sábado, 6 de setembro de 2014

CONTRIBUTO PARA UM DEBATE PÚBLICO

PRÁTICAS MUSEOLÓGICAS EM TORRES VEDRAS: 


Joaquim Moedas Duarte
Trabalho final de Coleccionismo e Museologia
           

UM PASSADO DE PRESTÍGIO

Abrimos este texto com a justa referência a alguém que marcou a vida cultural torriense na primeira metade do séc. XX: Rafael Salinas Calado. Concretizando uma antiga aspiração das elites torrienses, foi ele o obreiro do Museu Municipal de Torres Vedras, cujo projecto de regulamento foi aprovado pelo executivo camarário em 21 de Junho de 1929.[1]O Museu veio a abrir as suas portas em 1930 na sala da Irmandade dos Clérigos Pobres, anexa à Igreja de S. Pedro. Para a recolha de peças, o fundador recorreu às pessoas influentes da vila, caso do pároco, Padre Pio Sobreiro, ou de José da Cunha Santos Bernardes, descendente dos Morgados da Maceira; ou os prestigiados médicos Dr. Afonso Vilela e José de Bastos, bem como Álvaro e Mário Galrão. O executivo camarário associou-se e providenciou a cedência de peças entre as quais se destacava o precioso Foral de D. Manuel. Ficavam assim, expostos ao público, além daquele, variados espécimes de grande valor: o bufete sobre que se tinha assinado o armistício que pôs fim à 1ª invasão napoleónica, em 1809; um conjunto precioso de quatro tábuas dos primitivos portugueses, da Colegiada de Santa Maria do Castelo; paramentos barrocos da Igreja Matriz de S. Pedro; cadeiras de couro e o bufete da extinta Câmara da Ribaldeira; uma urna de sorteios com o brazão de armas da família Falcão Trigoso, entre mais peças não especificadas.[2] A inauguração contou com a presença do Governador Civil de Lisboa, João Luís de Moura e com toda a Câmara Municipal à qual presidia o Tenente França Borges. De assinalar que, uns dias antes, a colecção já exposta, fora visitada pelo então Director do Museu de Arte Antiga, Dr. José de Figueiredo, que teceu elogios à iniciativa. Pela observação do espólio descrito podemos inferir que a concepção museológica subjacente a esta primeira fase do Museu Municipal era a de mostrar ao público visitante alguns objectos de Arte, ou peças com significado histórico local, consideradas de grande qualidade memorial ou artística, uma orientação ainda eivada do espírito do século XIX. O Museu era um templo de Arte e de História, um espaço consagrado à perenidade de testemunhos materiais carregados de grande valor simbólico, expostos e justapostos como objectos em si e que, embora identificados, apareciam desligados de um contexto histórico bem explícito. É certo que já se estava longe das colecções de maravilhas que alguns aristocratas ancien régime juntavam por diletantismo, curiosidade ou, até, por espírito científico; e já o Marquês de Pombal fizera prevalecer uma nova concepção de Museu de História Natural ou de Artes destinado à instrução da juventude ou impusera a ideia de utilidade pública para a constituição de «um verdadeiro embrião de um museu nacional de numismática».[3]

Sublinhe-se que no texto memorial de Salinas Calado, que vimos seguindo, há um pormenor significativo: é a referência à organização de um Grupo dos Amigos do Museu, cujas cotas mensais, aliadas a um subsídio camarário, «permitiram bastantes aquisições», o que, «com as ofertas de particulares foi aumentando o recheio do pequeno museu, precursor do Grande Museu que Torres um dia pode realizar».[4] Esta interacção entre a população e o Museu, em Torres Vedras nos anos 30 do século passado, pode ser encarada como expressão pioneira do que, muitos anos depois – em 2004 -  a Lei Quadro dos Museus Portugueses veio a reconhecer como um dos «Princípios da política museológica», insertos no Artº 2º daquela lei: a participação dos cidadãos na «salvaguarda, enriquecimento e divulgação» dos museus.[5]
Mais adiante, Salinas Calado referia-se a «grandes possibilidades arqueológicas de pré-história» de Torres Vedras que poderiam enriquecer o Museu. Na altura em que escreveu este texto – 1947 - já Leonel Trindade havia descoberto o Castro do Zambujal – importante arqueo-sítio do Calcolítico da Estremadura -  e era colaborador assíduo, como director-adjunto, do então director do Museu Municipal, o Dr. Aurélio Ricardo Belo, ele também um arqueólogo de mérito.

