sítio-em-linha)

Acreditamos que nesta aproximação virtual aos espaços que foram habitados ou que preservam a memória de Arpad e Helena, partilhámos do mesmo sentimento que presidiu à sua criação: um imenso e carinhoso cuidado pela obra imortal que ali se celebra e evoca - e também um grande amor pela vida que uniu estes seres que nos legaram momentos tão altos de expressão artística.
Fomos convincentes? Então podem fazer também uma visita virtual. Sigam por aqui:

J. Moedas Duarte




UMA TELA DE CONSTANTINO FERNANDES NA CASA DOS PATUDOS EM ALPIARÇA

Escritório de José Relvas - Casa dos Patudos, Alpiarça


Abandonadas - Constantino Fernandes


ABANDONADASa tela favorita de José Relvas

                  
Quem visitar a Casa dos Patudos - Museu de Alpiarça - que foi residência do grande republicano e homem de cultura José Relvas[1], por este doada à Câmara Municipal daquela vila - verá numa das paredes do escritório um quadro a óleo sobre tela intitulado Abandonadas (1670 X 1775 mm), da autoria de Constantino Fernandes. Era o quadro favorito de José Relvas que o queria perto de si, no gabinete de trabalho que ainda hoje se conserva com os objectos de uso e o calendário de cartões em caixa de mogno e enfeites de prata, imobilizado no dia da sua morte: Outubro, Quinta-feira, 31 (1929).

José Relvas foi um grande proprietário agrícola que soube gerir com eficácia e proveito um bom núcleo de terras de vinha e olival. Desgostoso com a inépcia governativa monárquica, assumiu o risco da oposição política indo ao ponto de se envolver na preparação e realização da revolução republicana. Foi ele quem proclamou a República na varanda do Município de Lisboa, na manhã de 5 de Outubro de 1910.
Formado no Curso Superior de Letras de Lisboa, não descurou a formação prática em economia e finanças, tão necessária à gestão dos bens e, mais tarde, às responsabilidades de Ministro das Finanças do primeiro Governo republicano, tendo sido ele o criador da nova moeda, o escudo que substituiu o real. Porém, outra faceta da personalidade fascinante deste homem era a sua cultura artística. Exímio executante musical – tocava violino – viajou pela Europa e tornou-se um apreciador de arte de elevado critério, o que o levou a adquirir para a sua residência solarenga de Alpiarça um notabilíssimo acervo de peças de arte portuguesa e estrangeira que engloba pintura, escultura, tapeçaria, louças, mobiliário e azulejaria e que constitui o miolo do Museu que podemos visitar. José Relvas foi um homem preocupado com o bem público e com a justiça social, como bem mostra o seu testamento. Tendo visto morrer os seus três filhos, legou todos os bens – Casa e rendimentos de proprietário agrícola – à Câmara Municipal de Alpiarça, para que fosse construído um Asilo para os alpiarcenses pobres, o que veio a ser feito: ele lá está, do outro lado da estrada, frente à Casa-Museu.

