Escritório de José Relvas - Casa dos Patudos, Alpiarça
Abandonadas - Constantino Fernandes
ABANDONADAS – a
tela favorita de José Relvas
Quem
visitar a Casa dos Patudos - Museu de Alpiarça - que foi residência do grande
republicano e homem de cultura José Relvas[1],
por este doada à Câmara Municipal daquela vila - verá numa das paredes do
escritório um quadro a óleo sobre tela intitulado Abandonadas (1670 X 1775 mm), da autoria de Constantino Fernandes.
Era o quadro favorito de José Relvas que o queria perto de si, no gabinete de
trabalho que ainda hoje se conserva com os objectos de uso e o calendário de
cartões em caixa de mogno e enfeites de prata, imobilizado no dia da sua morte:
Outubro, Quinta-feira, 31 (1929).
José
Relvas foi um grande proprietário agrícola que soube gerir com eficácia e
proveito um bom núcleo de terras de vinha e olival. Desgostoso com a inépcia
governativa monárquica, assumiu o risco da oposição política indo ao ponto de
se envolver na preparação e realização da revolução republicana. Foi ele quem
proclamou a República na varanda do Município de Lisboa, na manhã de 5 de
Outubro de 1910.
Formado
no Curso Superior de Letras de Lisboa, não descurou a formação prática em
economia e finanças, tão necessária à gestão dos bens e, mais tarde, às
responsabilidades de Ministro das Finanças do primeiro Governo republicano,
tendo sido ele o criador da nova moeda, o escudo
que substituiu o real. Porém, outra
faceta da personalidade fascinante deste homem era a sua cultura artística.
Exímio executante musical – tocava violino – viajou pela Europa e tornou-se um
apreciador de arte de elevado critério, o que o levou a adquirir para a sua
residência solarenga de Alpiarça um notabilíssimo acervo de peças de arte
portuguesa e estrangeira que engloba pintura, escultura, tapeçaria, louças,
mobiliário e azulejaria e que constitui o miolo do Museu que podemos visitar.
José Relvas foi um homem preocupado com o bem público e com a justiça social,
como bem mostra o seu testamento. Tendo visto morrer os seus três filhos, legou
todos os bens – Casa e rendimentos de proprietário agrícola – à Câmara
Municipal de Alpiarça, para que fosse construído um Asilo para os alpiarcenses
pobres, o que veio a ser feito: ele lá está, do outro lado da estrada, frente à
Casa-Museu.
O
breve retrato do grande republicano era necessário para melhor entendermos o
significado do quadro Abandonadas,[2] de
Constantino Fernandes. A temática social que nele se adivinha era bem cara a
José Relvas. Em primeiro plano, duas mulheres e um rapazito deslocam-se da
direita para a esquerda, vindos de algum sítio que os repele. Não sabemos que
sítio seja. Podemos, também, supor que se afastam de alguém de quem receberam
ordem de expulsão. O que nos impressiona é o rosto destas personagens em que se
expressa uma dignidade ferida, uma resignação mansa e fatalista, visível sobretudo
na mulher do xaile amarelo e na criança. Nesta, a expressividade é
avassaladora: não lhe vemos os olhos nem a boca, o rosto está numa posição
abaixo do nosso olhar, mas a inclinação da cabeça e a mãozita que aconchega a
gola do casaco revelam um enorme desamparo e uma infinita tristeza. A mulher do
xaile amarelo traz uma criança ao colo, presença sugerida pelos folhos brancos
e pelo volume dos braços que fazem berço. Mas ela não se fixa na criança. No
seu rosto sério, os olhos perdem-se numa lonjura que vai muito para além do
chão para onde parecem olhar. Na sua expressão está contida uma história de
vida, um passado que não se adivinha risonho, mágoas acumuladas. É como se
olhasse para um abismo que, de tão conhecido, já não a assusta. O mesmo abismo,
aberto no chão, onde se parece fixar o olhar da criança.
A
personagem do meio tem uma atitude diferente. Olha para trás, num derradeiro
olhar em que se despede de alguém ou de um lugar. Não há rancor nem ameaça nos
seus olhos, antes uma doçura e uma serenidade de quem aceita o inevitável. Mas
a boca cerrada denota decisão, vontade de resistir à ameaça. As mãos estão
ocultas debaixo da manta que lhe pende dos ombros. Talvez a mão esquerda se
encoste ao ombro do rapazinho que, ao senti-la, aproxima a sua própria mão,
como se respondesse num gesto silencioso.