Entretanto, em 1944, a exiguidade do espaço inicial impôs que o Museu Municipal fosse transferido para uma sala no antigo Hospital da Misericórdia, na Rua Serpa Pinto. O aumento exponencial do seu espólio implicou a progressiva ampliação do Museu que, em 1970, já ocupava oito salas distribuídas pelos dois pisos, onde os espaços se organizavam de acordo com a tipologia das peças. Havia uma prevalência significativa de material arqueológico proveniente do intenso labor investigativo de Ricardo Belo e Leonel Trindade, em que se destacava o referente ao Castro do Zambujal, em articulação com uma sala dedicada à Guerra Peninsular e outras em que se observavam as peças que vinham da fundação e muitas outras entretanto adquiridas ou doadas – caso de uma importante colecção de numismática, ou emprestadas, como a de malacologia. Já director – foi-o entre 1969 e a sua morte, em 1992 - Leonel Trindade reorganizou o Museu, dentro dos parâmetros comuns à época, embora não praticasse os procedimentos museológicos hoje considerados imprescindíveis a uma correcta gestão[6], caso da inventariação sistemática de peças ou a realização de iniciativas de promoção ou divulgação do Museu. Reconheça-se, no entanto, que a sua acção foi de elevado mérito científico no que respeita à investigação arqueológica, actividade em que granjeou prestígio nacional e internacional. Homenageado em vida, em 1997 o seu nome foi proposto para designar o Museu Municipal, o que veio a suceder por decisão camarária. Lembremos, entretanto, que em 1989, por manifesta desadequação das instalações ocupadas, o Museu fora de novo transferido, agora para o piso térreo do Convento da Graça, mantendo a exposição permanente, inaugurada em 1992, e dispondo de um novo regulamento. Respeitava-se a ordenação cronológica e garantia-se uma orientação didáctica, a pensar nas escolas que passaram a contar com um serviço de apoio específico.

Já neste século o Museu sofreu novas alterações, resultantes de mudanças de uso do edifício do Convento cujo piso superior foi liberto do organismo de planeamento técnico autárquico – o GAT - e passou a ser utilizado como espaço de serviços adstritos ao Museu. Alterou-se, também, a orientação expositiva. O grande núcleo arqueológico resultante do labor de Leonel Trindade e de muitos outros investigadores, que projectara o Museu como referência nessa área, foi retirado, dando lugar a exposições temporárias de diversa índole. É certo que algumas retomaram o tema da arqueologia com base nas numerosas campanhas de escavações no Castro do Zambujal – e fizeram-no com grande qualidade[7] – mas a exposição permanente acabou, com prejuízo, em nosso entender, do alcance pedagógico-didáctico que tão útil era para as escolas.

Significativamente, desde o final da década de 50, a designação apresentada ao Instituto Nacional de Estatística na obrigatória entrega anual de informações era «Museu de História, Arqueologia e Pré-História», a qual foi sofrendo alterações, naturalmente, mas sempre apontando para uma grande multiplicidade de núcleos expositivos[8]. Em 1992, o Regulamento Interno então aprovado pela Câmara Municipal estabelecia que «o Museu Municipal de Torres Vedras é um Museu de Arqueologia e História, que se destina a contribuir para o estudo das origens e evolução histórica do Homem, na região, através da recolha, estudo e exposição de objectos arqueológicos, históricos, etnográficos e artísticos».


