terça-feira, 7 de junho de 2016

COMEMORAÇÃO, MEMÓRIA E HISTÓRIA

                                                                               



Quarenta anos após o 25 de Abril de 74, qual o significado da comemoração daquele acontecimento? Propomo-nos reflectir sobre as diferentes percepções do tempo histórico e procurar entender as teias em que se cruzam as memórias e a história na comemoração daquela data. E também reconhecer o papel do ensino na formação de uma memória histórica que corrija as limitações e as manipulações da memória colectiva.


Neste Abril de 2014, em revistas, jornais, reportagens na televisão e na rádio, milhares de páginas foram escritas e imagens divulgadas, mostrando à saciedade que «as memórias não nos transmitem a realidade, mas a visão, a imagem, a representação que os seres humanos têm da realidade»[1] .
Não há um 25 de Abril, há múltiplos. E se a memória colectiva é o resultado de um jogo oculto entre lembrança e esquecimento[2], é bem visível nesta multiplicidade que os mecanismos desse jogo variam de acordo com factores subjectivos muito diversos, consoante os contextos sócio-políticos em que se moveram os actores daquele acontecimento histórico - o que torna muito problemática a abordagem tendencialmente objectiva do historiador, mais ainda se ele mesmo foi actor. [3] Veja-se, a título de exemplo, o livro de Raquel Varela, HISTÓRIA DO POVO NA REVOLUÇÃO PORTUGUESA 1974/75, Bertrand Editora, Lisboa, 2014, recentemente publicado e desde logo objecto de polémica pelo olhar inovador e, de certo modo, questionador de uma certa historiografia dominante.
Contudo, paralelamente ao esforço dos historiadores para estabelecerem uma leitura científica do nosso passado recente, mantêm-se activas as fontes da memória colectiva, seja a de cariz favorável ao 25 de Abril seja a de sinal contrário, como é o caso da assunção clara das memórias de alguns anti-abrilistas militantes, na revista do semanário Expresso 25 DE ABRIL 40 ANOS. Esta diversidade sublinha quanto é ilusório um consenso sobre aquela data, como se confirmou com as duas comemorações antagónicas na Assembleia da República e no Largo do Carmo e como – apesar dos apelos do Presidente da República, é impraticável o entendimento entre os partidos políticos acerca dos problemas essenciais do país.[4]

A comemoração dos 40 anos do 25 de Abril  inscreve-se na tendência comemoracionista característica das sociedades contemporâneas, fenómeno bem estudado por Fernando Catroga e Maria Isabel João.[5] O acto de comemorar reveste sempre a intenção de perpetuar algo, opondo à inexorável marcha do tempo a barreira da rememoração. É uma forma de prevenir o esquecimento e de garantir a presença do passado junto das franjas populacionais mais jovens que, por não terem vivenciado os acontecimentos considerados dignos de comemoração, têm tendência para os desvalorizar. Contudo, estas comemorações são bem diversas das que o Estado Novo obsessivamente promoveu, na senda da sua permanente autojustificação e que tiveram, em 1940, o coroamento lógico com a junção das duas datas mais simbólicas da nacionalidade, a da fundação de Portugal e a da Restauração da independência. Aquelas revestiram-se de elevado sentido simbólico, aparentemente imunes à impossibilidade de consenso que, sabemo-lo hoje, não passava de ilusória promessa de unanimismo nacionalista e desprezo militante por qualquer visão oposta – em contraste com as de agora, permeáveis à evidência de que qualquer acto comemorativo está sujeito «às tensões decorrentes da luta pela hegemonização do poder simbólico, condição essencial de radicação de todo o poder[6]

Tal como acontecia ainda não há muito tempo com o 5 de Outubro e a implantação da República, as comemorações do 25 de Abril mostraram, mais uma vez, que se trata de uma data geradora de conflitos interpretativos. Mas essa é, afinal, a matriz comum a qualquer data em particular ou a qualquer narrativa histórica em geral.[7]
Será que tais dissensões radicam na questão de saber se é possível uma historiografia consensual, universalmente aceite, tão indiscutível como a lei da gravidade? Tal hipótese é sustentada por um certo discurso comum que apela para o julgamento da história como justificativo de opções tomadas: “A história dirá quem tem razão!” – ouvimos ainda, aqui e ali. Mas esta é uma questão que a historiografia já resolveu desde que a chamada Nova História rejeitou as ilusões positivistas e estabeleceu as bases da história crítica – visão histórica não partilhada, naturalmente, pelo regime anterior a Abril de 74 para o qual só poderia existir uma história oficial, ensinada no “livro único”.

