domingo, 7 de setembro de 2014

PROJECTO DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO


Este texto é o ponto de partida para o segundo ano deste Mestrado. Um trabalho que consideramos necessário e útil para a preservação das memórias torrienses ligadas ao seu Património Industrial.




CASA HIPÓLITO: HISTÓRIA, MEMÓRIAS E PATRIMÓNIO DE UMA FÁBRICA TORRIENSE

«A vida é memória, colecção de imagens fabulosas e um olhar desolado que as contempla; um olhar que vem através da noite do infinito e brilha, dentro em nós, como a própria luz da consciência.» (Teixeira de Pascoaes)[1]


PONTO DE PARTIDA

Em 29/12/1999, sob o título «O triste fim de ano dos trabalhadores da Casa Hipólito» lia-se no jornal PÚBLICO: «Os últimos 400 trabalhadores da metalurgica Casa Hipólito, dos 1400 iniciais, estão desesperados após a falência da empresa decretada há um mês. A dívida em indemnizações e salários em atraso ascende a um milhão de contos. O plano de recuperação da casa tornada famosa pelos seus candeeiros a petróleo, segundo os empregados, foi marcado por incumprimentos e pela delapidação de um vasto património, que já nem chega para um quarto das dívidas
 A unidade industrial de que aqui se fala marcou todo o século XX da vila de Torres Vedras – elevada a cidade em 1979. Teve origem na pequena oficina de latoaria de António Hipólito, em 1900, e ao longo do século cresceu, tornou-se adulta, passou por uma fase de esplendor, entrou em decadência e extinguiu-se no ultimo ano do século. Milhares de braços lá trabalharam, tornando próspera a empresa Casa Hipólito que, pouco a pouco, se firmou no mercado nacional e, a partir da Segunda Guerra Mundial, cresceu para o mercado externo com um significativo volume de exportações. Especializou-se em maquinaria ligeira para a lavoura vitivinícola – o grande sector produtivo do concelho torriense – e em material de queima como fogareiros a petróleo e, mais tarde, candeeiros portáteis “Petromax” e aparelhos de gás.
A pequena latoaria transformou-se na Fábrica A a laborar em pleno núcleo urbano de Torres Vedras, expandindo-se, depois, com a Fábrica B, nos arredores da vila e em múltiplas instalações de armazenamento, comércio e serviços sociais localizados em pontos diversos da urbe. António Hipólito, o latoeiro que viera de Alcobaça em busca de uma oportunidade de trabalho, foi agraciado pelo Governo português, em 1930, com a Comenda da Ordem de Mérito Agrícola e Industrial[2] - num reconhecimento público pelo seu contributo para a economia regional e nacional.
A Casa Hipólito imprimiu um sinal indelével na memória colectiva torriense. Havia famílias completas na fábrica, pais e filhos, às vezes em gerações sucessivas. Muitos vinham das aldeias dos arredores, campesinos que se tornavam operários e que acumulavam os dois modos de vida. Da presença tutelar da Hipólito ficou a memória que muitos ainda hoje desfiam com saudade, lamentando o seu desaparecimento que teve, naturalmente, consequências gravosas nos rendimentos das famílias e, por via disso, no comércio local.
De notar que a existência da Casa Hipólito induziu o aparecimento de outras empresas concorrentes na mesma área de produção, a mais importante das quais foi a empresa FAS – Francisco António da Silva. Torres Vedras chegou a ser, assim, um importante pólo das indústrias metalúrgicas ligadas ao sector agrícola vitivinícola de que o concelho é um dos principais expoentes a nível nacional.
Em paralelo com a vida da fábrica Hipólito enraizou-se na sociedade torriense a família do fundador, António Hipólito, que ainda hoje tem expressão bem visível na numerosa descendência. Quando aquele morreu, em 1954, a fábrica ficou entregue aos quatro filhos – António, João, José e Alberto – e ao genro Vasco Parreira. Este acabou por se tornar o administrador principal e erguer a fábrica ao ponto mais alto da sua evolução. Está por escrever a história desta família que marcou a vila, uma linhagem operária que se guindou à classe média, com todas as virtudes e defeitos de um percurso hipoteticamente exemplar da evolução da própria sociedade portuguesa.