UM PRESENTE DE AMBIGUIDADES

Tanto quanto sabemos, aquele Regulamento Interno mantém-se em vigor e a designação do Museu está de acordo com as informações divulgadas ao público. Veja-se o site da Câmara Municipal de Torres Vedras:

«O Museu Municipal Leonel Trindade assume-se como um museu de Arqueologia e História, destinado ao estudo das origens e evolução histórica do Homem no Concelho de Torres Vedras. O Museu tem como missão a interpretação, preservação e divulgação do passado, das vivências e tradições locais, aliadas a uma componente educativa e de lazer, para fruição das gerações do presente e do futuro.
O Museu Municipal Leonel Trindade pretende ser uma instituição ativa na procura, recolha, documentação e preservação da História de Torres Vedras, bem como no registo e difusão do seu património e memórias. Este objetivo é alcançado na exposição permanente do Museu e em exposições temporárias, a organizar em sintonia com outras atividades.»[9]

Este Museu integra-se na Rede Portuguesa de Museus e na Rota dos Museus do Oeste em cujos sites os textos descritivos são semelhantes ao que vimos atrás, com a particularidade de um deles ser expressamente avalizado pela Direcção Geral do Património Cultural[10]. Sublinhamos este ponto por nos parecer significativo de uma certa forma de (des) informar o público eventualmente interessado em saber, via internet, o que pode encontrar num museu como o Museu Municipal Leonel Trindade.[11]
De facto, entre as aliciantes descrições que lemos e a realidade que observamos vai a considerável distância que, num deserto, separa a miragem da tortura da sede - o que só uma visita ao museu pode comprovar. Como já atrás dissemos, o riquíssimo espólio arqueológico está guardado nos reservados. Dele fazem parte os vestígios de cerca de 50 arqueo-sítios do Calcolítico Estremenho – de que se destaca um dos mais importantes do país, o Castro do Zambujal. Esta obliteração acarreta outra, quanto a nós muito grave: o Castro do Zambujal espera, há muitos anos, por uma intervenção que o preserve e dignifique. Para além da desmatação anual, pouco ou nada se tem feito para a sua qualificação, estando hoje à guarda de uma anciã que ali vive em precárias condições materiais. Perdeu-se a articulação necessária entre o espólio, à guarda do Museu Municipal, e o seu local de origem – o que impossibilita a leitura correcta do Castro e impede sucessivas gerações de estudantes de contactarem com o mais importante vestígio pré-histórico do concelho e um dos mais importantes do país.

Mas não é só o espólio arqueológico que está invisível. Onde estão as «numerosas colecções de azulejaria», por exemplo? Talvez o texto descritivo queira referir-se aos magníficos painéis de azulejo atribuídos ao Mestre PMP, que forram as paredes do claustro que pertence ao edifício onde se situa o museu – e em alarmante estado de degradação, diga-se. Mas, onde estão as demais? E onde estão as «colecções de cerâmica, faiança e porcelana»? Ainda há pouco lá estivemos e nada vimos. E a numismática? Invisível, também. De «uma das maiores colecções portuguesas de cabeceiras de sepultura medievais»[12] vimos cerca de uma dúzia, num recanto do Museu, sem qualquer enquadramento didáctico-expositivo.

Alguém nos disse, no Museu, que «a organização dos espaços do museu, em alas independentes, favorece a apresentação de exposições de diferentes temáticas», mas podemos interrogar-nos se a melhor forma de organizar um museu será a justaposição de espaços com conteúdos tão diferentes como a Guerra Peninsular, a pintura dos primitivos portugueses ou as cabeceiras de sepultura medievais sem que se perceba qual é a lógica sequencial.