O breve retrato do grande republicano era necessário para melhor entendermos o significado do quadro Abandonadas,[2] de Constantino Fernandes. A temática social que nele se adivinha era bem cara a José Relvas. Em primeiro plano, duas mulheres e um rapazito deslocam-se da direita para a esquerda, vindos de algum sítio que os repele. Não sabemos que sítio seja. Podemos, também, supor que se afastam de alguém de quem receberam ordem de expulsão. O que nos impressiona é o rosto destas personagens em que se expressa uma dignidade ferida, uma resignação mansa e fatalista, visível sobretudo na mulher do xaile amarelo e na criança. Nesta, a expressividade é avassaladora: não lhe vemos os olhos nem a boca, o rosto está numa posição abaixo do nosso olhar, mas a inclinação da cabeça e a mãozita que aconchega a gola do casaco revelam um enorme desamparo e uma infinita tristeza. A mulher do xaile amarelo traz uma criança ao colo, presença sugerida pelos folhos brancos e pelo volume dos braços que fazem berço. Mas ela não se fixa na criança. No seu rosto sério, os olhos perdem-se numa lonjura que vai muito para além do chão para onde parecem olhar. Na sua expressão está contida uma história de vida, um passado que não se adivinha risonho, mágoas acumuladas. É como se olhasse para um abismo que, de tão conhecido, já não a assusta. O mesmo abismo, aberto no chão, onde se parece fixar o olhar da criança.
A personagem do meio tem uma atitude diferente. Olha para trás, num derradeiro olhar em que se despede de alguém ou de um lugar. Não há rancor nem ameaça nos seus olhos, antes uma doçura e uma serenidade de quem aceita o inevitável. Mas a boca cerrada denota decisão, vontade de resistir à ameaça. As mãos estão ocultas debaixo da manta que lhe pende dos ombros. Talvez a mão esquerda se encoste ao ombro do rapazinho que, ao senti-la, aproxima a sua própria mão, como se respondesse num gesto silencioso.
Que mundo é o destas mulheres? Pelas roupas, depreendemos que será tempo de frio, o que sublinha o desconforto da cena, a juntar à terra do chão e às poças de água. A paisagem que as envolve é de uma zona fabril, com chaminés altas que expelem fumo e casario de área habitacional pobre. As colinas do fundo parecem-nos familiares, lembram a Serra de Monsanto, o que nos permite conjecturar que a cena se passa na zona de Alcântara onde, no início do século XX, se concentravam algumas fábricas.
O quadro foi pintado em 1909 por Constantino Fernandes. O título – Abandonadas – parece confirmar a nossa leitura: o quadro representa mulheres do povo anónimo num momento de desamparo. Temos a tentação de imaginar histórias: terão ido pedir trabalho e receberam uma má resposta? Foram expulsas de casa por um homem alcoolizado? Foram despejadas do casebre por um senhorio implacável? Mas logo percebemos que qualquer leitura concreta só empobrece o quadro.
Porque o que lhe dá força é o seu enorme poder sugestivo, sem referências explícitas. O título genérico e toda a composição concentram uma ideia essencial: o sofrimento de duas mulheres abandonadas, num tempo em que a condição feminina das mulheres do povo era muitas vezes intolerável.

Constantino Fernandes (1878 – 1920) insere-se na grande corrente artística do naturalismo / realismo [3], optando por temas de carácter social, pela representação rigorosa do corpo humano[4] ou pelo retrato. São características do seu estilo o rigor do desenho e a utilização de uma paleta elementar da qual tira todo o partido possível. As figuras surgem à boca da tela em enquadramento que mais tarde, em linguagem cinematográfica, se designou por “plano americano”- figuras humanas a 2/3, com corte por cima do joelho, o que permite uma maior aproximação do olhar de quem observa e sublinha a expressão dramática dos rostos e do movimento das figuras representadas. A tela “Abandonadas” é um exemplo brilhante da qualidade artística de C. Fernandes, reconhecida desde o momento da sua criação, quando o autor, bolseiro (“pensionista do Estado, como então se chamava) em Paris, foi distinguido com uma “primeira medalha” em 1909.

Torres Vedras, 29 de Abril de 2014
Joaquim Moedas Duarte






[1] Sobre José Relvas:
José Raimundo Noras – José Relvas (1858-1929), Fotobiografia. Leiria: Edição Imagens & Letras, 2009.
Catálogo da exposição José Relvas, o conspirador contemplativo. Lisboa: Divisão de Edições da Assembleia da República, 2008.
[2] Não é consensual o título do quadro. Nas obras referidas na nota 1 o quadro é designado por “As abandonadas”. José Augusto França, in: A arte em Portugal no século XIX (Lisboa, Livraria Bertrand, 1967) designa-o sem o artigo definido. Carlos Augusto Lyster Franco, que foi contemporâneo de Constantino Fernandes e com ele privou, também designa o quadro como “Abandonadas” no opúsculo “O pintor Constantino Fernandes”, separata do «Correio do Sul», Faro, 1950. (reproduzido in: Ana Rita Carvalho Afonso - A obra gráfica de Carlos Augusto Lyster Franco, Dissertação de Mestrado, vol.II.[Em linha] Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa, 2008. [Última cons. Em 29 de Abril de 2014]. Disponível em: http://hdl.handle.net/10451/7783)

[3] Do ponto de vista da pintura, ao contrário do que se passa na Literatura, naturalismo e realismo são dois conceitos que facilmente se confundem. Não cabe aqui tentar a destrinça que remete para considerações teóricas ligadas à Estética.
[4] Cf. Alberto Cláudio Rodrigues Faria – A colecção de desenho antigo da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa ( 1830- 1935): tradição, formação e gosto. Dissertação de Mestrado em Museologia e Museografia, vol. III, p. 135 [Em linha] Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2008.[Última cons. Em 29 Abril 2014]. Disponível em: