terça-feira, 7 de junho de 2016

EM TORNO DO CONCEITO DE LUGAR DE MEMÓRIA





Este texto propõe-se reflectir sobre um conceito que se vulgarizou e passou a andar associado à noção de património e de memória colectiva. Partimos de um caso concreto para tentarmos definir a origem e a fortuna da expressão criada por Pierre Nora na sua monumental obra “Les lieux de mémoire”.


Nas comemorações dos 200 anos da Guerra Peninsular, em 2010, numa visita guiada ao lugar da batalha da Roliça[1] (concelho do Bombarral), registámos este pequeno monumento situado no meio de pomares de pereiras e macieiras. Trata-se de um túmulo com os restos mortais do tenente-coronel Lake, comandante do regimento 29 do exército britânico que ali se bateu contra os franceses em 17 de Agosto de 1808.
Citamos um texto documental: «Noventa anos depois destes acontecimentos, o 29º regimento faz escala em Portugal, na viagem de regresso a Inglaterra depois da Guerra dos Bóeres na África do Sul. Fiel à tradição, o regimento visita a Roliça para homenagear os seus antepassados mortos. Fazem-se escavações. Pelos despojos encontrados, são reconhecidos os restos mortais do lendário coronel Lake que emocionadamente depositam no singelo túmulo que ali constroem.
No silêncio da paisagem este monumento, mais do que lembrar um nome, perpetua a memória de tantos soldados desconhecidos que aqui se bateram na Guerra Peninsular[2]