Por outro lado, a direcção do museu decidiu há alguns anos reservar cerca de um terço do espaço expositivo disponível para exposições temporárias – de que é exemplo a apresentação «Dinossauros que viveram na nossa terra», iniciada em Novembro de 2012 e que irá até Setembro do corrente ano. Respeitando, embora, a opção dos dirigentes e não pondo em causa a validade e qualidade destas exposições, consideramos inadequada a sua inclusão num Museu Municipal com as características do de Torres Vedras pois ela faz-se à custa do espaço que, quanto a nós, deveria estar reservado à exposição permanente. Exposições temporárias são necessárias e devem fazer parte do programa expositivo de um museu contemporâneo – desde que haja espaço para elas e se articulem com a exposição permanente. O que acontece presentemente no MMLT é que as exposições temporárias anulam, ou pelo menos, menorizam, o rico espólio do museu – o qual, como vimos, continua a ser publicitado como se estivesse plenamente disponível ao público. A lógica museográfica observável no MMLT é a ocupação desgarrada de espaços, sem uma narrativa explicativa, numa base casuística que é, na prática, a negação do discurso oficial divulgado na internet.
               Notemos, a propósito, que a questão da possível desadequação dos conteúdos expostos à descrição oficial a que vimos fazendo referência não tem resposta consensual por parte de alguns responsáveis com quem contactámos. Bem sabemos que a museologia é hoje uma área fluida onde são difíceis os consensos por parte dos decisores como lembra Mário Moutinho:
«Como eram tranquilos os tempos em que sabíamos o que era Museu e o que não era. (…) Eram museus tranquilos, sem problemas que não fossem os de guardar, conservar e documentar. Quando narrativa existia, ela era sustentada no óbvio e no discurso da ideologia oficial.»[13]

            Contudo, julgamos que as insuficiências do MMLT não se devem a uma natural divergência de concepções mas a causas mais profundas e de carácter estrutural que analisaremos mais adiante.
            Por ora, depois das referências críticas que apresentámos, é justo salientar que o MMLT tem aspectos de funcionamento que consideramos positivos. É o caso dos serviços prestados à comunidade local ou aos visitantes: visitas guiadas ao próprio Museu, ao centro histórico da cidade, aos monumentos ou até ao restante concelho; serviço educativo destinado sobretudo à população escolar; e a interacção com  associações não lucrativas ou entidades privadas em eventos como as Jornadas Europeias do Património, o Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, dias festivos locais, etc. Já a biblioteca especializada, se é verdade que está disponível para consultas com o apoio prestável dos funcionários e técnicos, pouco a pouco foi-se transformando numa arrecadação poeirenta em que os livros convivem com trastes vários por ali empilhados, à falta de outro lugar onde se arrumem.

No entanto, a análise ao funcionamento do MMLT é apenas uma parte da oferta museológica em Torres Vedras. Impõe-se uma referência mais geral à política autárquica que tem sido seguida neste domínio[14]. De facto, o MMLT é o núcleo forte dessa oferta mas, paralelamente, têm vindo a público notícias de projectos museológicos que se caracterizam pela forma errática como se apresentam. Sejam hipóteses teóricas, sejam ante-projectos com desenhos já feitos e apresentados publicamente, eles têm surgido sem qualquer preocupação em discutir com a comunidade local a sua pertinência e oportunidade.
É o caso do Centro Interpretativo das Linhas de Torres Vedras que apareceu há cerca de quatro anos como a grande e revolucionária ideia que lançaria Torres Vedras no mapa dos grandes edifícios museográficos, na linha de um Guggenheim de Bilbao[15] – os arquitectos do ante-projecto até ganharam um prémio internacional… - numa proposta que nunca foi discutida com ninguém, nem sequer com a Comissão Executiva das Comemorações do Bicentenário das Linhas de Torres Vedras, da qual fizemos parte[16]. Tal projecto não foi avante – pelo evidente gigantismo e desadequação ao meio – e aparece substituído agora por um Centro de Acolhimento aos visitantes do Forte de S. Vicente, confinado ao espaço exíguo de uma antiga capela. Está, neste momento, em fase de montagem e é, mais uma vez, um equipamento de características museológicas feito  sem a participação cooperativa da comunidade local.
            Outro exemplo são os futuros Centro de Artes do Carnaval (CAC) e Museu Joaquim Agostinho (MJA). A imprensa local tem publicado regularmente notícias, embora vagas, sobre a existência destes projectos mas a população torriense nada sabe de concreto sobre eles.