TEMA

Propomo-nos estudar e descrever a história desta empresa, para que dela perdure um conhecimento fundamentado do que foi, do que fez e do que significou para a comunidade envolvente a sua prosperidade, decadência e morte. Este será o tema central do nosso trabalho - inspirado no programa de salvaguarda do património industrial inserto na Carta de Nizhny Tagil, de Julho de 2003, e nos Princípios de Dublin, de Novembro de 2011, que a completaram. Este movimento, relativamente recente no percurso já secular da defesa do Património, tem tido em Portugal uma crescente expressão bem visível nos numerosos museus dedicados ao trabalho em geral e à indústria em particular, uma realidade que acompanhou a tendência europeia que se verificou sobretudo a partir da segunda metade do século XX, no pós Segunda Guerra Mundial, resultante do trabalho de reconstrução e de recuperação de memórias destruídas pelo conflito. Se é certo que a Sousa Viterbo se deve a primeira utilização conhecida em Portugal da expressão “arqueologia industrial”– num artigo por ele escrito em 1896[3] – só muito mais tarde ela viria a ser generalizada, acompanhando um surto importante de trabalhos dedicados ao património industrial. Hoje é possível escorar a investigação na área do património industrial num complexo teórico/prático assinalável, de que os contributos de Jorge Custódio, José Amado Mendes, Paulo Oliveira Ramos, Deolinda Folgado e outros são expressão significativa.


 PROBLEMATIZAÇÃO

Torres Vedras, terra onde se instalou durante o século XX uma florescente indústria de metalurgia ligeira, não acautelou os vestígios desse passado. Da existência material da Casa Hipólito nada resta a não ser alguns objectos da sua produção. Máquinas e edifícios foram vendidos para satisfazer dívidas aos credores e aos trabalhadores. Contudo, é justo referir que a Câmara Municipal de Torres Vedras, já neste século, decidiu intervir para salvaguardar o que restava do espólio da empresa, vandalizado nas instalações abandonadas. Esse acervo está hoje à guarda do Museu Municipal Leonel Trindade e encontra-se em fase de inventariação.[4] É constituído por dossiês de documentação administrativa e espólio de desenho técnico,  ali guardados com o objectivo de «preservar e promover o valor patrimonial e social do arquivo da Casa Hipólito como garante principal para aqueles que procuram informação sobre a temática da indústria no Concelho de Torres Vedras.» - no dizer do site da Câmara Municipal de Torres Vedras.


OBJECTIVO

Se os vestígios edificados bem como a maquinaria da Casa Hipólito já não existem,  há uma área que ainda é possível estudar e salvaguardar - aquela que os Princípios de Dublin definem como «(…) os documentos que testemunham processos industriais antigos ou corrente de produção(…)» (Ponto 1) ou «(…) as dimensões imateriais suportadas pela memória (…)» (Ponto 2). Os documentos fazem parte do espólio à guarda do Museu, que acima referimos;  a memória reside em muitos torrienses que trabalharam na Casa Hipólito e que anseiam por dar testemunho, bem como em escritos da imprensa local que se encontram no arquivo da Biblioteca Municipal de Torres Vedras. São vestígios históricos de valor desigual mas imprescindível para fixar em letra perene o que, como memória colectiva, é precário e contingente.
Propomos como objectivo da nossa dissertação o estudo destes vestígios bem como a recolha de testemunhos orais mais significativos. É uma área em que se cruzam memória e história, termos aparentemente antitéticos mas que se completam quando abordados a partir de metodologias rigorosas e que, como demonstrou  Pierre Nora, constituem o fundamento dos lugares de memória em que se ancora decisivamente a identidade dos grupos humanos. A Casa Hipólito é um desses lugares, situado no território do património industrial, em que se cruzam valores simbólicos e elementos identitários[5] ainda hoje tão importantes para a comunidade humana torriense. A este propósito já escrevemos noutro lugar:

«Quando a “Casa Hipólito” ou a “Fundição de Dois Portos” – indústrias locais de Torres Vedras que prosperaram no séc XX – se afundam na falência e fecham as portas, tal significa o apagamento súbito de um passado recente cuja memória urge preservar para que as novas gerações entendam as razões do vazio sócio-económico que se instalou numa cidade subitamente órfã da sua prosperidade[6]