Que
mundo é o destas mulheres? Pelas roupas, depreendemos que será tempo de frio, o
que sublinha o desconforto da cena, a juntar à terra do chão e às poças de
água. A paisagem que as envolve é de uma zona fabril, com chaminés altas que
expelem fumo e casario de área habitacional pobre. As colinas do fundo
parecem-nos familiares, lembram a Serra de Monsanto, o que nos permite
conjecturar que a cena se passa na zona de Alcântara onde, no início do século
XX, se concentravam algumas fábricas.
O
quadro foi pintado em 1909 por Constantino Fernandes. O título – Abandonadas – parece confirmar a nossa
leitura: o quadro representa mulheres do povo anónimo num momento de desamparo.
Temos a tentação de imaginar histórias: terão ido pedir trabalho e receberam
uma má resposta? Foram expulsas de casa por um homem alcoolizado? Foram
despejadas do casebre por um senhorio implacável? Mas logo percebemos que
qualquer leitura concreta só empobrece o quadro.
Porque
o que lhe dá força é o seu enorme poder sugestivo, sem referências explícitas.
O título genérico e toda a composição concentram uma ideia essencial: o
sofrimento de duas mulheres abandonadas, num tempo em que a condição feminina
das mulheres do povo era muitas vezes intolerável.
Constantino
Fernandes (1878 – 1920) insere-se na grande corrente artística do naturalismo /
realismo [3],
optando por temas de carácter social, pela representação rigorosa do corpo
humano[4] ou
pelo retrato. São características do seu estilo o rigor do desenho e a
utilização de uma paleta elementar da qual tira todo o partido possível. As
figuras surgem à boca da tela em enquadramento que mais tarde, em linguagem
cinematográfica, se designou por “plano americano”- figuras humanas a 2/3, com
corte por cima do joelho, o que permite uma maior aproximação do olhar de quem
observa e sublinha a expressão dramática dos rostos e do movimento das figuras
representadas. A tela “Abandonadas” é um exemplo brilhante da qualidade
artística de C. Fernandes, reconhecida desde o momento da sua criação, quando o
autor, bolseiro (“pensionista do Estado, como então se chamava) em Paris, foi
distinguido com uma “primeira medalha” em 1909.
Torres
Vedras, 29 de Abril de 2014
Joaquim
Moedas Duarte
[1]
Sobre José Relvas:
José Raimundo Noras – José Relvas (1858-1929), Fotobiografia.
Leiria: Edição Imagens & Letras, 2009.
Catálogo da exposição José Relvas, o conspirador contemplativo.
Lisboa: Divisão de Edições da Assembleia da República, 2008.
[2]
Não é consensual o título do quadro. Nas obras referidas na nota 1 o quadro é
designado por “As abandonadas”. José Augusto França, in: A arte em Portugal no século XIX (Lisboa, Livraria Bertrand, 1967)
designa-o sem o artigo definido. Carlos Augusto Lyster Franco, que foi
contemporâneo de Constantino Fernandes e com ele privou, também designa o
quadro como “Abandonadas” no opúsculo “O pintor Constantino Fernandes”,
separata do «Correio do Sul», Faro, 1950. (reproduzido in: Ana Rita Carvalho
Afonso - A obra gráfica de Carlos Augusto
Lyster Franco, Dissertação de Mestrado, vol.II.[Em linha] Faculdade de
Belas Artes, Universidade de Lisboa, 2008. [Última cons. Em 29 de Abril de
2014]. Disponível em: http://hdl.handle.net/10451/7783
)
[3]
Do ponto de vista da pintura, ao contrário do que se passa na Literatura, naturalismo e realismo são dois conceitos que facilmente se confundem. Não cabe
aqui tentar a destrinça que remete para considerações teóricas ligadas à
Estética.
[4]
Cf. Alberto Cláudio Rodrigues Faria – A
colecção de desenho antigo da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa ( 1830- 1935):
tradição, formação e gosto. Dissertação de Mestrado em Museologia e
Museografia, vol. III, p. 135 [Em linha] Faculdade de Belas Artes da
Universidade de Lisboa, Lisboa, 2008.[Última cons. Em 29 Abril 2014].
Disponível em:
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