terça-feira, 7 de junho de 2016

TÓPICOS SOBRE O CONCEITO DE MEMÓRIA



DA MEMÓRIA INDIVIDUAL À MEMÓRIA COLECTIVA E À MEMÓRIA SOCIAL

Uma primeira verificação: a memória é uma faculdade humana com duas vertentes que se interpenetram: a individual e a social. Numa e noutra ela é o cimento que liga os tijolos da construção. Sem memória não há consciência individual nem sentido grupal societário. Mas enquanto a memória individual depende, em primeira instância, da condição orgânica (cérebro e conexões nervosas) sobre a qual se sedimentam as vivências colectivas (família, tribo, etnia, nação…), a memória social depende sobretudo da coesão do grupo que lhe é conferida pela acumulação dos registos, orais ou escritos e pela hierarquização das relações entre os seus elementos (organização do Poder).

O homem, desprovido de memória orgânica, está à mercê do acaso. Mas, confinado a ela, pouco mais é do que um organismo vivo que se esgota nas tarefas da sobrevivência. É a vivência grupal em que acumula experiências através da vida de relação que lhe confere uma dimensão supra-individual. A justaposição de experiências individuais é a base da cultura, que se estrutura ao longo do tempo através da sedimentação das memórias individuais que a sucessão das gerações transforma em memória colectiva. Dito de outro modo: a cultura é a expressão organizada das memórias individuais transformadas ao longo do tempo em memória colectiva, constituindo um «padrão de significados transmitido historicamente...»[1].

É a regularidade e persistência das manifestações culturais e o seu reconhecimento como património por um grupo social que confere à memória colectiva o carácter de memória social.





[1] Cf. Pedro Cardim in: A história: entre memória e invenção. Cursos da Arrábida, nº 03, Comissão Nacional para a comemoração dos descobrimentos portugueses e Publicações Europa-América, Mem Martins, 1998, p. 15

..................................................

     MEMÓRIA E HISTÓRIA


            Parto da leitura dos dois estimulantes textos que acabo de ler - da Clotilde e da Vanda - que tocam em dois aspectos sensíveis do fenómeno da memória social: por um lado o recurso a um património milenar como forma de esconjurar os demónios do presente, no caso do Cambodja; por outro a invenção de uma tradição para inculcar um ponto de vista ideológico, bem descrito no texto sobre o concurso para escolher “a aldeia mais portuguesa de Portugal”.

           Numa leitura superficial verificamos que, no primeiro caso, a recuperação do património tem uma dimensão redentora para a memória colectiva; enquanto no segundo há uma manipulação deletéria, executada em nome de controversos valores nacionalistas – o que nos sugere uma interrogação: há boas e más manipulações da memória colectiva?

          A questão não é puramente académica nem deve ser colocada no campo da ética política, como bem mostrou Eric Hobsbawm[1]. De facto, todas as sociedades manipulam as suas memórias quando reinterpretam e reescrevem o seu passado, pois a historiografia não é uma descrição fiel desse passado mas um olhar sobre ele que tem, como pano de fundo, a busca e a afirmação de uma identidade. E como bem diz a colega Clotilde, «a identidade não é estável; é mutável, provisória e subjectiva, sendo reconstruída ao longo dos tempos».

          Aqui radica o problema da afirmação da História como disciplina científica - que tivemos ocasião de estudar no anterior semestre, -  exactamente para que ela não seja um instrumento ao serviço de alguém mas um poderoso veículo de inscrição identitária das sociedades.  

.............................................................

MEMÓRIA E IDENTIDADE

           A palavra memória tem repercussões muito fortes na memória social. Desde o “fazei isto em memória de mim” – cerne da vivência religiosa dos crentes católicos – até ao “em memória de…” das inscrições tumulares, o apelo toca nos mais fundos sentimentos da nossa vida, seja no aspecto individual como no social. A referência à memória tem ressonâncias afectivas. Apela à eternização da relação, ao prolongamento no tempo futuro de um estado de espírito vivido no presente. É a memória que permite a continuidade da corrente de consciência. Apagá-la significa provocar o curto-circuito e a escuridão identitária.

          Por isso a perda total da memória no ser humano é o estado mais próximo da morte física. É raro acontecer porque «a memória não é um sistema único e unitário» [1]. Contudo, a nossa experiência pessoal ilustra a tragédia da amnésia, mesmo que parcial, quando a vemos num familiar.[2] Ele deixa de ser quem era, torna-se um estranho para ele e para nós, experiência dramática para quem a vive. Torna evidente que a memória individual, como função e processo mental, é a base da identidade pessoal. Perder a memória é perder a identidade, é dissolver-se no inominado, é deixar de ser.




[1] Amâncio da Costa Pinto – Psicologia Geral. Lisboa: UAb, 2001. p. 110.
[2] Permita-se-me uma referência pessoal: assisti, angustiado e impotente, à morte prematura de minha mãe quando ela começou a perder a memória. A morte física viria a ocorrer alguns anos depois. Durante cerca de três anos ela existia mas já não era.


......................................................................

QUADROS SOCIAIS DA MEMÓRIA

            «Nunca nos lembramos sozinhos: pode-se resumir desta forma a tese de Halbwachs. Um indivíduo volta-se sempre para o passado, o seu ou o do grupo a que pertence, socorrendo-se mais ou menos dos quadros sociais em que ele vive.» Esta formulação de Joël Candau[1] resume o essencial da tese de Halbwachs. A memória é uma faculdade mental do indivíduo mas ela exerce-se dentro de quadros sociais que estão para além dele, que o envolvem. O principal é a linguagem mas há outros como as tradições, as relações sociais (parentesco, vizinhança...), etc.
           J. Candau põe sérias reservas ao conceito de memória colectiva usado por Halbwachs, considerando-o de conteúdo vago mas acaba por reconhecer que ele tem utilidade prática «porque não há outra forma de designar algumas formas de consciência do passado (...) aparentemente partilhadas por um conjunto de indivíduos.»[2] (a tradução é infeliz nesta repetição de formas...). Mais convincente será, no dizer de J. Candau, a noção de quadros sociais da memória[3], isto é, o conjunto de constrangimentos culturais que enformam a memória individual dos elementos de um determinado grupo social. 