METODOLOGIA

Que metodologia seguir? Qual a mais adequada para o que nos propomos realizar?
Em 1971 Paul Veyne lançou uma asserção polémica: «Não existe método da história porque a história não tem nenhuma exigência; ela está satisfeita desde que se contem coisas verdadeiras.»[7] Provavelmente, pretendia resgatar a frescura inicial das narrativas históricas – como a gesta de Gilgamesh ou as páginas de Fernão Lopes – do pesado aparato da heurística e da hermenêutica e com isso terá reaberto caminhos que a prática cerradamente objectivista da historiografia dos Annales parecia estreitar.
Entre uma e outra tendências, não haverá um caminho do meio? Parece-nos atrativa a desconstrução de Paul Veyne, - que afinal não pôs em causa a morosa marcha da historiografia em direcção ao estatuto científico, em que ele, aliás, se empenhou - porque  abriu novas perspectivas de análise ao historiador. Mas não partilhamos a radicalidade da negação metodológica. Quem caminha deve ter um mapa e um propósito de chegada, mesmo que esteja aberto a inesperadas veredas. Partilhamos a ideia de que não há construção da História sem projecto orientador pois ela exige «processos erigidos que procuram conhecer o objecto de trabalho de forma total e sistemática».[8]
Há uma experiência acumulada de prática metodológica que deve estar presente em qualquer trabalho de carácter histórico. A escolha criteriosa das fontes e o cruzamento das informações que elas facultam, a definição das balizas cronológicas, a delimitação do campo de análise, a comparação com outros trabalhos realizados na mesma área temática, a análise dos documentos a partir de novos instrumentos conceptuais, a procura de diferentes perspectivas de abordagem – tudo isso faz parte da ferramenta que o historiador deve ter à mão e manusear com perícia e flexibilidade.
Assim sendo, passemos aos aspectos metodológicos concretos. O tema e os objectivos do nosso trabalho têm como suporte documental quatro núcleos fundamentais de fontes:

1.     o Fundo da Casa Hipólito;
2.     as informações dispersas por Arquivos diversos (estatísticas, relatórios, registos, actas);
3.     os testemunhos orais a recolher em entrevistas ou depoimentos escritos;
4.     as notícias, reportagens e textos de opinião contidos na imprensa local.

A abordagem dos pontos 1 e 2 supõe metodologias indutivas mistas de carácter
qualitativo e quantitativo, de modo a seriar e interpretar os dados à medida que forem recolhidos. Será uma fase morosa de análise de conteúdos que levará à sua classificação e interpretação, em paralelo com o cruzamento de dados e confrontação de informações.

O núcleo 3, pela sua especificidade, suscita-nos algumas reflexões preliminares. Ele tem a ver com as   memórias - a memória colectiva e a memória social, - noções que encontramos em muitos textos com uma carga semântica equivalente. A primeira criou raízes com as obras de M. Halbwachs e tem maior uso no mundo francófono; a segunda está mais ligada ao universo anglófono[9]. Contudo, parece-nos que, nas margens da semelhança semântica, há zonas autónomas que talvez possam ser consideradas. É a regularidade e persistência das manifestações culturais e o seu reconhecimento como património por um grupo social que confere à memória colectiva o carácter de memória social. Isto é: o conceito de memória colectiva aplica-se às formas indiferenciadas e inorgânicas com que o passado se apresenta à memória de um grupo humano: os mitos, as narrações fabulosas, a recordação de factos transfigurada por narrativas mais ou menos fantasiosas. Essa amálgama que se esbate num passado comum constituirá a base de uma memória colectiva. Terá sido este o entendimento de Jacques Le Goff quando escreveu:«preferir-se-á reservar a designação de memória colectiva para os povos sem escrita» [10]. Já o conceito de memória social poderá aplicar-se às formas organizadas de abordar o passado, - caso da  historiografia,  na perspectiva da função social da história, - bem como ao reconhecimento/apropriação de sinais específicos (monumentos, património material) e de manifestações culturais (património imaterial) susceptíveis de conferir consciência identitária a um determinado grupo humano. Paul Ricoeur descreveu este processo como a passagem da memória/matriz para a memória instruída pela História – processo não tão linear quanto parece. É que entre a memória e a História há um espaço conceptual percorrido pela escrita historiográfica, muitas vezes em confronto com os dados parcelares e tendencialmente subjectivos da memória.[11]

