DA MEMÓRIA INDIVIDUAL À MEMÓRIA COLECTIVA E À MEMÓRIA SOCIAL
Uma primeira verificação: a memória é uma faculdade humana
com duas vertentes que se interpenetram: a individual e a social. Numa e noutra
ela é o cimento que liga os tijolos da construção. Sem memória não há
consciência individual nem sentido grupal societário. Mas enquanto a memória
individual depende, em primeira instância, da condição orgânica (cérebro e
conexões nervosas) sobre a qual se sedimentam as vivências colectivas (família,
tribo, etnia, nação…), a memória social depende sobretudo da coesão do grupo
que lhe é conferida pela acumulação dos registos, orais ou escritos e pela
hierarquização das relações entre os seus elementos (organização do Poder).
O homem, desprovido de memória orgânica, está à mercê do
acaso. Mas, confinado a ela, pouco mais é do que um organismo vivo que se
esgota nas tarefas da sobrevivência. É a vivência grupal em que acumula
experiências através da vida de relação que lhe confere uma dimensão
supra-individual. A justaposição de experiências individuais é a base da
cultura, que se estrutura ao longo do tempo através da sedimentação das
memórias individuais que a sucessão das gerações transforma em memória
colectiva. Dito de outro modo: a cultura é a expressão
organizada das memórias individuais transformadas ao longo do tempo em memória
colectiva, constituindo um «padrão de significados transmitido historicamente...»[1].
É a regularidade e
persistência das manifestações culturais e o seu reconhecimento como património
por um grupo social que confere à memória colectiva o carácter de memória
social.
[1] Cf. Pedro
Cardim in: A história: entre memória e
invenção. Cursos da Arrábida, nº 03, Comissão Nacional para a comemoração
dos descobrimentos portugueses e Publicações Europa-América, Mem Martins, 1998,
p. 15
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MEMÓRIA E HISTÓRIA
Parto
da leitura dos dois estimulantes textos que acabo de ler - da Clotilde e da
Vanda - que tocam em dois aspectos sensíveis do fenómeno da memória social: por
um lado o recurso a um património milenar como forma de esconjurar os demónios
do presente, no caso do Cambodja; por outro a invenção de uma tradição para
inculcar um ponto de vista ideológico, bem descrito no texto sobre o concurso
para escolher “a aldeia mais portuguesa de Portugal”.
Numa
leitura superficial verificamos que, no primeiro caso, a recuperação do
património tem uma dimensão redentora para a memória colectiva; enquanto no
segundo há uma manipulação deletéria, executada em nome de controversos valores
nacionalistas – o que nos sugere uma interrogação: há boas e más manipulações
da memória colectiva?
A
questão não é puramente académica nem deve ser colocada no campo da ética
política, como bem mostrou Eric Hobsbawm[1]. De facto, todas as
sociedades manipulam as suas memórias quando reinterpretam e reescrevem o seu
passado, pois a historiografia não é uma descrição fiel desse passado mas um
olhar sobre ele que tem, como pano de fundo, a busca e a afirmação de uma
identidade. E como bem diz a colega Clotilde, «a identidade não é estável; é
mutável, provisória e subjectiva, sendo reconstruída ao longo dos tempos».
Aqui
radica o problema da afirmação da História como disciplina científica - que
tivemos ocasião de estudar no anterior semestre, - exactamente para que
ela não seja um instrumento ao serviço de alguém mas um poderoso veículo de inscrição
identitária das sociedades.
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MEMÓRIA E IDENTIDADE
A palavra memória tem repercussões muito fortes na memória
social. Desde o “fazei isto em memória de mim” – cerne da vivência religiosa
dos crentes católicos – até ao “em memória de…” das inscrições tumulares, o
apelo toca nos mais fundos sentimentos da nossa vida, seja no aspecto
individual como no social. A referência à memória tem ressonâncias afectivas.
Apela à eternização da relação, ao prolongamento no tempo futuro de um estado
de espírito vivido no presente. É a memória que permite a continuidade da
corrente de consciência. Apagá-la significa provocar o curto-circuito e a
escuridão identitária.
Por isso a perda total da memória no ser humano é o estado
mais próximo da morte física. É raro acontecer porque «a memória não é um
sistema único e unitário» [1].
Contudo, a nossa experiência pessoal ilustra a tragédia da amnésia, mesmo que
parcial, quando a vemos num familiar.[2]
Ele deixa de ser quem era, torna-se um estranho para ele e para nós,
experiência dramática para quem a vive. Torna evidente que a memória
individual, como função e processo mental, é a base da identidade pessoal.
Perder a memória é perder a identidade, é dissolver-se no inominado, é deixar
de ser.
[1] Amâncio
da Costa Pinto – Psicologia Geral.
Lisboa: UAb, 2001. p. 110.
[2]
Permita-se-me uma referência pessoal: assisti, angustiado e impotente, à morte
prematura de minha mãe quando ela começou a perder a memória. A morte física
viria a ocorrer alguns anos depois. Durante cerca de três anos ela existia mas já
não era.
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QUADROS SOCIAIS DA MEMÓRIA
J. Candau põe sérias reservas ao conceito de memória colectiva usado por Halbwachs, considerando-o de conteúdo vago mas acaba por reconhecer que ele tem utilidade prática «porque não há outra forma de designar algumas formas de consciência do passado (...) aparentemente partilhadas por um conjunto de indivíduos.»[2] (a tradução é infeliz nesta repetição de formas...). Mais convincente será, no dizer de J. Candau, a noção de quadros sociais da memória[3], isto é, o conjunto de constrangimentos culturais que enformam a memória individual dos elementos de um determinado grupo social.