[1] Joël Candau – Antropologia da memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2013, p. 84.
[2] Op. cit. p. 88.
[3] Idem, p. 93.


.........................................................................

MEMÓRIA COLECTIVA/ MEMÓRIA SOCIAL

                Estas são noções que encontramos em muitos textos com uma carga semântica equivalente. A primeira criou raízes com as obras de M. Halbwachs e tem maior uso no mundo francófono; a segunda está mais ligada ao universo anglófono[1]. Contudo, parece-nos que, nas margens da semelhança semântica há zonas autónomas que talvez possam ser consideradas.
Já aqui escrevemos que «é a regularidade e persistência das manifestações culturais e o seu reconhecimento como património por um grupo social que confere à memória colectiva o carácter de memória social.»

             Tentando ser mais explícito, propomos que o conceito de memória colectiva se aplique às formas indiferenciadas e inorgânicas com que o passado se apresenta à memória de um grupo humano: os mitos, as narrações fabulosas, as gestas heroicas, a recordação de factos transfigurada por narrativas mais ou menos fantasiosas. Essa amálgama que se esbate num passado comum constituirá a base de uma memória colectiva. Terá sido este o entendimento de Jacques Le Goff («preferir-se-á reservar a designação de memória colectiva para os povos sem escrita»[2]).
            Por outro lado, propomos que o conceito de memória social se aplique às formas organizadas de abordar o passado, isto é, à historiografia, - na perspectiva da função social da história que Jacques Le Goff cita a partir de Lucien Febvre e Halbwachs[3], - bem como ao reconhecimento/apropriação de sinais específicos (monumentos, património material) e de manifestações culturais (património imaterial) susceptíveis de conferir consciência identitária a um determinado grupo humano.

            É uma tentativa de clarificação conceptual. Será útil?




[1] Maria Isabel João – Memória, História e Educação in: NW noroeste, revista de história, Universidade do Minho, 1, 2005, p. 85.
[2] Jacques Le Goff – Memória, in Enciclopédia Einaudi, vol 1, Memória-História, Lisboa, IN-CM, 1984, p. 14
[3] Idem, História, p.164.

.........................................................................................

CONSCIÊNCIA IDENTITÁRIA

A sociedade é constituída por uma gama infinita de indivíduos que podem agrupar-se de acordo com essas categorias. Daí me parecerem pouco rigorosas - e até abusivas - expressões como "cultura portuguesa" ou (pior ainda!...), "alma portuguesa", "raça portuguesa", etc.
A experiência mostra-nos que a consciência identitária tem raízes muito diversas que podem ir da etnia ao escalão etário, do lugar de habitação (os bairros...) ao grau de escolaridade, da origem de classe à prática de uma religião, de um desporto, de uma opção de vida.
         Contudo, há categorias gerais de cidadania que parecem sobrepor-se aos particularismos identitários. Refiro-me, por exemplo, à noção de nacionalidade (português vs. espanhol...) ou ao uso de uma Língua comum. 
Os diversos graus de abragência destas categorias dão origem a várias formas de identidade o que faz com que um indivíduo as acumule na sua caracterização: português, jovem, transmontano, licenciado em X, praticante de aeromodelismo, etc...

......................................................................................

CONSCIÊNCIA IDENTITÁRIA E MEMÓRIA

Eu não sou eu nem sou o outro, 
Sou qualquer coisa de intermédio: 
    Pilar da ponte de tédio 
    Que vai de mim para o Outro. 

(Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro')


              Esta célebre quadra de Mário de Sá-Carneiro ilustra bem o desajustamento identitário de alguém que não tem referências estáveis em que se ancore a personalidade. Dado o tom confessional do poema, é-nos lícito supor que ele reflecte os condicionalismos da vida privada do poeta, que João Gaspar Simões elucidou na Vida e Obra de Fernando Pessoa, (Pessoa, o grande amigo e confidente): órfão de mãe aos dois anos, criado por amas a quem um pai ausente deixava quantias avultadas para as despesas de educação, Mário de Sá Carneiro cresceu sem modelos nem constrangimentos. 

             De certo modo, este é um caso exemplar que nos pode ajudar a definir quais as condições necessárias para a afirmação da identidade individual e para a representação que sobre ela tem o sujeito: crescimento acompanhado pela proximidade de modelos adultos numa relação afectuosa; definição de regras de conduta, sujeitas a limitações impostas/negociadas por e com esses modelos; estabilidade económica sem excesso de meios, para não induzir a falsa ideia de que tudo é devido e permitido. 
Este exemplo, oportunamente trazido pelo Manuel L., lembrou-me o caso de Teixeira de Pascoaes que, no Livro de Memórias, rememora o seu passado e encontra nele a base da vida presente:

           «A vida é memória, colecção de imagens fabulosas e um olhar desolado que as contempla; um olhar que vem através da noite do infinito e brilha, dentro em nós, como a própria luz da consciência.»[1]

          Isto é: a consciência é a representação da identidade e radica na memória do vivido em relação com os outros. Sem o acervo da experiência não há memória e sem memória o sujeito é um fantasma a caminho da auto-aniquilação – como Mário de Sá-Carneiro que se suicidou com 26 anos.




[1] Teixeira de Pascoaes – Livro de memórias. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, p. 46

Nenhum comentário:

Postar um comentário