sábado, 16 de agosto de 2014

EXERCÍCIO DE RECENSÃO CRÍTICA




Adelaide Ginga Tchen
A AVENTURA SURREALISTA
O movimento em Portugal do casulo à transfiguração
Lisboa / Edições Colibri / 2001

Partindo do seu trabalho de dissertação de mestrado em História do século XX, defendido em 1999 na FCSH da Universidade Nova de Lisboa, Adelaide Tchen propõe-nos, nesta obra, uma visão de conjunto sobre o surrealismo em Portugal. O título aponta, desde logo, para uma perspectiva caracterizadora acerca deste movimento artístico, designado como aventura que se desenrola num processo de metamorfose - de um espaço fechado para a transformação, porventura inesperada.

Começando por referir que uma abordagem histórica do surrealismo é aparentemente paradoxal se tivermos em conta a advertência de Mário Cesariny acerca da impossibilidde de fazer a história deste movimento, a autora enfrenta decisivamente o desafio e organiza a obra segundo o esquema clássico de círculos concêntricos, partindo do exterior geral– o contexto internacional – para o interior particular da eclosão do movimento em Portugal com a análise dos dois grupos surrealistas que se formaram em oposição mútua e a descrição dos três momentos particulares do seu percurso – a importância da Escola António Arroio como alfobre de criatividade dos futuros surrealistas; o impacto das exposições realizadas nos anos 40 /50; e as repercussões da actividade surrealista nos arquivos da PIDE. Em complemento, no final do volume, é apresentada uma circunstanciada cronologia comparada, a seis colunas, em que, para além da referência/data, são postos em paralelo o surrealismo em Portugal, na França e no mundo, além do referente político. É um excelente instrumento de trabalho para quem pretenda aprofundar conhecimentos sobre esta época.

A contextualização internacional é analisada com rigor e de forma sistemática, a partir da ambiência sócio-cultural criada com a primeira Grande Guerra. Milhões de homens haviam sucumbido num conflito que fez desmoronar todas as crenças na ideia de progresso civilizacional. Onde estava a razão humana? Que forças obscuras se desencadearam para tão espantosa hecatombe? Freud, no final de oitocentos, mostrara como funciona a mente e desvendara os recessos mais escusos onde se geram as paixões, os desequilíbrios, os desejos inconfessados, os recalcamentos, os sonhos, as associações de ideias. A razão, noção que alimentara a crença no progresso humano desde o século XVIII, revelava-se ilusão perigosa que esconde a realidade mais profunda da mente humana, as camadas do sub-consciente e do inconsciente, onde se recalcam as pulsões. O conhecimento deste mundo interior poderia explicar a violência com que milhões de homens se enfrentaram e destruiram.

O movimento Dada, designação que, por nada significar pretende significar tudo, é a primeira resposta do mundo artístico à demência da humanidade e que encontra nas teorias de Freud uma sugestão de romper com o velho mundo sepultado nos campos de batalha. O homem é muito mais do que a feroz animalidade destruidora com que se organiza em sociedade. Na sequência deste movimento, André Breton, em França, lança o seu primeiro Manifesto Surrealista (1924) que congrega numerosos artistas em torno de um conceito revolucionário: o artista é um libertador sem bandeira, um iconoclasta sem emblema, um veículo de liberdade onde viajam a arte, a cultura, a cidadania, a vida. Uma totalidade em que coexistem os fantasmas interiores mais obscuros e os mais elevados e luminosos ideais de realização humana. Nem estética nem moral. Coexistência do sonho com a realidade. Assunção do irracionalismo como espaço de libertação. O surrealismo foi um poderoso vulcão cultural que espalhou chamas e cinzas por todo o mundo e que, de certo modo, ainda hoje alimenta as pulsões mais enigmáticas da arte e da literatura contemporâneas. No dizer de um historiador do movimento, “mais do que revolta – inspiração Dada – o surrealismo apontava para a revolução”.