            Não querendo fazer juízos de valor sobre estes aspectos da realidade museológica de Torres Vedras, limitamo-nos a verificar que eles traduzem um notório afastamento do espírito da Lei-quadro dos Museus Portugueses, nomeadamente os que se explicitam no Artº 2º (Princípios da política museológica) e no Artº 47º (Estruturas associativas e voluntariado). Fazendo nós parte da Direcção da Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras, sabemos que nunca esta foi chamada para se pronunciar sobre o património musealizável ou, sequer, o musealizado.

            Justifica-se uma outra perspectiva de análise. O executivo camarário torriense é partidariamente monolítico com maioria absoluta há vários mandatos. Sem entrarmos em considerações de carácter partidário, aqui desajustadas, procurámos nos Programas Eleitorais, apresentados em 2009 e 2013 pela mesma equipa candidata ao órgão executivo e maioritariamente sufragados, as linhas orientadoras quanto à política museológica do concelho.
Veja-se o que se projectava em 2009[17]:
           
«Construção de um novo discurso para o Museu Municipal Leonel Trindade; criação do Centro de Interpretação das Linhas de Torres, cujo projecto de construção no Monte da Forca se encontra em execução e queremos efectivar; criação do Centro de Artes do Carnaval e do Centro de Interpretação do Castro do Zambujal, cujo projecto e concurso de ideias, respectivamente, queremos adjudicar; construção de um centro museológico interactivo, especialmente dirigido aos mais jovens, onde, através da experimentação dos fenómenos mecânicos e químicos, se remeta para o ciclo da uva ao vinho, o MUVVI – Museu da Vinha e do Vinho.» (negritos no original)

Em 2013 propunha-se:
«A qualificação do Museu Municipal Leonel Trindade, a elaboração de um projecto para o Centro de Interpretação do Castro do Zambujal, a valorização das Linhas de Torres Vedras através da criação de um centro de acolhimento ao visitante e de uma Feira Oitocentista anual e de projecção nacional, assim como a finalização do projecto do Centro de Artes do Carnaval, são desígnios prioritários para este mandato.
Tudo faremos para que se venha a materializar a Casa-Museu Joaquim Agostinho, a instalar no antigo refeitório da Casa Hipólito, preservando-se um património de referência e a memória de um torriense único.»[18](negrito no original )

A leitura comparada destes dois textos evidencia a falta de uma linha orientadora
perceptível pelos cidadãos e o carácter casuístico das propostas. Veja-se a inclusão inusitada de uma Casa-Museu, «a instalar no antigo refeitório da Casa Hipólito», uma ideia sem qualquer consistência conceptual.[19]
Por outro lado a referência ao Centro de Interpretação do Castro do Zambujal aparece sem articulação com a realidade. Em 2009 falava-se em «concurso de ideias» e em 2013 em «elaboração de um projecto». Ora, o processo sobre esta obra arrasta-se desde há mais de vinte anos. Projectos, já houve três pelo menos, em parceria com o antigo IGESPAR mas o processo está parado há vários anos sem que saibamos a razão.

