Adelaide Ginga Tchen
A AVENTURA
SURREALISTA
O
movimento em Portugal do casulo à transfiguração
Lisboa / Edições
Colibri / 2001
Partindo do seu trabalho
de dissertação de mestrado em História do século XX, defendido em 1999 na FCSH
da Universidade Nova de Lisboa, Adelaide Tchen propõe-nos, nesta obra, uma
visão de conjunto sobre o surrealismo em Portugal. O título aponta, desde logo,
para uma perspectiva caracterizadora acerca deste movimento artístico,
designado como aventura que se desenrola
num processo de metamorfose - de um espaço fechado para a transformação, porventura
inesperada.
Começando por referir
que uma abordagem histórica do surrealismo é aparentemente paradoxal se
tivermos em conta a advertência de Mário Cesariny acerca da impossibilidde de
fazer a história deste movimento, a autora enfrenta decisivamente o desafio e
organiza a obra segundo o esquema clássico de círculos concêntricos, partindo
do exterior geral– o contexto internacional – para o interior particular da eclosão
do movimento em Portugal com a análise dos dois grupos surrealistas que se
formaram em oposição mútua e a descrição dos três momentos particulares do seu
percurso – a importância da Escola António Arroio como alfobre de criatividade
dos futuros surrealistas; o impacto das exposições realizadas nos anos 40 /50;
e as repercussões da actividade surrealista nos arquivos da PIDE. Em
complemento, no final do volume, é apresentada uma circunstanciada cronologia
comparada, a seis colunas, em que, para além da referência/data, são postos em
paralelo o surrealismo em Portugal, na França e no mundo, além do referente
político. É um excelente instrumento de trabalho para quem pretenda aprofundar
conhecimentos sobre esta época.
A contextualização
internacional é analisada com rigor e de forma sistemática, a partir da
ambiência sócio-cultural criada com a primeira Grande Guerra. Milhões de homens
haviam sucumbido num conflito que fez desmoronar todas as crenças na ideia de
progresso civilizacional. Onde estava a razão humana? Que forças obscuras se
desencadearam para tão espantosa hecatombe? Freud, no final de oitocentos, mostrara
como funciona a mente e desvendara os recessos mais escusos onde se geram as
paixões, os desequilíbrios, os desejos inconfessados, os recalcamentos, os
sonhos, as associações de ideias. A razão, noção que alimentara a crença no
progresso humano desde o século XVIII, revelava-se ilusão perigosa que esconde
a realidade mais profunda da mente humana, as camadas do sub-consciente e do
inconsciente, onde se recalcam as pulsões. O conhecimento deste mundo interior
poderia explicar a violência com que milhões de homens se enfrentaram e
destruiram.
O movimento Dada, designação que, por nada
significar pretende significar tudo, é a primeira resposta do mundo artístico à
demência da humanidade e que encontra nas teorias de Freud uma sugestão de
romper com o velho mundo sepultado nos campos de batalha. O homem é muito mais
do que a feroz animalidade destruidora com que se organiza em sociedade. Na
sequência deste movimento, André Breton, em França, lança o seu primeiro Manifesto Surrealista (1924) que
congrega numerosos artistas em torno de um conceito revolucionário: o artista é
um libertador sem bandeira, um iconoclasta sem emblema, um veículo de liberdade
onde viajam a arte, a cultura, a cidadania, a vida. Uma totalidade em que
coexistem os fantasmas interiores mais obscuros e os mais elevados e luminosos
ideais de realização humana. Nem estética nem moral. Coexistência do sonho com
a realidade. Assunção do irracionalismo como espaço de libertação. O
surrealismo foi um poderoso vulcão cultural que espalhou chamas e cinzas por
todo o mundo e que, de certo modo, ainda hoje alimenta as pulsões mais enigmáticas
da arte e da literatura contemporâneas. No dizer de um historiador do
movimento, “mais do que revolta –
inspiração Dada – o surrealismo apontava para a revolução”.