É a partir destes pressupostos – aqui enunciados de forma sintéctica -  que a recolha e o tratamento dos testemunhos orais dos operários e outros trabalhadores da Casa Hipólito, base de um corpus organizado de memórias a preservar em arquivo histórico, concretizará a transmutação da memória colectiva do que foi aquela fábrica ao longo de um século, em memória social, enquadrada e contextualizada na História Local, elemento imprescindível para o enriquecimento da consciência identitária da comunidade torriense.[12]Temos em conta que a recolha de testemunhos - histórias de vida integradas no contexto de um grupo social de características operárias,[13]- levanta problemas específicos de tratamento e sistematização se for realizada numa perspectiva antropológica. Não é o caso do que nos propomos fazer pois apontamos para a simples recolha de testemunhos – em suporte fotográfico, com o correspondente registo escrito.
De que modo será feita essa recolha? Tendo em conta o elevado número de trabalhadores da Casa Hipólito ainda vivos e/ou disponíveis, haverá que fazer uma amostragem, o que supõe a definição de critérios de selecção. Dispomos de fontes de acesso – registos administrativos, União dos Sindicatos de Torres Vedras ou o processo judicial da falência da empresa, por exemplo – mas ainda não definimos os critérios mais significativos para a amostragem pretendida, operação que reservamos para uma fase posterior do trabalho.
Os testemunhos recolhidos, depois de editados, são destinados, por um lado, a um dos capítulos da nossa dissertação; por outro,  a uma mostra a integrar numa exposição temporária ou num futuro pólo museológico dedicado à indústria vitivinícola torriense, procurando adaptar a Torres Vedras uma experiência realizada com êxito no Museu Marítimo de Ílhavo, a chamada Caixa da Memória, em que a memória dos pescadores será aqui substituída pela dos operários da Casa Hipólito.[14] Parece-nos um bom e profícuo exemplo de como enfrentar a “crise da memória” de que fala o autor daquela experiência quando refere:

«O turbilhão pós-moderno reabilitou a importância integradora do local, reanimou as pequenas e singulares narrativas, como despertou o interesse por certos grupos sociais marginalizados.»[15]

Outra questão metodológica prende-se com o âmbito local de que fala este autor. De facto, o estudo e a preservação destas memórias projecta-as para o âmbito da História Local, um ramo da historiografia que tem vindo a ganhar importância crescente. Também aqui se destaca Torres Vedras com a realização anual de encontros de História Local sob a designação de Turres Veteras e que já vai na 17ª edição, com Actas publicadas de todos eles.[16] É, para nós, uma motivação suplementar podermos concretizar um pequeno contributo para este caudal de investigação e escrita historiográfica.  A este propósito foi-nos muito útil a reflexão de Francisco Ribeiro da Silva que caracteriza de forma rigorosa e bem sistematizada este tipo de trabalho historiográfico.[17] Identificamo-nos, sobremaneira, com as indicações dadas quanto aos princípios metodológicos de que destacamos a «terceira norma: escolher um tema de que se goste.» Com efeito, a nossa opção envolve uma grande componente afectiva. Conhecemos muita gente que trabalhou na Hipólito, acompanhámos as lutas sindicais pela preservação dos postos de trabalho, testemunhámos a angústia dos trabalhadores e de alguns dos membros da família Hipólito quando a empresa iniciou a marcha descendente que a levaria ao abismo. Contar esta história é dar expressão à memória colectiva de uma comunidade que ainda hoje parece órfã da prosperidade perdida e de prestar tributo moral a centenas de obreiros que fizeram da Casa Hipólito uma marca de prestígio nacional e internacional.

Abordemos, por último, a questão metodológica relacionada com o tratamento do núcleo 4 das fontes. Trata-se da recolha e tratamento de informações a partir do corpus da imprensa local constituído por todos os periódicos publicados em Torres Vedras desde 1900 até 2010.

