Quarenta anos após o 25 de Abril de
74, qual o significado da comemoração daquele acontecimento? Propomo-nos
reflectir sobre as diferentes percepções do tempo histórico e procurar entender
as teias em que se cruzam as memórias e a história na comemoração daquela data.
E também reconhecer o papel do ensino na formação de uma memória histórica que
corrija as limitações e as manipulações da memória colectiva.
Neste Abril de 2014, em
revistas, jornais, reportagens na televisão e na rádio, milhares de páginas
foram escritas e imagens divulgadas, mostrando à saciedade que «as memórias não nos transmitem a realidade,
mas a visão, a imagem, a representação que os seres humanos têm da realidade»[1] .
Não há um 25 de Abril, há
múltiplos. E se a memória colectiva é o resultado de um jogo oculto entre
lembrança e esquecimento[2], é bem visível nesta
multiplicidade que os mecanismos desse jogo variam de acordo com factores
subjectivos muito diversos, consoante os contextos sócio-políticos em que se
moveram os actores daquele acontecimento histórico - o que torna muito
problemática a abordagem tendencialmente objectiva do historiador, mais ainda
se ele mesmo foi actor. [3] Veja-se, a título de
exemplo, o livro de Raquel Varela, HISTÓRIA
DO POVO NA REVOLUÇÃO PORTUGUESA 1974/75, Bertrand Editora, Lisboa, 2014, recentemente
publicado e desde logo objecto de polémica pelo olhar inovador e, de certo
modo, questionador de uma certa historiografia dominante.
Contudo, paralelamente ao
esforço dos historiadores para estabelecerem uma leitura científica do nosso
passado recente, mantêm-se activas as fontes da memória colectiva, seja a de
cariz favorável ao 25 de Abril seja a de sinal contrário, como é o caso da assunção
clara das memórias de alguns anti-abrilistas militantes, na revista do semanário
Expresso 25 DE ABRIL 40 ANOS. Esta
diversidade sublinha quanto é ilusório um consenso sobre aquela data, como se
confirmou com as duas comemorações antagónicas na Assembleia da República e no
Largo do Carmo e como – apesar dos apelos do Presidente da República, é
impraticável o entendimento entre os partidos políticos acerca dos problemas
essenciais do país.[4]
A comemoração dos 40 anos do 25 de Abril inscreve-se na tendência comemoracionista
característica das sociedades contemporâneas, fenómeno bem estudado por
Fernando Catroga e Maria Isabel João.[5] O acto de comemorar
reveste sempre a intenção de perpetuar algo, opondo à inexorável marcha do
tempo a barreira da rememoração. É uma forma de prevenir o esquecimento e de
garantir a presença do passado junto das franjas populacionais mais jovens que,
por não terem vivenciado os acontecimentos considerados dignos de comemoração,
têm tendência para os desvalorizar. Contudo, estas comemorações são bem
diversas das que o Estado Novo obsessivamente promoveu, na senda da sua
permanente autojustificação e que tiveram, em 1940, o coroamento lógico com a
junção das duas datas mais simbólicas da nacionalidade, a da fundação de
Portugal e a da Restauração da independência. Aquelas revestiram-se de elevado
sentido simbólico, aparentemente imunes à impossibilidade de consenso que,
sabemo-lo hoje, não passava de ilusória promessa de unanimismo nacionalista e
desprezo militante por qualquer visão oposta – em contraste com as de agora,
permeáveis à evidência de que qualquer acto comemorativo está sujeito «às tensões decorrentes da luta pela
hegemonização do poder simbólico, condição essencial de radicação de todo o
poder.»[6]
Tal como acontecia ainda
não há muito tempo com o 5 de Outubro e a implantação da República, as
comemorações do 25 de Abril mostraram, mais uma vez, que se trata de uma data
geradora de conflitos interpretativos. Mas essa é, afinal, a matriz comum a
qualquer data em particular ou a qualquer narrativa histórica em geral.[7]
Será que tais dissensões radicam
na questão de saber se é possível uma historiografia consensual, universalmente
aceite, tão indiscutível como a lei da gravidade? Tal hipótese é sustentada por
um certo discurso comum que apela para o julgamento da história como
justificativo de opções tomadas: “A história dirá quem tem razão!” – ouvimos
ainda, aqui e ali. Mas esta é uma questão que a historiografia já resolveu
desde que a chamada Nova História rejeitou as ilusões positivistas e
estabeleceu as bases da história crítica – visão histórica não partilhada,
naturalmente, pelo regime anterior a Abril de 74 para o qual só poderia existir
uma história oficial, ensinada no “livro único”.