Vejam-se igualmente, nos programas de candidatura às eleições autárquicas, as referências ao Museu Municipal. Enquanto em 2009 se falava de «construção de um novo discurso», em 2013 apontava-se para «a qualificação». Um e outro poderiam ser sinónimos e foi isso que tentámos esclarecer. Trata-se de uma proposta elaborada por técnicos de gabinete em que se fala de uma «reprogramação do museu» sem que nos seja explicado em que é que ela consiste. Há uma memória descritiva que acompanha as plantas com as alterações previstas para o edifício, percebe-se que este será ampliado e adaptado a uma moderna concepção museológica mas, para além de generalidades teóricas, nada é dito sobre a «construção de um novo discurso» ou de «uma nova narrativa».


UM FUTURO DE POSSIBILIDADES

            Na nossa perspectiva, o panorama actual da oferta museológica na cidade de Torres Vedras padece de algumas anomalias de base. A primeira é, por um lado, a desarticulação na resposta às limitações flagrantes do espaço museológico central que é o MMLT, e por outro, às solicitações de novidade que têm surgido no decorrer da evolução natural da cidade, resultantes da intensificação das práticas culturais. Dito de outro modo: à necessidade de repensar o papel do MMLT dentro das limitações de que padece - espaço físico e em degradação, bem como falta de recursos financeiros para obras de remodelação – junta-se a de reflectir sobre a criação de espaços museológicos que respondam a novas necessidades sociais e culturais próprias de uma cidade de média dimensão.
            A segunda anomalia consiste na falta de um fio condutor ou de uma concepção prévia que oriente os responsáveis autárquicos na procura de soluções para os problemas acima enunciados.
Face ao que fica dito, cremos que qualquer proposta que possamos fazer deve radicar numa visão prévia do que pode e deve ser um programa museológico coerente e bem articulado. Mais do que propor soluções, importa definir o modo como elas são pensadas, dando primazia ao processo sobre o produto.
            Como condição prévia de enunciação lembramos que um museu – e as práticas museológicas associadas – fazem parte do universo da chamada cultura e é assim que são arrumados nos programas eleitorais como os que referimos há pouco. Talvez não possa ser de outro modo dada a abrangência do conceito onde parecem caber todas as manifestações da vida humana. Parece-nos produtivo aceitar uma definição proveniente da antropologia cultural que entende a «cultura como conjunto de sistemas de comunicação que integram e adaptam o homem à sociedade», com a adição da formulação segundo a qual «se a cultura é tudo o que o Homem acrescenta à natureza, o facto é que os homens não acrescentam coisas à Natureza da mesma maneira(…[20] - daí a diversidade cultural de grupos, de povos ou de sociedades. A definição proposta parece atraentemente consensual mas só o é enquanto não a aprofundamos ou não a vemos como problema[21] - pois, olhada de um ponto de vista crítico, a cultura surge como «construção e artefacto histórico»[22]. Esta precisão conduz o conceito para o domínio do conjuntural retirando-lhe a carga essencialista com que muitas vezes surge e que mais não é do que a forma de usar a Cultura como instrumento de domínio, de poder. – começando, desde logo, por grafá-la com maiúscula…

João Teixeira Lopes[23] enumera seis dimensões fundamentais observáveis no uso instrumentalizador da cultura: concepção descendente da transmissão cultural (que desce dos especialistas iluminados até às massas rasteiras e ignaras); paternalista ( que se propõe «elevar o nível cultural das massas», vistas como «consumidoras mais ou menos passivas e não como receptoras activas»); hierarquizadabaseada na tricotomia cultura erudita – a Cultura - /cultura de massas / cultura popular»); arbitrária (a partir de uma escolha determinada, em detrimento da diversidade); essencialista (erigindo as audiências não como públicos da cultura mas como povo ou nação, abastracções que justificam o que se quiser e negam a pluralidade dos destinatários); concepção liquidatária do indivíduo que não reconhece ao destinatário da política cultural o direito a convergir ou divergir, a optar pelos sentidos múltiplos em vez do sentido único.
Logo adiante J. T. Lopes assinala as «profundas limitações desta majestática política cultural», contrapondo o contributo decisivo de autores como Pierre Bourdieu que, a partir da concepção de cultura como sistema de símbolos que expressam a infinita multiplicidade dos indivíduos e das suas formas de se relacionarem, aponta para a «conclusão de que a cultura não é apenas um bem de consumo, mas também um espaço para que os cidadãos possam formar a sua própria cultura». Tal entendimento permite uma «mudança de paradigma» em que «o consumo cultural dá lugar à participação cultural».[24]