 Qual a importância e a relevância da imprensa como fonte de estudo da História Local? Em Torres Vedras existe imprensa local desde 1885[18]. Entre essa data e 1935 surgiram 21 títulos, entre semanários, quinzenários, trimensais e mensais, com tempos de vida muito variáveis, de acordo com as circunstâncias. 1935 é uma data de referência, relacionada com a afirmação do Estado Novo, de cariz totalitário, e corresponde ao ano a partir do qual rareou o aparecimento de novos títulos. A partir daí até 1974 apenas se contam 4 novos jornais, de periodicidade variável. Em 1948 surgiu o jornal BADALADAS, uma folha paroquial com saída mensal, mais tarde quinzenal e, a partir de 1960, semanal, o qual viria a tornar-se o órgão da imprensa local de referência e que ainda hoje se publica, com uma tiragem de cerca de 12 000 exemplares. Após 1974, ano da revolução do 25 de Abril, surgiram três novos semanários, com existência mais ou menos longa, - mas sempre de alguns anos, ou mais de uma década. – e ainda várias revistas ou jornais centrados na área cultural.
O reconhecimento da imprensa regional como fonte histórica é hoje comummente aceite, seja no âmbito da chamada Micro-História, seja no da História Cultural, das Mentalidades, do Quotidiano, etc. Há uma relação óbvia entre os limites de actuação desta imprensa e o âmbito restrito das abordagens históricas focadas no local, no particular, numa célula social ou num espaço delimitado geografica e cronologicamente. Apesar de dirigida ao conceito lato de imprensa, parece-nos elucidativa esta citação de António Nóvoa:

«A análise da imprensa permite apreender discursos que articulam práticas e teorias, que se situam no nível macro do sistema, mas, também no plano micro da experiência concreta, que exprimem desejos de futuro ao mesmo tempo que denunciam situações do presente[19]

Lucas S. Vieira[20], sublinhando a importância da imprensa como fonte histórica, reconhece que ela é cada vez mais um instrumento de pesquisa em todas as áreas das ciências sociais e humanas, estando já distante o tempo em que «a imprensa era considerada como fonte suspeita (…) pois apresentava problemas de credibilidade.» E mais adiante: «Nestas últimas décadas incorporamos a perspectiva de que todo documento, e não só a imprensa, é também monumento.»[21]
É nesta perspectiva que a análise sistemática da imprensa local dirigida a uma bem definida área de estudo – neste caso, a Casa Hipólito  e a actividade vitivinícola local  - permitirá obter informações importantes para o conhecimento desta parcela da História Local torriense.  
Pelas pesquisas preliminares que já fizemos, todos esses dados estão disponíveis mas dispersos, na penumbra das prateleiras de arquivo, à espera de quem os resgate do esquecimento. Há uma memória social da comunidade torriense que corre o risco de se diluir na descaracterização resultante do afluxo de novas camadas populacionais, desenraizadas do tempo e do espaço comuns, que aqui se têm fixado nas últimas décadas. É contra este apagamento da memória identitária que urge trazer à luz novos elementos de pertença. As páginas da imprensa local, onde várias gerações de cidadãos deixaram textos informativos ou de opinião, merecem ser relidas, agora à luz do nosso presente, para que seja possível ao presente compreender melhor o passado e ao passado estar de novo presente.
Posto isto, haverá que definir as várias etapas do trabalho. Vamos seguir de perto algumas sugestões, induzidas pela leitura de um texto estimulante de Renée Zicman.[22] Esta autora aponta o Método da Análise de Conteúdo como um útil instrumento de trabalho aprofundado nos anos 50 e 60 pela aplicação às várias áreas das Ciências Sociais: 
               
«Este instrumental metodológico polimorfo e polifuncional, caracteriza-se fundamentalmente como um exercício de desocultação fornecendo-nos uma melhor ‘descrição’ dos textos e permitindo-nos avançar para além das significações primeiras dos discursos e escapar dos perigos da compreensão espontânea[23]

Depois de enumerar os quatro tipos de Análise de Conteúdo – temática, semiológica, de discurso e de argumentação – a autora fixa-se na análise temática como sendo a opção que melhor responde ao trabalho de pesquisa como aquele que pretendemos realizar. Há que analisar a frequência, o tipo e a relevância de cada texto sobre a temática que nos interessa, de modo a interrogar, esclarecer ou completar informações provenientes das outras fontes. Cada entrada referenciada será registada em fichas separadas que, só por si, constituirão um manancial de utilidade evidente para a redacção final do nosso trabalho ou, quem sabe, para outras abordagens a realizar no futuro.