Na altura da visita, a expressão lugar de memória surgiu espontaneamente para designar este espaço tão intensamente evocativo. Não nos detivemos sobre o seu conteúdo mais profundo ou sequer sobre o facto de a expressão nos ter ocorrido de modo tão natural. Foi agora, no contexto da unidade curricular Memórias e Identidades, em leituras complementares, que nos interrogámos sobre a pertinência da designação. Ela entrou há muito no vocabulário corrente, podemos dizer com propriedade que já faz parte da nossa memória colectiva. De onde veio? Como se impôs?
Segundo Joel Candau[3] foi Frances A. Yates, na obra A arte da memória, publicada em 1975, quem pela primeira vez estudou sistematicamente a relação entre memória e lugar. Partiu da verificação de que a retórica antiga cultivava o domínio da memória como instrumento para os oradores que não dispunham dos meios que hoje temos e que, para isso, usavam a associação de um lugar a um conteúdo. A memorização do discurso apoiava-se na fixação prévia de um itinerário de lugares, de modo a garantir que a visualização mental permitisse ou facilitasse a colagem de cada parte do discurso, no que Yates chamou «sistema de lugares de memória».[4] Este processo baseava-se no conhecimento empírico de que a memória se apoia em espaços fixados pela nossa visão. Note-se que ainda hoje as reconstituições criminais são feitas nos lugares do crime como forma de induzir mais facilmente o reconhecimento de algo que se passou.
Pierre Nora retomou a expressão «lugar de memória» num contexto totalmente diferente. Assumindo-se como alguém da terceira geração dos Annales e ligado à chamada Nova História, centrou o seu trabalho em torno do estudo e análise da história contemporânea francesa. François Dosse, autor de uma biografia de P. Nora[5], descreve o percurso algo excêntrico deste académico. Sendo professor universitário nas décadas de 70 e 80, ganhou notoriedade como editor de obras históricas, movido por uma inesgotável curiosidade e abertura a todos os contributos dos seus pares. A sua capacidade para investigar em parceria com outros historiadores leva-o a colaborar com Jacques Le Goff, primeiro, e depois, com uma vasta equipa de mais de cem historiadores que coordenou entre meados dos anos 80 e 90. No âmbito desse trabalho são publicados «sete volumes, 135 artigos, mais de 5600 páginas»[6] sob o título genérico Les lieux de mémoire, um empreendimento gigantesco que alterou decisivamente o panorama da historiografia francesa, como refere Armelle Enders[7] e cuja amplitude «seria irracional tentar resumir em poucas linhas», como diz J. Candau. Citando A. Enders: «Esse empreendimento 'memorial', coordenado por Pierre Nora, tem por origem seu seminário sobre história do presente, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, e durará mais de 10 anos, concluído em 1993 com a publicação do último tomo dos "Lugares da memória". Propondo o retorno ao questionamento sobre a nação mediante a análise dos 'lugares da memória' (material, simbólico, funcional), o primeiro tomo consagra-se à "República" (1 volume sobre o século XIX), o segundo (3 volumes) à "Nação" (a partir da Idade Média), e o terceiro (3 volumes) às "Franças" (les France).»
Importa reter que a feliz expressão “lugares de memória” em torno da qual se erigiu a obra, acabou por se vulgarizar e até banalizar, apropriada por uma opinião pública ávida de história mas pouco dada à leitura e à reflexão. Passou a funcionar como os modernos sound bites da comunicação social, facto a que não terá sido estranha a utilização do próprio Jack Lang, ministro da cultura em 1986, que nela se apoiou para defender o relançamento de políticas de defesa do Património. É o que o próprio Pierre Nora explica numa extensa e muito elucidativa entrevista dada a Ana Fonseca Brefe, em 1999[8]:
«Eu seria malvisto se reclamasse dessa difusão e só posso me alegrar de ver a noção servir a boas causas. Mas é preciso reconhecer que o sucesso, como acontece na maior parte das vezes, se faz ao preço de interpretações empobrecidas e mesmo em um contra-senso. Um lugar de memória, para mim, não poderia nunca ser reduzido a um objeto material, mas sim, ao contrário. A noção é feita para liberar a significação simbólica, memorial – portanto abstrata – dos objetos que podem ser materiais, mas na maior parte das vezes não o são. Na verdade, existem somente lugares de memória imateriais, senão seria suficiente que falássemos de memoriais
Tentemos aprofundar a questão de saber como se constituiu este conceito que, afinal, aponta para um conteúdo desmaterializado da memória. Na referida entrevista P. Nora explica longamente que não partiu de uma teorização prévia, mas sim da intuição de que era necessário um novo olhar sobre a história da França. O seu projecto centra-se na observação das profundas mudanças históricas desde Napoleão até aos nossos dias, com a aceleração da história/acontecimento e a contradição entre a sedimentação da memória colectiva – mítica, sagrada, emotiva - e a fixação de uma historiografia que a problematiza, dessacraliza e desmitifica. Diz Nora: «A história é reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenómeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história uma representação do passado[9]