Adelaide Tchen analisa
pormenorizadamente o percurso inicial de Breton e dos que se lhe juntaram –
Aragon, Éluard, Péret e Pierre Unik - focando-se em um dos aspectos que mais
controvérsia gerou - a relação entre o surrealismo e o comunismo que irrompera
na Rússia, promessa de concretização política do desejo revolucionário de
transformar o mundo. O surrealismo viverá sempre dividido entre a opção da
liberdade total sem peias de qualquer ordem – o anarquismo e o individualismo –
e a eficácia da acção política através da estratégia partidária como forma de
destronar o poder capitalista. Esta tensão virá a repercutir-se no nosso país,
como circunstanciadamente é descrito na segunda parte da obra, a mais longa,
dedicada ao “despontar do surrealismo em
Portugal”. A autora analisa o copioso espólio documental preservado em
arquivos diversos, a acção dos seus defensores e praticantes, as lutas que os
opuseram entre si e também com o regime ditatorial que então vigorava. Estávamos
na segunda metade da década de 40, no rescaldo da segunda Grande Guerra. O
surrealismo chegava tarde a Portugal, o que se explica por factores como a
consabida periferia do país, conjugada com uma situação política marcada pela
afirmação do Estado Novo e por especificidades culturais como uma certa pujança
cultural sob a égide de António Ferro e o prolongamento das manifestações
futuristas na sequência do Orpheu. Contudo,
este movimento não surgiu do nada, como erupção inesperada no meio do deserto,
antes resultou de um demorado processo em que artistas plásticos e da
literatura se conjugaram em acções de oposição ao Estado Novo e às suas formas
de estrangulamento cultural, caso da censura, da polícia política e de uma “política do espírito” que erigia a
tradição nacionalista como base da identidade do país. É o tempo do que veio a
chamar-se neo-realismo, em que a arte
surge como elemento da acção conjunta contra a asfixia reinante, com todos os
equívocos e contradições gerados pelas diversas tendências em presença e em que
se dá em Portugal o que sucedera noutros países quanto à deriva artística para
áreas políticas ligadas ao movimento comunista internacional.
Num estilo de escrita
marcado pela clareza e objectividade a que não faltam pormenores de observação
subtil que humanizam a actuação dos protagonistas da aventura surrealista,
Adelaide Tchen descreve e analisa este período com enorme soma de pormenores
que traçam um quadro vivo e sugestivo da vida cultural portuguesa nos anos
finais da década de 40 e inícios de 50. A afirmação do Grupo Surrealista de Lisboa, o aparecimento, em oposição, dos Surrealistas, o abandono das posições de
apoio à luta política directa, a afirmação da pujança da arte como forma
suprema de libertação, o confronto, apesar de tudo, com a polícia política que
via nestes desalinhados um perigo para a ordem pública e uma ameaça à
integridade moral da nação, tudo isto é abordado com brilhantismo e qualidade
textual, fazendo de uma obra aparentemente circunscrita na sua temática
central, um notável estudo de caracterização cultural de uma época decisiva na
nossa história contemporânea.
Na
breve conclusão de quatro páginas a autora sintetiza as grandes linhas
caracterizadoras do surrealismo português: perfilhando a ligação a França,
pátria de origem do movimento, manteve a autonomia, derivada da especificidade
sócio-política portuguesa; tal como acontecera com outros movimentos de
vanguarda no dealbar do século XX, o surrealismo surgiu tardiamente em
Portugal, mercê de condições intrínsecas já atrás referidas; afirmou-se em ruptura
com o neo-realismo; apesar de uma certa pujança e capacidade de inquietar os
espíritos, o surrealismo em Portugal nunca foi capaz de superar as contradições
que o minaram desde o início, nomeadamente a impossibilidade prática de conjugar
esforços colectivos a partir da afirmação de feroz e irredutível individualismo
dos seus próceres.
Esta aventura
surrealista terá sido, pois, um «movimento
de rutura, com as suas próprias ruturas internas, (…) sem mártires nem
heróis(…)» - conclui a autora na última das 208 páginas deste livro.
Esta é, quanto a nós,
uma obra imprescindível para quem pretenda conhecer o movimento surrealista em
Portugal do ponto de vista da sua especificidade cultural e da articulação com
o contexto sócio-político da época em que surgiu entre nós, o pós segunda
Guerra Mundial. Tal como a autora avisa logo na introdução, não se trata de uma
análise estética da produção artística e literária surrealista pois «o que se pretende é um melhor conhecimento
do que motivou o aparecimento do surrealismo em Portugal, da razão do seu
atraso, do momento histórico em que se afirmou, da relação entre os seus
intervenientes.» Em nossa opinião isso é plenamente conseguido e uma das
razões é o recurso a documentação escrita que nunca tinha sido manuseada de
forma sistemática. É o caso da numerosa correspondência trocada entre os
protagonistas da aventura surrealista, e também, os catálogos das exposições,
artigos, panfletos, comunicados, entrevistas, livros, depoimentos mais recentes
e, por último, os arquivos da PIDE/DGS. Estas fontes são criteriosamente
convocadas ao longo da obra, numa fluência de exposição que torna a sua leitura
extremamente atraente e proveitosa.
Não por acaso, este
longo ensaio foi distinguido em 1999 com o Prémio de História Contemporânea Dr.
Vitor de Sá e em 2000 com uma Menção Honrosa do Prémio Fundação Mário Soares.
J. Moedas Duarte
Nenhum comentário:
Postar um comentário