[1] Joël
Candau – Antropologia da memória.
Lisboa: Instituto Piaget, 2013, p. 84.
[2] Op. cit. p. 88.
[3] Idem, p. 93.
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MEMÓRIA COLECTIVA/ MEMÓRIA SOCIAL
Estas são noções que encontramos em
muitos textos com uma carga semântica equivalente. A primeira criou raízes com
as obras de M. Halbwachs e tem maior uso no mundo francófono; a segunda está
mais ligada ao universo anglófono[1].
Contudo, parece-nos que, nas margens da semelhança semântica há zonas autónomas
que talvez possam ser consideradas.
Já aqui escrevemos que «é a regularidade e persistência das
manifestações culturais e o seu reconhecimento como património por um grupo
social que confere à memória colectiva o carácter de memória social.»
Tentando
ser mais explícito, propomos que o conceito de memória colectiva se aplique às formas indiferenciadas e
inorgânicas com que o passado se apresenta à memória de um grupo humano: os
mitos, as narrações fabulosas, as gestas heroicas, a recordação de factos
transfigurada por narrativas mais ou menos fantasiosas. Essa amálgama que se
esbate num passado comum constituirá a base de uma memória colectiva. Terá sido este o entendimento de Jacques Le Goff
(«preferir-se-á reservar a designação de memória colectiva para os povos sem
escrita»[2]).
Por
outro lado, propomos que o conceito de memória
social se aplique às formas organizadas de abordar o passado, isto é, à
historiografia, - na perspectiva da função social da história que Jacques Le
Goff cita a partir de Lucien Febvre e Halbwachs[3], - bem
como ao reconhecimento/apropriação de sinais
específicos (monumentos, património material) e de manifestações culturais (património imaterial) susceptíveis de
conferir consciência identitária a um determinado grupo humano.
É
uma tentativa de clarificação conceptual. Será útil?
[1] Maria Isabel João – Memória, História e Educação in: NW noroeste, revista de história,
Universidade do Minho, 1, 2005, p. 85.
[2] Jacques Le Goff – Memória, in Enciclopédia Einaudi, vol 1, Memória-História, Lisboa, IN-CM, 1984,
p. 14
[3] Idem, História, p.164.
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CONSCIÊNCIA IDENTITÁRIA
A sociedade é constituída por uma gama infinita de indivíduos que
podem agrupar-se de acordo com essas categorias. Daí me parecerem pouco
rigorosas - e até abusivas - expressões como "cultura portuguesa" ou
(pior ainda!...), "alma portuguesa", "raça portuguesa",
etc.
A experiência mostra-nos que a consciência identitária tem raízes
muito diversas que podem ir da etnia ao escalão etário, do lugar de habitação
(os bairros...) ao grau de escolaridade, da origem de classe à prática de uma
religião, de um desporto, de uma opção de vida.
Contudo, há
categorias gerais de cidadania que parecem sobrepor-se aos particularismos
identitários. Refiro-me, por exemplo, à noção de nacionalidade (português vs.
espanhol...) ou ao uso de uma Língua comum.
Os diversos graus de abragência destas categorias dão origem a
várias formas de identidade o que faz com que um indivíduo as acumule na sua
caracterização: português, jovem, transmontano, licenciado em X, praticante de
aeromodelismo, etc...
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CONSCIÊNCIA IDENTITÁRIA E MEMÓRIA
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
(Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro')
Esta célebre quadra de Mário de
Sá-Carneiro ilustra bem o desajustamento identitário de alguém que não tem
referências estáveis em que se ancore a personalidade. Dado o tom confessional
do poema, é-nos lícito supor que ele reflecte os condicionalismos da vida
privada do poeta, que João Gaspar Simões elucidou na Vida
e Obra de Fernando Pessoa, (Pessoa, o grande amigo e
confidente): órfão de mãe aos dois anos, criado por amas a quem um pai ausente
deixava quantias avultadas para as despesas de educação, Mário de Sá Carneiro
cresceu sem modelos nem constrangimentos.
De certo modo, este é um caso
exemplar que nos pode ajudar a definir quais as condições necessárias para a
afirmação da identidade individual e para a representação que sobre ela tem o
sujeito: crescimento acompanhado pela proximidade de modelos adultos numa
relação afectuosa; definição de regras de conduta, sujeitas a limitações
impostas/negociadas por e com esses modelos; estabilidade económica sem excesso
de meios, para não induzir a falsa ideia de que tudo é devido e
permitido.
Este exemplo, oportunamente trazido
pelo Manuel L., lembrou-me o caso de Teixeira de Pascoaes que, no Livro de Memórias, rememora o seu
passado e encontra nele a base da vida presente:
«A vida é memória, colecção de
imagens fabulosas e um olhar desolado que as contempla; um olhar que vem
através da noite do infinito e brilha, dentro em nós, como a própria luz da
consciência.»[1]
Isto é: a consciência é a
representação da identidade e radica na memória do vivido em relação com os
outros. Sem o acervo da experiência não há memória e sem memória o sujeito é um
fantasma a caminho da auto-aniquilação – como Mário de Sá-Carneiro que se
suicidou com 26 anos.
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