Adiantamos outra
hipótese: apesar do copioso acervo de trabalhos históricos dedicados ao 25 de
Abril e aos anos que se lhe seguiram[8], permanecem áreas de
penumbra em que não parece possível, ainda, destrinçar o que é memória
colectiva do que é história. É uma hipótese viável se aceitarmos que foi nesse
espaço que se defrontaram as interpretações ideológicas sobre o Abril de 1974,
desde essa data até ao presente.
Maurice Halbwachs abordou
aprofundadamente esta questão e propôs que a história só tem lugar depois do
apagamento da memória colectiva, o que pressupõe um afastamento temporal entre
o historiador e o acontecimento narrado. Memória e história seriam conceitos
antitéticos, a segunda só teria lugar quando se extinguisse a primeira.
«C'est qu'en général l'histoire ne commence qu'au
point où finit la tradition, au moment où s'éteint ou se décompose la mémoire
sociale. Tant qu'un souvenir subsiste, il est inutile de le fixer par écrit, ni
même de le fixer purement et simplement. Aussi le besoin d'écrire l'histoire
d'une période, d'une société, et même d'une personne ne s'éveille-t-il que
lorsqu'elles sont déjà trop éloignées dans le passé pour qu'on ait chance de
trouver longtemps encore autour de soi beaucoup de témoins qui en conservent
quelque souvenir.»[9]
Pierre Nora acentuou esta
oposição entre memória e história quando escreveu que «longe de serem
sinónimos, tudo as opõe.»[10]
Curiosamente, esta
concepção era a que presidia ao ensino da história em Portugal antes de Abril
de 1974. Mas aí a história contemporânea estava afastada dos programas escolares
por razões claramente ideológicas e não por outras. O regime de Salazar/Caetano
entendia que seria nociva a abordagem do que chamava “os novos ventos da
história”, emergentes após o final da Segunda Guerra Mundial, caracterizados
pela implantação dos regimes democráticos de tipo ocidental e pela concessão da
autodeterminação e independência aos povos colonizados. Este vazio de história
permitia que fosse a memória colectiva, elaborada ou manipulada pelo regime, a
sustentar e justificar as suas opções políticas. Impôs-se assim uma narrativa
ideológica coerente e globalizadora expressa no slogan “Deus, Pátria, Autoridade
e Família”, resumo e bandeira de valores indiscutíveis e universais[11]. Nesta construção
ideológica encontramos todas as características da memória colectiva
exaustivamente descritas por Halbwachs na obra citada, bem como por Pierre Nora
em Les lieux de mémoire[12]
- bem esquematizadas por Maria Isabel João[13].
No entanto esta visão
radical que opunha memória e história está hoje muito atenuada como tem sido demonstrado
por François Dosse, pois assentava na concepção da história como disciplina
positivista, firmada na crença da total objectividade dos processos hermenêuticos,
uma perspectiva epistemológica actualmente posta em causa. Walter Benjamin opôs
a este modelo, um outro voltado para a interpretação dos acontecimentos e para
a busca do seu sentido[14], o que abre caminho à
confluência entre os dados de conhecimento facultados pelas memórias –
individual e colectiva - e o trabalho do historiador que os analisa e lê, numa
mediação crítica garantida pelos modernos instrumentos de pesquisa hoje
universalmente aceites como base de conhecimento científico reconhecido à
historiografia contemporânea.[15]
A revalorização da
história contemporânea assim operada abre caminho à sua abordagem como
disciplina nuclear no sistema de ensino. Longe de ficar à espera que os anos
passem para depois se pronunciar sobre os acontecimentos, a história assume a
capacidade para ler os acontecimentos contemporâneos à luz de práticas
historiográficas já testadas, em articulação com as metodologias usadas pelas
outras ciências humanas, nomeadamente a sociologia e a antropologia; mas também
a economia política, o direito, a diplomática, a psicologia social, a
demografia, a geografia, etc.