Adiantamos outra hipótese: apesar do copioso acervo de trabalhos históricos dedicados ao 25 de Abril e aos anos que se lhe seguiram[8], permanecem áreas de penumbra em que não parece possível, ainda, destrinçar o que é memória colectiva do que é história. É uma hipótese viável se aceitarmos que foi nesse espaço que se defrontaram as interpretações ideológicas sobre o Abril de 1974, desde essa data até ao presente.
Maurice Halbwachs abordou aprofundadamente esta questão e propôs que a história só tem lugar depois do apagamento da memória colectiva, o que pressupõe um afastamento temporal entre o historiador e o acontecimento narrado. Memória e história seriam conceitos antitéticos, a segunda só teria lugar quando se extinguisse a primeira.

«C'est qu'en général l'histoire ne commence qu'au point où finit la tradition, au moment où s'éteint ou se décompose la mémoire sociale. Tant qu'un souvenir subsiste, il est inutile de le fixer par écrit, ni même de le fixer purement et simplement. Aussi le besoin d'écrire l'histoire d'une période, d'une société, et même d'une personne ne s'éveille-t-il que lorsqu'elles sont déjà trop éloignées dans le passé pour qu'on ait chance de trouver longtemps encore autour de soi beaucoup de témoins qui en conservent quelque souvenir.»[9]

Pierre Nora acentuou esta oposição entre memória e história quando escreveu que «longe de serem sinónimos, tudo as opõe.»[10]
Curiosamente, esta concepção era a que presidia ao ensino da história em Portugal antes de Abril de 1974. Mas aí a história contemporânea estava afastada dos programas escolares por razões claramente ideológicas e não por outras. O regime de Salazar/Caetano entendia que seria nociva a abordagem do que chamava “os novos ventos da história”, emergentes após o final da Segunda Guerra Mundial, caracterizados pela implantação dos regimes democráticos de tipo ocidental e pela concessão da autodeterminação e independência aos povos colonizados. Este vazio de história permitia que fosse a memória colectiva, elaborada ou manipulada pelo regime, a sustentar e justificar as suas opções políticas. Impôs-se assim uma narrativa ideológica coerente e globalizadora expressa no slogan “Deus, Pátria, Autoridade e Família”, resumo e bandeira de valores indiscutíveis e universais[11]. Nesta construção ideológica encontramos todas as características da memória colectiva exaustivamente descritas por Halbwachs na obra citada, bem como por Pierre Nora em Les lieux de mémoire[12] - bem esquematizadas por Maria Isabel João[13].

No entanto esta visão radical que opunha memória e história está hoje muito atenuada como tem sido demonstrado por François Dosse, pois assentava na concepção da história como disciplina positivista, firmada na crença da total objectividade dos processos hermenêuticos, uma perspectiva epistemológica actualmente posta em causa. Walter Benjamin opôs a este modelo, um outro voltado para a interpretação dos acontecimentos e para a busca do seu sentido[14], o que abre caminho à confluência entre os dados de conhecimento facultados pelas memórias – individual e colectiva - e o trabalho do historiador que os analisa e lê, numa mediação crítica garantida pelos modernos instrumentos de pesquisa hoje universalmente aceites como base de conhecimento científico reconhecido à historiografia contemporânea.[15]

A revalorização da história contemporânea assim operada abre caminho à sua abordagem como disciplina nuclear no sistema de ensino. Longe de ficar à espera que os anos passem para depois se pronunciar sobre os acontecimentos, a história assume a capacidade para ler os acontecimentos contemporâneos à luz de práticas historiográficas já testadas, em articulação com as metodologias usadas pelas outras ciências humanas, nomeadamente a sociologia e a antropologia; mas também a economia política, o direito, a diplomática, a psicologia social, a demografia, a geografia, etc.
Ao contrário do que seria de esperar, os jovens têm uma visão maioritariamente crítica sobre a ditadura[16], o que pode significar que se identificam com o maior valor atribuído ao 25 de Abril – a conquista da Liberdade. Contudo, é bem sabido que as memórias são realidades voláteis que sofrem a usura do tempo e das circunstâncias. Períodos de crise, ciclos de penúria material, desemprego e insegurança podem fazer inverter muito rapidamente os elementos positivos de identidade social. É por isso que o ensino da História é um factor crucial para a consciencialização cívica das gerações mais novas e uma barreira para as manipulações de caudilhos populistas que sempre aparecem nos períodos conturbados da vida social.