É neste conflito entre vivido e reflectido, entre emoção e razão, que se evidencia a importância da memória, lugar de fixação de lembranças e esquecimentos num tempo mais espesso e duradouro que, de alguma forma, representa uma resistência à aceleração da história, ritmada pelos media que transmitem ao homem contemporâneo «a sensação de hegemonia do efémero»[10].
O grande projecto de Nora que se vai centrar numa história da memória radica nas profundas mudanças verificadas na sociedade francesa a partir dos anos 70: fim do grande ciclo de crescimento económico pós-guerra e do predomínio da ruralidade, fim da ideia de França como grande potência mundial, «fim da ideia revolucionária como organizadora do sentido da história».[11] Nora detecta na sociedade francesa uma espécie de consciência de perda colectiva que leva à revalorização do passado nacional e induz como compensação o crescente culto do património. Este fenómeno leva-o à procura dos «objectos que fossem portadores dessa expressão do sentimento nacional»[12] e cita, como exemplos, o Panteão, os monumentos aos mortos, a bandeira nacional, o 14 de Julho, os museus, etc – memoriais em que se ancorava a consciência nacional e de que ele vai tentar descobrir o modo como se instituíram e consolidaram. Um vasto campo que se alargou à medida que o ia percorrendo e onde se cruzam temas como o das comemorações com seus ritos colectivos ou o da própria história da historiografia – esse grande território em que evoluem as noções cruciais de memória e história, numa conflitualidade surda que cabe ao historiador das sociedades contemporâneas compreender e explicar. Nora refere que se tratou de uma empresa de que nem tinha noção da dimensão quando a ela se abalançou mas que, com o tempo, foi ganhando novos contornos. O próprio conceito de que temos vindo a tratar é assim visto por ele:
«(…) se eu me precipitei sobre a expressão os lugares da memória, que me pareceu se impor desde o princípio para abranger objectos tão diferentes uns dos outros, essa noção em si mesma quando quisemos defini-la, cercá-la intelectualmente, tivemos muitos problemas para fazê-lo. Assim, eu levei muito tempo para elaborá-la, e ela, progressivamente, se transformou.»[13]
Isto é: o conceito de lugar de memória não é unívoco. Nem o próprio Nora lhe reconhece nitidez de contornos já que ele evoluiu ao longo dos anos em que a obra foi sendo publicada. Contudo, numa fase final destes estudos propôs uma definição que nos pode ajudar a entender a complexidade do conceito:
«Lugar de memória, então: toda unidade significativa, de ordem material ou ideal, que a vontade dos homens ou o trabalho do tempo converteu em elemento simbólico do património memorial de uma comunidade qualquer.»[14] (Pierre Nora – Les lieux de mémoire, Paris: Gallimard, 1997)
Margarida S. Neves[15] sistematiza a sua leitura de Nora referindo que os lugares de memória têm três componentes: material, funcional e simbólica. Explicitando o seu conteúdo diremos que a componente material é aquela em que os sentidos apreendem os sinais da memória colectiva – caso dos memoriais construídos nos lugares de batalhas, os arcos do triunfo, as placas comemorativas, as bandeiras, os hinos, etc; a funcional que se refere à memória como sinal de identidade, de demarcação ou, até, de afrontamento face a grupos antagónicos – os rituais comemorativos, por exemplo, associados ou não à componente material; e a terceira componente simbólica constituída pelos significados mais profundos que a memória colectiva atribui a determinados lugares.
Em qualquer caso, estes lugares são espaços materiais ou ideais onde coexistem a história e a memória, em conflito ou em complementaridade, e sempre em mutação de acordo com as épocas e os grupos que deles se apropriam ou que os impõem. Um caso paradigmático de um destes lugares de memória é o promontório de Sagres cujo processo de mitificação Maria Isabel João estudou[16], evidenciando o modo como se construiu uma narrativa que se foi incorporando na memória colectiva, em oposição a uma historiografia que se tem mostrado insuficiente para erradicar os traços mais marcantes dessa memória.
Em jeito de conclusão, cremos ter delineado em breve resumo a origem e o processo de afirmação do conceito de lugar de memória. Voltando ao túmulo de Lake nos campos da Roliça, talvez o olhemos agora com outro entendimento. É um lugar de memória porque contém em si um simbolismo que o transcende como simples registo fúnebre; e também porque nele convergiram uma vontade de celebrar, um desejo de evocar e um apelo a inscrever na eternidade da memória colectiva um acontecimento que a história regista como definitivamente passado.
J. Moedas Duarte
Trabalho elaborado no âmbito da disciplina 
"Memórias e identidades" do Mestrado em Estudos do Património, 2014 