Ao contrário do que seria
de esperar, os jovens têm uma visão maioritariamente crítica sobre a ditadura[16], o que pode significar
que se identificam com o maior valor atribuído ao 25 de Abril – a conquista da
Liberdade. Contudo, é bem sabido que as memórias são realidades voláteis que
sofrem a usura do tempo e das circunstâncias. Períodos de crise, ciclos de
penúria material, desemprego e insegurança podem fazer inverter muito
rapidamente os elementos positivos de identidade social. É por isso que o
ensino da História é um factor crucial para a consciencialização cívica das
gerações mais novas e uma barreira para as manipulações de caudilhos populistas
que sempre aparecem nos períodos conturbados da vida social.
O ensino da História pode
e deve «contribuir para forjar uma memória fundada na razão, informada, crítica
e plural. Uma memória histórica que tenha quadros de referência suficientes
para pensar sobre o mundo e a sociedade, para continuar a informar-se e a ter
interesse pela história.»[17]
As comemorações do 25 de
Abril avivam memórias contraditórias entre os que o viveram e induz incertezas
de apreciação entre os jovens que dele ouvem falar. Constituem um momento de
acentuado valor simbólico em que o passado penetra no presente mas é por este
contaminado pelas dissensões e contradições que pontuam a marcha das sociedades
humanas. A partir dessa força simbólica, os poderes constituídos têm tendência
a invocar uma unidade perdida que teria existido na data comemorada.[18] Fazem-no como forma de exorcizar
as divergências do presente ou de defender projectos de futuro, o que
significa, de qualquer modo, formas mais ou menos subtis de manipulação das
memórias.
Cabe aos guardiões da
História a defesa de uma memória crítica que se oponha às manipulações e
apetreche as novas gerações com instrumentos de análise e de compreensão do
passado que lhes permitam intervir na vida social e política como cidadãos lúcidos
e conscientes.
Joaquim Moedas Duarte
"Memórias e Identidades" - Mestrado em
ESTUDOS DO PATRIMÓNIO
2014
BIBLIOGRAFIA
CATROGA,
Fernando – Ritualizações da história / As comemorações como liturgias cívicas,
in:
História da história
de Portugal – sécs XIX-XX.
Lisboa: Círculo de Leitores, 1996.
JOÃO, Maria Isabel – Memória e identidade, Universidade
Aberta, 2014.
JOÃO, Maria Isabel - Memória,
história e educação. In: separata da Revista NW noroeste, revista
de História, Núcleo de Estudos Históricos da Universidade do Minho, Braga,
2005.
HALBWACHS, Maurice - La mémoire colective. Édition critique, Paris,: Éditions Albin Michel,
1997.
TORGAL,
Luís Reis – História, divulgação e ficção, in: História da história de Portugal – sécs XIX-XX. Lisboa: Círculo de
Leitores, 1996.
*
WEBGRAFIA
BARRIÈRE, Philippe - La Deuxième Guerre mondiale entre histoire et mémoire(s): épistémologie,
méthodologie
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linha]. [Cons. em 30 Abril 2014]. Disponível em: < http://www.ac-grenoble.fr/histoire/programmes/lycee/classique/terminale/hist/histoireetmemoirei.pdf
DOSSE, François -
Entre histoire et mémoire:une histoire social de la mémoire [Em linha] Raison présente,
Setembro 1998, p. 3. [Consultada em
30 Abril 2014]. Disponível em: <
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Maria Isabel - Memória e história: os
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JOÃO,
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RICOEUR, Paul –
Memória, história, esquecimento.
Conferência proferida em Budapeste em 8 de Março
de 2003. [Em linha]. [Cons. 4 Maio
2014]. Disponível em:<
SILVA, Helenice Rodrigues da – “Rememoração” / Comemoração:
as utilizações sociais da memória. [Em
linha]. Revista Brasileira de História, vol 22,
nº 44, São Paulo, 2002. [Cons. 4 Maio 2014].
[1]
Cf: Maria Isabel João, Memória e
história: os problemas e o método, [Em linha], UAb, disponível em https://www.dropbox.com/sh/dqtan65xgi515hy/g6rR-Y-jtG/T1_Memoria_e_%20Historia.pdf,
p.1.