A FECHAR

Parece-nos oportuno referir que esta proposta de trabalho, sendo de âmbito e responsabilidade individual de quem a subscreve, se insere no entendimento de que aos cidadãos compete, cada vez mais, participar activamente na salvaguarda e promoção do Património Cultural da comunidade de que fazem parte. A nossa inclusão como membro activo da Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras é a expressão concreta desse entendimento, na linha do que a Convenção de Faro, de 2005, preconiza no seu Artº 12º - Acesso ao património cultural e participação democrática, nomeadamente:

«Encorajar todas as pessoas a participar:
- No processo de identificação, estudo, interpretação, protecção, conservação e
apresentação do património cultural;
- Na reflexão e debate públicos sobre as oportunidades e os desafios que o património
cultural representa;
(…)
Reconhecer o papel das organizações não lucrativas, tanto como parceiros nas actividades desenvolvidas como enquanto elementos de crítica construtiva das políticas de património cultural.»[24]

            Em Torres Vedras há uma lacuna notória no que ao Património Industrial diz respeito. Da  intensa actividade industrial do século XX – pois que de épocas anteriores nada se conhece  para além da produção artesanal comum a qualquer vila de cunho marcadamente rural -  pouco mais resta do que a memória difusa de algumas empresas ligadas ao sector vitivinícola. Urge colmatar esta falha através de estudos parcelares e da consequente exposição pública num futuro pólo museológico, que contribuam para dar à memória colectiva a consistência do conhecimento histórico. A nossa maior motivação é que este trabalho possa ser um contributo válido para esse conhecimento.

*

PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO

Ø  Início do trabalho em Setembro de 2014
Ø  Cronograma anual desdobrado em cronogramas mensais, a elaborar oportunamente.
Ø  Redacção de Relatórios de Trabalho mensais, a entregar e debater em entrevista presencial com o professor orientador
Ø  Entrega da dissertação: Novembro de 2015





ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO -  PROPOSTA DE ÍNDICE

CASA HIPÓLITO: HISTÓRIA, MEMÓRIAS E PATRIMÓNIO
DE UMA FÁBRICA TORRIENSE


INTRODUÇÃO – Toca a sirene

PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS – Folha de serviço nº1

PATRIMÓNIO INDUSTRIAL – O homem fez a indústria e a indústria fez o homem

CONTEXTO NACIONAL – A indústria vitivinícola: a fábrica ao serviço da vinha
     
CONTEXTO LOCAL
A urbe torriense no início do séc.XX: demografia e economia

HISTÓRIA DE FAMÍLIA
HIPÓLITO – cavalo marinho por terra, de Alcobaça a Torres Vedras
            Fixação e prole / De operário a Senhor Comendador
            Onde param os descendentes

CASA HIPÓLITO – UM SÉCULO DE INDÚSTRIA

            1900 - Uma latoaria na rua Serpa Pinto
            1910 – Metalurgia ligeira alimentada a motor de 5 H.P.
            1930 – 2 500 m2, 80 operários, fogões e lanternas
            1944 – Casa Hipólito Ldª / Sociedade de pai e filhos na indústria da guerra
            1950 – Época de ouro / Morte do fundador (1954)
            1960 – 700 operários e exportações em força
            1970 – Nova fábrica no Bairro Arenes / Casa Hipólito SARL / Solavancos do
período revolucionário
            1980 – Altos e baixos / Prejuízos, financiamentos de emergência, perda de
competitividade, desorganização produtiva, gestão pelos credores
            1990 – O canto do cisne / Falência e morte

 MEMÓRIAS
            Sobreviventes – os que ficaram para contar
            O que diziam os jornais da terra

CONCLUSÃO
            O que resta de tanto labor







RECURSOS E FONTES


BIBLIOGRAFIA

AAVV – Arqueologia & Indústria. Lisboa: Revista da Associação Portuguesa de
Arqueologia Industrial, nº 1, Julho 1998.

AAVV - Associativismo e património – Actas do colóquio organizado pela
Associação de Estudo e Defesa do Património Histórico-Cultural de Santarém,
29 a 30 de Março de 2003. Coord. Maria Emília Vaz Pacheco. Santarém: Fundação Passos Canavarro, 2003.

AAVV – Patrimonio industrial:lugares de la memoria. Gijón: Incuna, Associación
de Arqueología Industrial, 2002.

CANDAU, Joël – Antropologia da memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2013.

CANINAS, João Carlos – Associativismo e defesa do património (1980-2010). In:
100 anos de património, memória e identidade. Lisboa: Igespar, 2ª ed., 2011.