O ensino da História pode e deve «contribuir para forjar uma memória fundada na razão, informada, crítica e plural. Uma memória histórica que tenha quadros de referência suficientes para pensar sobre o mundo e a sociedade, para continuar a informar-se e a ter interesse pela história.»[17]
As comemorações do 25 de Abril avivam memórias contraditórias entre os que o viveram e induz incertezas de apreciação entre os jovens que dele ouvem falar. Constituem um momento de acentuado valor simbólico em que o passado penetra no presente mas é por este contaminado pelas dissensões e contradições que pontuam a marcha das sociedades humanas. A partir dessa força simbólica, os poderes constituídos têm tendência a invocar uma unidade perdida que teria existido na data comemorada.[18] Fazem-no como forma de exorcizar as divergências do presente ou de defender projectos de futuro, o que significa, de qualquer modo, formas mais ou menos subtis de manipulação das memórias.
Cabe aos guardiões da História a defesa de uma memória crítica que se oponha às manipulações e apetreche as novas gerações com instrumentos de análise e de compreensão do passado que lhes permitam intervir na vida social e política como cidadãos lúcidos e conscientes.

Joaquim Moedas Duarte
"Memórias e Identidades" - Mestrado em 
ESTUDOS DO PATRIMÓNIO
2014



BIBLIOGRAFIA

CATROGA, Fernando – Ritualizações da história / As comemorações como liturgias cívicas, in:
História da história de Portugal – sécs XIX-XX. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996.

JOÃO, Maria Isabel – Memória e identidade, Universidade Aberta, 2014.

JOÃO, Maria Isabel - Memória, história e educação. In: separata da Revista NW noroeste, revista            de História, Núcleo de Estudos Históricos da Universidade do Minho, Braga, 2005.

HALBWACHS, Maurice - La mémoire colective. Édition critique, Paris,: Éditions Albin Michel,
            1997.

TORGAL, Luís Reis – História, divulgação e ficção, in: História da história de Portugal – sécs XIX-XX. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996.

*
WEBGRAFIA

BARRIÈRE, Philippe - La Deuxième Guerre mondiale entre histoire et mémoire(s): épistémologie,
méthodologie et déontologie [Em linha]. [Cons. em 30 Abril 2014]. Disponível em: < http://www.ac-grenoble.fr/histoire/programmes/lycee/classique/terminale/hist/histoireetmemoirei.pdf

DOSSE, François -  Entre histoire et mémoire:une histoire social de la mémoire [Em linha] Raison présente,
Setembro 1998, p. 3. [Consultada em 30 Abril 2014]. Disponível em: <

JOÃO, Maria Isabel - Memória e história: os problemas e o método, [Em linha], UAb, disponível
em:

JOÃO, Maria Isabel  – O ensino e a memória histórica. [Em linha] Associação de Professores de História,
               s.d., Opinião. [Cons. 4 Maio 2014]. Disponível em:<
               http://www.aph.pt/ex_opiniao7.php

REZOLA, Inácia – Ensinar a história do século XX: o 25 de Abril [Em linha]. Associação de Professores
de História, Circular informação 81, Maio 2012, com um detalhado registo do movimento editorial acerca do 25 de Abril. [Cons. 4 Maio 2014]. Disponível em:<

RICOEUR, Paul  – Memória, história, esquecimento. Conferência proferida em Budapeste em 8 de Março
de 2003. [Em linha]. [Cons. 4 Maio 2014]. Disponível em:<

SILVA, Helenice Rodrigues da – “Rememoração” / Comemoração: as utilizações sociais da memória. [Em
linha]. Revista Brasileira de História, vol 22, nº 44, São Paulo, 2002. [Cons. 4 Maio 2014].






