A
localização periférica de Portugal explica em parte o constante atraso da
chegada de todas as novas tendências, sejam na arte, na ciência, na moda ou na
cultura em geral – situação que só o advento das novas tecnologias a partir dos
anos 80 ajudou a esbater.
O
caso do surrealismo é paradigmático. Este movimento artístico-cultural, chegado
a Portugal em meados dos anos 40, havia surgido em França nos anos 20 (falamos
do séc. XX) como consequência e resposta à avassaladora irracionalidade da
Primeira Grande Guerra. Milhões de homens haviam sucumbido sob a metralha e os
gases de um conflito que desmentiu cruelmente todas as crenças na ideia de
progresso civilizacional. Onde estava a razão humana? Que forças obscuras se
desencadearam para tão espantosa hecatombe?
Freud,
no final de oitocentos, descerrara a cortina da mente humana e desvendara os
recessos mais escusos onde se geram as paixões, os desequilíbrios, os desejos
incnofessados, os recalcamentos, os sonhos, as associações de ideias. A razão,
noção que alimentara a crença no progresso humano desde o luminoso século
XVIII, surge então como ilusão perigosa que esconde a realidade mais profunda
da mente humana, lá onde se cruzam e conflituam os egos, os super-egos, os
inconscientes e as pulsões sexuais. Só este tenebroso mundo interior
poderia explicar a ferocidade com que milhões de homens se enfrentaram e
destruiram.
Em
França, André Breton lança o seu primeiro Manifesto Surrealista (1924)
que congrega numerosos artistas em torno de um conceito revolucionário: o
artista é um libertador sem bandeira, um iconoclasta sem emblema, um veículo de
liberdade onde viajam a arte, a cultura, a cidadania, a vida. Uma totalidade em
que coexistem os fantasmas interiores mais obscuros e os mais elevados e
luminosos ideais de realização humana. Nem estética nem moral. Coexistência do
sonho com a realidade. Assunção do irracionalismo como espaço de libertação.
O
surrealismo foi um poderoso vulcão cultural que espalhou chamas e cinzas por
todo o mundo e que, de certo modo, ainda hoje alimenta as pulsões mais obscuras
da arte e da literatura contemporâneas.
Voltemos
a Portugal. Leia-se: «Curioso é saber que não se fará a história do movimento
surrealista em Portugal. Posto entre dois impossíveis, o do início e o do fim,
nem os seus protagonistas se qualificam para Herculanos nem os amadores disso,
temos visto, se haverao de esforçar.»[1] .
Podemos
dizer que em Portugal o surrealismo entra em meados dos anos 40 com
Alexandre O’Neill, António Pedro, Mário Cesariny, Costa Pinto, Vespeira e
outros, que se constituem em grupo que terá existência efémera. Contudo, o
ideário artístico – com incidência na literatura e na pintura – permanecerá por
muito mais tempo, em manifestações individuais.
J.
Moedas Duarte
[1] Cf:
Mário Cesariny – A intervenção surrealista. Lisboa: Assírio &
Alvim, 1997 (1ª ed. 1966), p. 14.
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