CARVALHO, Ana – Os museus e o património cultural imaterial, estratégias para  
o desenvolvimento de boas práticas. Lisboa: Edições Colibri / CIDEHUS
Universidade de Évora, 2011.

CUSTÓDIO et al. – Museologia e arqueologia industrial, estudos e projectos.
Lisboa: Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial, 1991.

CUSTÓDIO, Jorge e SANTOS, Luísa – A Real fábrica de fiação de Tomar e a 1ª
geração europeia e americana de fábricas hidráulicas. Coimbra: Coimbra
Editora, 1990.

FENTRESS, James e WICKHAM, Chis – Memória social. Lisboa: Editorial
Teorema, 1992.

FOLGADO, Deolinda e CUSTÓDIO, Jorge – Caminho do Oriente, Guia do
Património Industrial. Lisboa: Livros Horizonte, 1999.

GUIMARÃES, Manuel da Silva – História de uma fábrica, a Real fábrica de fiação
de Thomar. Santarém: Edição da Junta Distrital, 1976.

HALBWACHS, Maurice – La mémoire collective. Paris: Albin Michel (Nouvelle
édition revue et augmentée), 1997.

LE GOFF, Jacques – Memória. In: Enciclopédia Einaudi, volume 1. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984.

LOPES, Flávio e CORREIA, Miguel Brito - Património arquitectónico e
arqueológico, cartas, recomendações e convenções internacionais. Lisboa: Livros Horizonte, 2004.

MENDES, J. Amado – Estudos do património, museus e educação. Coimbra:
mprensa da Universidade de Coimbra, 2ª ed., 2013.

SILVA, Jorge Henrique Pais da – Pretérito presente (Para uma teoria da  
preservação do património histórico-artístico). (Texto com a data de 1975).  Comissão Organizadora da Campanha Nacional para a Defesa do Património, s/l, s/d (1978?).

       TINOCO, Alfredo e SOUSA, Élia de  – Património industrial e pré-industrial de
Montijo, da obra à memória. Lisboa: Edições Colibri e Câmara Municipal do Montijo, s/d (2009?)

       VAINFAS, Ronaldo – Os protagonistas anônimos da história, Micro-história. Rio 
de Janeiro: Editora Campus, 2002.

           


WEBGRAFIA

ARAÚJO, Francisca Pereira – Memória e cotidiano: notas sobre a fala de
      uma operária de fábricas de fiação em Campina Grande – Pb. [Em
      linha]XII  Encontro Nacional de História Oral – Política, Ética e    
      Conhecimento,Teresina 6 a 9 de Maio de 2014, Univers. Federal do

FERREIRA, Sónia – Entre a casa e a fábrica:memórias do trabalho
      operário no feminino. In: AIBR. Revista de antropologia  
      iberoamericana. [Consult. 9 e Julho 2014]. Disponível em:

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        Rheingantz entre passado, presente e patrimônio.[Em linha] Horizontes
        Antropológicos, vol.19 no.39 Porto Alegre Jan./June 2013.[Consult. 10
        Julho 2014]. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-
           
            MEMÓRIAS DO TRABALHO – testemunhos do Porto laboral no século XX.
                        Candidatura de projecto à Porto 2001 SA, Capital da cultura, Agosto 1999.
                        [Consult. 12 Julh 2014]. Disponível em:
                        http://cdi.upp.pt/PDF/projecto_memorias.pdf


FONTES IMPRESSAS E OUTRAS

1.     Fundo da Casa Hipólito, no Museu Municipal de Torres Vedras
2.     Arquivo da União Sindical de Torres Vedras
3.     Arquivo da Câmara Municipal de Torres Vedras (Actas do Executivo Municipal, Impostos, licenças…)
4.     Arquivos do Registo Predial de Torres Vedras
5.     Arquivo do Tribunal da Comarca de Torres Vedras
6.     Arquivos dos Ministérios da Indústria, Economia, Obras Públicas…
7.     Anuários e Estatísticas Nacionais
8.     Boletim do Trabalho Industrial (Lisboa, Imprensa Nacional)
9.     Imprensa Local de Torres Vedras
10.  Entrevistas com membros da família Hipólito
11.  Entrevistas com antigos trabalhadores da Casa Hipólito