Adelaide Tchen analisa pormenorizadamente o percurso inicial de Breton e dos que se lhe juntaram – Aragon, Éluard, Péret e Pierre Unik -  focando-se em um dos aspectos que mais controvérsia gerou - a relação entre o surrealismo e o comunismo que irrompera na Rússia, promessa de concretização política do desejo revolucionário de transformar o mundo. O surrealismo viverá sempre dividido entre a opção da liberdade total sem peias de qualquer ordem – o anarquismo e o individualismo – e a eficácia da acção política através da estratégia partidária como forma de destronar o poder capitalista. Esta tensão virá a repercutir-se no nosso país, como circunstanciadamente é descrito na segunda parte da obra, a mais longa, dedicada ao “despontar do surrealismo em Portugal”. A autora analisa o copioso espólio documental preservado em arquivos diversos, a acção dos seus defensores e praticantes, as lutas que os opuseram entre si e também com o regime ditatorial que então vigorava. Estávamos na segunda metade da década de 40, no rescaldo da segunda Grande Guerra. O surrealismo chegava tarde a Portugal, o que se explica por factores como a consabida periferia do país, conjugada com uma situação política marcada pela afirmação do Estado Novo e por especificidades culturais como uma certa pujança cultural sob a égide de António Ferro e o prolongamento das manifestações futuristas na sequência do Orpheu. Contudo, este movimento não surgiu do nada, como erupção inesperada no meio do deserto, antes resultou de um demorado processo em que artistas plásticos e da literatura se conjugaram em acções de oposição ao Estado Novo e às suas formas de estrangulamento cultural, caso da censura, da polícia política e de uma “política do espírito” que erigia a tradição nacionalista como base da identidade do país. É o tempo do que veio a chamar-se neo-realismo, em que a arte surge como elemento da acção conjunta contra a asfixia reinante, com todos os equívocos e contradições gerados pelas diversas tendências em presença e em que se dá em Portugal o que sucedera noutros países quanto à deriva artística para áreas políticas ligadas ao movimento comunista internacional.

Num estilo de escrita marcado pela clareza e objectividade a que não faltam pormenores de observação subtil que humanizam a actuação dos protagonistas da aventura surrealista, Adelaide Tchen descreve e analisa este período com enorme soma de pormenores que traçam um quadro vivo e sugestivo da vida cultural portuguesa nos anos finais da década de 40 e inícios de 50. A afirmação do Grupo Surrealista de Lisboa, o aparecimento, em oposição, dos Surrealistas, o abandono das posições de apoio à luta política directa, a afirmação da pujança da arte como forma suprema de libertação, o confronto, apesar de tudo, com a polícia política que via nestes desalinhados um perigo para a ordem pública e uma ameaça à integridade moral da nação, tudo isto é abordado com brilhantismo e qualidade textual, fazendo de uma obra aparentemente circunscrita na sua temática central, um notável estudo de caracterização cultural de uma época decisiva na nossa história contemporânea.

            Na breve conclusão de quatro páginas a autora sintetiza as grandes linhas caracterizadoras do surrealismo português: perfilhando a ligação a França, pátria de origem do movimento, manteve a autonomia, derivada da especificidade sócio-política portuguesa; tal como acontecera com outros movimentos de vanguarda no dealbar do século XX, o surrealismo surgiu tardiamente em Portugal, mercê de condições intrínsecas já atrás referidas; afirmou-se em ruptura com o neo-realismo; apesar de uma certa pujança e capacidade de inquietar os espíritos, o surrealismo em Portugal nunca foi capaz de superar as contradições que o minaram desde o início, nomeadamente a impossibilidade prática de conjugar esforços colectivos a partir da afirmação de feroz e irredutível individualismo dos seus próceres.
Esta aventura surrealista terá sido, pois, um «movimento de rutura, com as suas próprias ruturas internas, (…) sem mártires nem heróis(…)» - conclui a autora na última das 208 páginas deste livro.
Esta é, quanto a nós, uma obra imprescindível para quem pretenda conhecer o movimento surrealista em Portugal do ponto de vista da sua especificidade cultural e da articulação com o contexto sócio-político da época em que surgiu entre nós, o pós segunda Guerra Mundial. Tal como a autora avisa logo na introdução, não se trata de uma análise estética da produção artística e literária surrealista pois «o que se pretende é um melhor conhecimento do que motivou o aparecimento do surrealismo em Portugal, da razão do seu atraso, do momento histórico em que se afirmou, da relação entre os seus intervenientes.» Em nossa opinião isso é plenamente conseguido e uma das razões é o recurso a documentação escrita que nunca tinha sido manuseada de forma sistemática. É o caso da numerosa correspondência trocada entre os protagonistas da aventura surrealista, e também, os catálogos das exposições, artigos, panfletos, comunicados, entrevistas, livros, depoimentos mais recentes e, por último, os arquivos da PIDE/DGS. Estas fontes são criteriosamente convocadas ao longo da obra, numa fluência de exposição que torna a sua leitura extremamente atraente e proveitosa.

Não por acaso, este longo ensaio foi distinguido em 1999 com o Prémio de História Contemporânea Dr. Vitor de Sá e em 2000 com uma Menção Honrosa do Prémio Fundação Mário Soares.

J. Moedas Duarte

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