sábado, 6 de setembro de 2014

COLECCIONISMO NO SECULO XVIII




      1)     IMPORTÂNCIA CULTURAL DO REINADO DE D. João V

Contrariando a perspectiva tremendista de Oliveira Martins sobre o “inchado Salomão de Mafra”[1], a historiografia portuguesa mais recente[2] reabilitou o reinado de D. João V no que respeita a certas práticas culturais - como a renovação artística e o incremento dos estudos históricos – integrando tais práticas nas tendências europeias do tempo.

No primeiro caso, com o recurso decidido e decisivo a artistas estrangeiros, tanto do universo italiano como do norte da Europa, no âmbito do grande movimento europeu do Barroco. No segundo com a fundação, em 1720, da Academia Real da História Portuguesa e a publicação, em 1721, do Alvará em forma de Ley[3], de enorme importância para a salvaguarda do património histórico nacional – iniciativas que são, de algum modo, a consequência natural do apoio de D. João V à criação e desenvolvimento da Arcádia Romano-Lusitana em Roma, no final de Setecentos e que tiveram larga repercussão com o movimento arcadista em todo o século XVIII[4].

Decerto, estas práticas culturais integram-se na estratégia de afirmação de poder de D. João V a nível europeu a partir da influência exercida sobre a cúria romana, por um lado, e da acção diplomática por outro – de que é testemunho expressivo o papel desempenhado por D. Luís da Cunha no contacto com o mundo da arte e do coleccionismo, com encomendas para o rei e áulicos da Corte e compras para a sua própria colecção.[5]


       2)     NUMISMÁTICA E MEDALHÍSTICA COMO FONTE HISTÓRICA

Desde que existem moedas metálicas, o seu entesouramento foi uma prática secular como forma de granjear riqueza e garantir poder. A moeda tinha um valor material que lhe advinha do metal que a constituía e um valor político de afirmação de poder da parte de quem a cunhava – normalmente o rei. Em virtude de crises económicas ou na sequência de mudanças políticas, a moeda em circulação era muitas vezes sujeita a fundição e nova cunhagem. Daí a sua existência efémera.

Contudo, a ambiência sócio-cultural do séc. XVIII, com a afirmação do Iluminismo e uma concepção da História baseada na glorificação dos monarcas e dos heróis, fez recair sobre o colecionismo de moedas um prestígio novo, agora associado “a uma imagem de saber e erudição”[6] – o que significou uma nova maneira de olhar a numismática. Ela passa a ser uma importante fonte para o conhecimento histórico. O Alvará de 1721 dedica várias linhas à salvaguarda de “lâminas, chapas, medalhas e moedas”. Igualmente na monumental História Genealógica da Casa Real, D. António Caetano de Sousa aborda longamente a sua importância ao mesmo tempo que é, ele mesmo, um conceituado numismata pela acção colecionadora, na esteira de outros eruditos da época.[7]


        3)     DO CONCEITO DE GABINETE AO DE MUSEU

Na segunda metade do séc. XVIII deteta-se uma mudança em relação ao uso dos conceitos de gabinete e de museu[8]. Se na primeira parte do século – correspondente ao período joanino – os dois termos eram indiferenciadamente usados e com asserções semânticas pouco rigorosas, com o Marquês de Pombal entra-se na era dos Museus como espaços organizados na perspectiva de um ensino renovado, expurgado da tradição imobilista jesuítica, ligado às ciências exactas e a uma nova concepção da universidade. São criados, assim, o Real Museu da Ajuda e os Museus da Universidade de Coimbra.[9]

Antes desta reforma decisiva, e na sequência de uma longa tradição colecionista que se firmou no século XVI, - como já por nós foi estudado em anterior tópico desta Unidade Curricular, - a época joanina distinguiu-se pela proliferação de gabinetes de curiosidades em que se amalgamavam exemplares da fauna, da flora, da mineralogia e de todo o tipo de objectos que pudessem suscitar admiração. Cresceu, também, o gosto pela coleção de pintura e de livros. Infelizmente, a esmagadora maioria destes gabinetes ficou soterrada no terramoto de 1755 e hoje nada resta a não ser alguns inventários e registos. Era uma actividade do gosto das elites cortesãs, que também nisso queriam imitar o rei, juntando ao culto das antiguidades as chamadas naturalia e mirabilia – “um resumo de toda a natureza”, na linha do enciclopedismo de raiz francesa.[10]

Joaquim Moedas Duarte



[1] Oliveira Martins – História de Portugal. Lisboa: Guimarães Editores, 16ª ed, 1972, p. 454.
[2] Cf João Carlos Brigola – Colecções, Gabinetes e Museus em Portugal no séc. XVIII. Lisboa: Fund. Cal. Gulbenkian/Fund. Ciência e Tecnologia, 2003, p. 51.
[3] Transcrito por J. C. Brigola in: Coleccionismo no século XVIII – Textos e documentos. Porto: Porto Editora, 2009, pp.1 a 3. Cf, também, J. C. Brigola – Coleccções, Gabinetes…, p. 64 a 67.
[4] Cf: Nuno Saldanha – A Arcádia Romano-Lusitana e os círculos de poder na cultura setecentista (1721-1756) in Propaganda & Poder, Congresso Peninsular de História da Arte, 5 a 8 de Maio de 1999. Lisboa: Ed. Colibri, 2001, pp. 365-382.
[5] Cf: Isabel Cluny – D. Luís da Cunha e a ideia de diplomacia em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 1999, pp. 113 e sgts. E também J. C. Brigola – Coleccções, Gabinetes…, p. 55.
[6] Cf. J. Carlos Brigola – Coleccções, Gabinetes…, p. 58.
[7] J. C. Brigola – Coleccionismo, Gabinetes…, p. 58 e sgts.
[8] J. C. Brigola – Coleccionismo no século XVIII, Introdução, p. XXIII.
[9] Cf: Paulo Oliveira Ramos – Breve história do museu em Portugal in: Iniciação à museologia, coord. de Maria Beatriz Rocha-Trindade, Universidade Aberta, 1993, p. 21.
[10] Cf: Durval de Lara Filho – Museu: de espelho do mundo a espaço relacional. Dissertação de pós-graduação, Universidade de S. Paulo. S. Paulo, 2006, p. 37.

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