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BIBLIOGRAFIA
CANDAU, JOEL - Antropologia da memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2013.

WEBGRAFIA
Brefe, Ana Fonseca – Pierre Nora ou o historiador da memória. [Em linha] in:
História Social, Campinas, nº 6, 1999, pp.13-33.[Consult. 10 Maio 2014]. Disponível em: < http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/view/363/314

Enders, Armelle – Les lieux de mémoire, dez anos depois [Em linha]in:Estudos
            históricos, vol.6, nº 11(1993), Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil  [Consult. 13 Maio 2014]. Disponível em:<
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/issue/view/277 >. Em nota final indica o plano completo da obra.

Gonçalves, Janice - Pierre Nora e o tempo presente: entre a memória e o
património cultural. [Em linha] Historiae, Rio Grande, 3, 2012, pp. 27-46. [Consult. 13 Maio 2014] Disponível em: <

joão, Maria Isabel – Sagres, lugar mítico da memória. [Em linha] In
"Des(a)fiando discursos:       Homenagem a Maria Emília Ricardo Marques".
 Lisboa : Universidade Aberta, 2005, p.       409-422. [Consult. em 12 Maio
 2014]Disponível em:<             https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/375

neves, Margarida Sousa  – Lugares de memória na PUC-Rio. [Em linha]
Pontifícia      Universidade Católica- Núcleo de memória, Rio de Janeiro. [Consult. 13 Maio 2014].      Disponível em:< http://nucleodememoria.vrac.puc-rio.br/site/lugaresmargarida.htm

Ribeiro, Renilson R. – Nos jardins do tempo: memória e história na perspectiva de
Pierre Nora [Emlinha] in: História e-história. [Consult. 11 Maio 2014]. Disponível em:<

Silva, Helenice Rodrigues da – Resenha do livro de François Dosse “Pierre
Nora – homo historicus” inserta na Revista Brasileira de História [Em linha], vol. 31, nº 61, São Paulo, 2011. [Conslt. 11 de Maio de 2014]. Disponível em:< http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882011000100020 >





[3] Joel Candau – Antropologia da memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2013, pp. 60 e 188.
[4] Joel Candau, op. cit, p. 61.
[5] Apoiamo-nos na recensão de Helenice Rodrigues da Silva inserta na Revista Brasileira de História [Em linha], vol. 31, nº 61, São Paulo, 2011. [Conslt. 11 de Maio de 2014]. Disponível em:< http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882011000100020 >
[6] Joel Candau, op. cit, p.188.
[7] Armelle Enders - LES LIEUX DE MEMOIRE, DEZ ANOS DEPOIS.[Em linha]in:Estudos históricos, vol.6, nº 11(1993), Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil  [Consult. 13 Maio 2014]. Disponível em:< http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/issue/view/277 >. Em nota final indica o plano completo da obra.
[8] Ana Fonseca Brefe – Pierre Nora ou o historiador da memória. [Em linha] in: História Social, Campinas, nº 6, 1999, pp.13-33.[Consult. 10 Maio 2014]. Disponível em: <
[9] Cf: Renilson R. Ribeiro – Nos jardins do tempo: memória e história na perspectiva de Pierre Nora [Em linha] in: História e-história. [Consult. 11 Maio 2014]. Disponível em:<
[10] Cf: Renilson R. Ribeiro, idem, p.2
[11] Cf: Ana Fonseca Brefe – Pierre Nora ou o historiador da memória…, p.23.
[12] Idem, p. 24.
[13] Cf: Ana Fonseca Brefe – Pierre Nora ou o historiador da memória…, pp. 25-26.
[14] Citado por Janice Gonçalves in: Pierre Nora e o tempo presente: entre a memória e o património cultural. [ Em linha] Historiae, Rio Grande, 3, 2012, pp. 27-46. [Consult. 13 Maio 2014] Disponível em: < http://www.seer.furg.br/hist/article/view/3260/1937 >
[15] Margarida Sousa Neves – Lugares de memória na PUC-Rio. [Em linha] Pontifícia Universidade Católica- Núcleo de memória, Rio de Janeiro. [Consult. 13 Maio 2014]. Disponível em:< http://nucleodememoria.vrac.puc-rio.br/site/lugaresmargarida.htm
[16] Maria Isabel João – Sagres, lugar mítico da memória. [Em linha] In "Des(a)fiando discursos: Homenagem a Maria Emília Ricardo Marques". Lisboa : Universidade Aberta, 2005, p. 409-422. [Consult. em 12 Maio 2014]Disponível em:< https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/375




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