[1] Cf: Maria Isabel João, Memória e história: os problemas e o método, [Em linha], UAb, disponível em https://www.dropbox.com/sh/dqtan65xgi515hy/g6rR-Y-jtG/T1_Memoria_e_%20Historia.pdf, p.1.
[2] Cf Paul Ricoeur – Memória, história, esquecimento. Conferência proferida em Budapeste em 8 de Março de 2003. [Em linha]. [Cons. 4 Maio 2014]. Disponível em:<
[3] Cf: Luís Reis Torgal – História, divulgação e ficção, in: História da história de Portugal – sécs XIX-XX. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, pp. 491- 545. O autor analisa detalhadamente a relação entre a escrita da história e o posicionamento ideológico de quem a escreve alargando o campo de pesquisa à área da divulgação histórica, a mais vulnerável à manipulação com fins doutrinários.
[4] Cf. Discurso de Cavaco Silva na Assembleia da República na sessão solene de 25 de Abril de 2014. Disponível em: http://www.presidencia.pt/?idc=22&idi=83219.
[5] Fernando Catroga – Ritualizações da história / As comemorações como liturgias cívicas, in: História da história de Portugal – sécs XIX-XX. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, pp. 547-671.
Maria Isabel João – Memória e Império – comemorações em Portugal (1880-1960). Dissertação de Doutoramento em História Contemporânea.[Em linha]Universidade Aberta, 1999.[Cons. 4 Maio 2014]. Disponível em:< https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/2466
[6] Fernando Catroga, op. cit, p. 548.
[7] Cf. Luís Reis Torgal, op.cit., p.491: «Seja como for, entendemos como José Mattoso, que a história é, efectivamente, uma “representação de representações”.»
[8] Ver artigo de Inácia Rezola – Ensinar a história do século XX: o 25 de Abril [Em linha]. Associação de Professores de História, Circular informação 81, Maio 2012, com um detalhado registo do movimento editorial àcerca do 25 de Abril. [Cons. 4 Maio 2014]. Disponível em:<
[9] Maurice Halbwachs – La mémoire colective. Édition critique, Paris, Éditions Albin Michel, 1997, p. 130.
[10] Citado por François Dosse in Entre histoire et mémoire:une histoire social de la mémoire [Em linha] Raison présente, Setembro 1998, p. 3. [Consultada em 30 Abril 2014]. Disponível em: <

[11] Cf: Discurso de Salazar pronunciado em Braga, no 10º aniversário do 28 de Maio, em 1936: «Não discutimos Deus e a virtude. Não discutimos a Pátria e a Nação. Não discutimos a autoridade e o seu prestígio. Não discutimos a família e a sua moral». In: Discursos, Vol. II, Coimbra Editora, 1936, pp. 128/129.
[12] Citado por Philippe Barrière in La Deuxième Guerre mondiale entre histoire et mémoire(s): épistémologie, méthodologie et déontologie [Em linha]. [Cons. em 30 Abril 2014]. Disponível em: < http://www.ac-grenoble.fr/histoire/programmes/lycee/classique/terminale/hist/histoireetmemoirei.pdf
[13] «[A] Memória colectiva é espontânea ou elaborada, fruto da vivência e dos interesses dos grupos, funda-se no sentimento, na emoção, numa visão  subjectiva e idealizada do passado e do próprio grupo, é imprecisa, vaga em relação ao tempo e ao espaço e pouco fiel aos factos, conserva por um momento, apaga, reinventa a seu gosto. A memória colectiva geralmente divide.» in: Maria Isabel João – Memória e identidade, Universidade Aberta, 2014.
[14] Cf. François Dosse, op. cit. p. 5.
[15] Cf. Helenice Rodrigues da Silva – “Rememoração” / Comemoração: as utilizações sociais da memória. [Em linha]. Revista Brasileira de História, vol 22, nº 44, São Paulo, 2002. [Cons. 4 Maio 2014]. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882002000200008&script=sci_arttext >
[16] Cf. Inácia Rezola, op. cit., p.2
[17] Cf. Maria Isabel João – O ensino e a memória histórica. [Em linha] Associação de Professores de História, s.d., Opinião. [Cons. 4 Maio 2014]. Disponível em:< http://www.aph.pt/ex_opiniao7.php ;
E também: - Memória, história e educação. In: separata da Revista NW noroeste, revista de História, Núcleo de Estudos Históricos da Universidade do Minho, Braga, 2005.
[18] Cf. comunicação ao país do Primeiro Ministro Passos Coelho em 4 de Maio de 2014 em que invoca uma mítica pureza unanimista do 25 de Abril para justificar as suas opções políticas.

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