[2]
Cf Paul Ricoeur – Memória, história,
esquecimento. Conferência proferida em Budapeste em 8 de Março de 2003. [Em
linha]. [Cons. 4 Maio 2014]. Disponível em:<
[3]
Cf: Luís Reis Torgal – História, divulgação e ficção, in: História da história de Portugal – sécs XIX-XX. Lisboa: Círculo de
Leitores, 1996, pp. 491- 545. O autor analisa detalhadamente a relação entre a
escrita da história e o posicionamento ideológico de quem a escreve alargando o
campo de pesquisa à área da divulgação histórica, a mais vulnerável à
manipulação com fins doutrinários.
[4]
Cf. Discurso de Cavaco Silva na Assembleia da República na sessão solene de 25
de Abril de 2014. Disponível em: http://www.presidencia.pt/?idc=22&idi=83219.
[5]
Fernando Catroga – Ritualizações da história / As comemorações como liturgias
cívicas, in: História da história de
Portugal – sécs XIX-XX. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, pp. 547-671.
Maria Isabel João – Memória
e Império – comemorações em Portugal (1880-1960). Dissertação de
Doutoramento em História Contemporânea.[Em linha]Universidade Aberta, 1999.[Cons.
4 Maio 2014]. Disponível em:< https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/2466
[6]
Fernando Catroga, op. cit, p. 548.
[7]
Cf. Luís Reis Torgal, op.cit., p.491:
«Seja como for, entendemos como José Mattoso, que a história é, efectivamente,
uma “representação de representações”.»
[8]
Ver artigo de Inácia Rezola – Ensinar a história do século XX: o 25 de Abril
[Em linha]. Associação de Professores de História, Circular informação 81, Maio 2012, com um detalhado registo do
movimento editorial àcerca do 25 de Abril. [Cons. 4 Maio 2014]. Disponível
em:<
[9] Maurice Halbwachs – La mémoire colective. Édition critique,
Paris, Éditions Albin Michel, 1997, p. 130.
[10]
Citado por François Dosse in Entre histoire et mémoire:une histoire social de
la mémoire [Em linha] Raison présente,
Setembro 1998, p. 3. [Consultada em 30 Abril 2014]. Disponível em: <
[11]
Cf: Discurso de Salazar pronunciado em Braga, no 10º aniversário do 28 de Maio, em 1936: «Não discutimos Deus e a virtude. Não
discutimos a Pátria e a Nação. Não discutimos a autoridade e o seu prestígio. Não discutimos a família e a
sua moral». In: Discursos,
Vol. II, Coimbra Editora, 1936, pp. 128/129.
[12]
Citado por Philippe Barrière in La
Deuxième Guerre mondiale entre histoire et mémoire(s): épistémologie,
méthodologie et déontologie [Em linha]. [Cons. em 30 Abril 2014].
Disponível em: < http://www.ac-grenoble.fr/histoire/programmes/lycee/classique/terminale/hist/histoireetmemoirei.pdf
[13]
«[A] Memória colectiva é espontânea ou elaborada, fruto da vivência e dos
interesses dos grupos, funda-se no sentimento, na emoção, numa visão subjectiva e idealizada do passado e do
próprio grupo, é imprecisa, vaga em relação ao tempo e ao espaço e pouco fiel
aos factos, conserva por um momento, apaga, reinventa a seu gosto. A memória
colectiva geralmente divide.» in: Maria Isabel João – Memória e identidade, Universidade Aberta, 2014.
[14]
Cf. François Dosse, op. cit. p. 5.
[15]
Cf. Helenice Rodrigues da Silva – “Rememoração” / Comemoração: as utilizações
sociais da memória. [Em linha]. Revista
Brasileira de História, vol 22, nº 44, São Paulo, 2002. [Cons. 4 Maio
2014]. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882002000200008&script=sci_arttext
>
[16]
Cf. Inácia Rezola, op. cit., p.2
[17]
Cf. Maria Isabel João – O ensino e a memória histórica. [Em linha] Associação
de Professores de História, s.d., Opinião. [Cons. 4 Maio 2014]. Disponível
em:< http://www.aph.pt/ex_opiniao7.php
;
E também: - Memória,
história e educação. In: separata da Revista NW noroeste, revista de História, Núcleo de Estudos Históricos da
Universidade do Minho, Braga, 2005.
[18]
Cf. comunicação ao país do Primeiro Ministro Passos Coelho em 4 de Maio de 2014
em que invoca uma mítica pureza unanimista do 25 de Abril para justificar as
suas opções políticas.
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