É nesta perspectiva que nos situamos, assumindo-nos como fazendo parte dos «públicos dominantes» mas também dos «contra-públicos» de que fala J. T. Lopes [25], na consciência de que nos não compete esperar passivamente pela definição de políticas culturais nas quais se integrem aspectos particulares como o das escolhas museológicas mas procurar, pelo menos, intervir na sua discussão.
No que às práticas museológicas diz respeito importa ter em conta muitas das  propostas da chamada nova museologia que, desde a década de 60 do século passado, alteraram profundamente o panorama museológico tanto internacional como nacional. Desde a mesa redonda em Santiago do Chile, passando pela reunião no Québec e, pouco depois, a do México, um novo paradigma se foi afirmando, no qual o museu como «local de culto e repositório do prestígio da sociedade dominante»[26] foi sendo paulatinamente substituído por um espaço público de características diametralmente opostas. Para a questão central que vimos tratando consideramos muito significativas algumas das asserções da chamada Declaratória de Oaxtepec (México) de 18 de Outubro de 1984:

«O museu tradicional produz-se num edifício, com uma colecção e para um público determinado. Trata-se agora de ultrapassar estes princípios substituindo-os por um território, um património integrado e uma comunidade participativa. (…)
A participação comunitária evita as dificuldades de comunicação, características do monólogo museográfico empreendido pelos especialistas, e reflecte as tradições e a memória colectivas, colocando-as ao lado do conhecimento científico.»[27]


            É esta dimensão «essencialmente reflexiva e crítica»[28] da nova museologia que convocamos para a necessária renovação das práticas museológicas em Torres Vedras. Partindo da assunção decisiva do conceito de democracia cultural[29], que pressupõe o abandono de métodos autoritários e majestáticos na definição de prioridades, defendemos que se deve privilegiar a participação da população interessada através de mecanismos de encontro e reflexão – porque não, entre outras iniciativas, a organização de umas Jornadas Museológicas abertas e motivadoras? – através dos quais se debatam as grandes linhas de orientação da política museológica local. Como renovar o Museu Municipal Leonel Trindade? Como articular uma estrutura central (MMLT) com os  núcleos museológicos dispersos pelo território concelhio que têm vindo a ser propostos? Que prioridades para as hipóteses em presença? Que políticas culturais garantir através destes equipamentos? Como encorajar e incorporar a participação comunitária – seja individual, seja através de estruturas organizacionais como as escolas e as associações? Como abordar a questão da formação de públicos?

No fundo, não propomos nada de novo. Apenas o cumprimento integral dos preceitos constantes da Lei Quadro dos Museus Portugueses – já atrás referida - no que respeita à participação dos cidadãos. Que certos poderes estabelecidos o não entendam e pratiquem, é uma realidade com que nos vimos defrontando desde há muito. Mas acreditamos que um novo tempo chegará. Como alguém escreveu, no contexto de um Encontro sobre Património, significativamente intitulado «Património e Paixões Identitárias»: «Le temps n’est pas encore venu d’un État régulateur, arbitre des identités au sein de l’unité. Le temps de la sagesse.»[30]


[ NOTA: Dado que  foram facultadas em contexto de trabalho académico, foram retiradas deste texto algumas referências a pessoas que, a nosso pedido, nos deram informações e emitiram opiniões pessoais. Agradecemos a sua prestimosa colaboração. A ausência desses elementos em nada colide com o conteúdo essencial do texto.]