Torres Vedras, 15 de Julho de 2014
Joaquim Moedas Duarte



[1] Teixeira de Pascoaes – Livro de memórias. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, p. 46
[2] Cf. jornal A Hora, nº 42, Lisboa, 1936, p. 30.
[3] Cf. J. Amado Mendes – Uma nova perspectiva sobre  o património cultural: preservação e requalificação de instalações industriais. In: Museus e educação. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2ª ed., 2013, p. 123.
[4] Cf: Sítio da Câmara Municipal de Torres Vedras [Em linha]. [Consultado em 30 de Maio de 2014]. Disponível em: : http://www.cm-tvedras.pt/cultura/museu-municipal/doacoes/
[5] Cf: J. Amado Mendes – Museus e educação. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2ª ed.,2013, p. 175
[6] J. Moedas Duarte – Património industrial, memória do trabalho produtivo. Texto de reflexão no âmbito da Unidade Curricular História e Teoria do Património, Universidade Aberta, 2013/14.
[7] Paul Veyne – Como se escreve a História. Lisboa: Ed.70, 1987 (1ª ed. em França:1971) pp. 22-23.
[8] Cf. Carla Alexandra Gonçalves – Metodologia do trabalho científico. Lisboa: Universidade Aberta, 2012. pp. 19-20
[9] Maria Isabel João – Memória, História e Educação in: NW noroeste, revista de história, Universidade do Minho, 1, 2005, p. 85.
[10] Jacques Le Goff – Memória, in Enciclopédia Einaudi, volume 1, Memória – História. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, p. 14.
[11] Cf. Paul Ricoeur – Memória, história, esquecimento. Conferência proferida em Budapeste, 2003. [Consult. 11 Julho 2014]. [Disponível em: http://www.uc.pt/fluc/lif/publicacoes/textos_disponiveis_online/pdf/memoria_historia ]
[12] Sobre a recolha de testemunhos orais em meio operário, foi-nos útil a leitura de quatro artigos disponíveis [em linha], indicados na webgrafia final.
[13] Cf. James Fentress e Chris Wickham – Memória social. Lisboa: Editorial Teorema, 1992, p. 142 e sgts. Os autores analisam as características do que denominam “memórias de classe e de grupo nas sociedades ocidentais”, apontando alguns problemas inerentes à sua recolha e estudo.
[14] Cf. Álvaro Garrido – Culturas marítimas e conservação memorial, a experiência do Museu Marítimo de Ílhavo. In: Museologia.pt, nº 3 /2009, pp. 3-11.
[15] Idem, p. 7.
[16] Estes encontros duram dois dias e são realizados sob a égide do Instituto de Estudos Regionais e do Municipalismo “Alexandre Herculano”, da Faculdade de Letras de Lisboa, com a organização e apoio do Sector da Cultura da Câmara Municipal de Torres Vedras.
[17] Cf: Francisco Ribeiro da Silva - História local: objectivos, métodos e fontes. [Em linha] [Consultado em 30 de Maio de 2014]. Disponível em: <: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/3226.pdf
[18] Torres Vedras seguiu assim a tendência nacional, anotada por José Tengarrinha - História da imprensa periódica portuguesa. Lisboa: Ed. Caminho, 2ª ed. 1989. ISBN 972-21-0396-2. p. 233.
[19] Citado por Clarice P. Chiareli - A imprensa: um lugar da memória sob o olhar da História.[Em linha]. Caderno de resumos & Anais do 2º. Seminário Nacional de História da Historiografia. A dinâmica do historicismo: tradições historiográficas modernas. Ouro Preto: EdUFOP, 2008. (ISBN: 978-85-288-0057-9) [Consult. 13 Fevereiro 2014]. Disponível em:
[20] Lucas Schuab Vieira – A imprensa como fonte para a pesquisa em História: teoria e método. [Em linha] [Consultado em 13 Fevereiro 2014] Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/vieira-lucas-2013-imprensa-fonte-pesquisa.pdf
[21] Idem, p.1
[22] Renée Barata Zicman – História através da imprensa: algumas considerações metodológicas. [Em linha] Projecto História. Revista do programa de estudos pós-graduados de História. E-ISSN 2176-2767;ISSN 0102-4442.[Consult. Fevereiro 2014] Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12410
[23] Idem, p. 6
[24] Convenção de Faro [Em linha], disponível em: http://www.patrimoniocultural.pt/media/uploads/cc/ConvencaodeFaro.pdf

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