Torres Vedras, 22 de Julho de 2014
Joaquim Moedas Duarte



BIBLIOGRAFIA

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WEBGRAFIA

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[1] Cf. Venerando de Matos -  Vedrografias [Em linha] Blogue sobre História Local de Torres Vedras. [Consult. 17 Julho 2014]. Disponível em: http://vedrografias2.blogspot.pt/2009/06/no-80-aniversario-do-museu-municipal_21.html
[2] Rafael Salinas Calado – Torres Vedras e o seu Museu Municipal. In: Lisboa: Boletim da Junta de Província da Estremadura, IIª Série, nº 16, 1947, pp. 365-367.
[3] Cf. Paulo Oliveira Ramos – Breve história do museu em Portugal. In: Iniciação à museologia. Coord. Maria Beatriz Rocha-Trindade. Lisboa: Universidade Aberta, 1993 , p.26.
[4] Rafael Salinas Calado - Torres Vedras e o seu Museu…,  p.366.
[5] Trata-se da Lei nº 47/2004, de 19 de Agosto.
[6] Cf. Isabel de Luna – Públicos do museu municipal Leonel Trindade: tratamento e análise de fontes administrativas. Lisboa: Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, [Edição PDF facultada pela autora]. Mestrado de Museologia: Conteúdos Expositivos, Orientação do Prof. José Soares Neves, 2009, p.3.
[7] Caso da Exposição Zambujal: vida, guerra e comércio no 3º milénio. (Anexo1)
[8] Cf. Anexo 3: «Esporadicamente, registado simultaneamente na categoria de “Museu Misto:Arqueologia, Etnografia, Numismática, Pintura e Artes Decorativas”.
[9] Cf. sítio da Câmara Municipal de Torres Vedras [Em linha]. [Consult. 20 Julho 2014]. Disponível em: http://www.cm-tvedras.pt/cultura/museu-municipal/enquadramento-museu/
[10] No final do texto descritivo do Museu Municipal Leonel Trindade de Torres Vedras vem esta nota: «Conteúdos da responsabilidade do museu e editados pela DGPC»
[11] Doravante também designado por MMLT.
[12] Cf. nota 9 supra.
[13] Mário Moutinho – A memória também está em crise. [Em linha] In: MUSEUS EM REDE – Boletim da Rede Portuguesa de Museus, nº 38, Janº de 2011. [Consult. 18 Julho 2014]. Disponível em: http://www.patrimoniocultural.pt/static/data/museus_e_monumentos/boletins_rpm/rpm-boletim_n38.pdf
[14] Na cidade de Torres Vedras não há espaços museológicos privados. O que existe e os que se prevê que venham a ser criados são de iniciativa autárquica.
[16] Ver o endereço [Em linha], disponível em: http://www.linhasdetorresvedras.com/comissao/executiva
[17] Cf. jornal PS-Eleições Autárquicas 2009, sem ficha técnica de edição, nosso arquivo pessoal.
[18] Cf. PS – Jornal Eleições Autárquicas 2013, sem ficha técnica de edição, nosso arquivo pessoal.
[19] Cf. o blogue Casas-Museu em Portugal[Em linha][Consult. 19 Julho 2014]. Disponível em : http://casas-museu-em-portugal.blogspot.pt/ ; Cf. igualmente a opinião de Isabel Luna, Anexo 3.

[20] Cf. Augusto Mesquitela Lima (et al.) – Introdução à antropologia cultural. Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 39.
[21] Cf. José A. Bragança de Miranda – A cultura como problema. In: Teoria da cultura. Lisboa: Edições séc. XXI, 2002, pp. 58-69.
[22] Idem, ibidem.
[23] Cf. João Teixeira Lopes – Da democratização à democracia cultural, uma reflexão sobre políticas culturais e espaço público. Porto: Profedições, Ldª / jornal A Página, 2007, pp. 80-81.
[24] João Teixeira Lopes – Da democratização à democracia…, p. 83.
[25] Idem, p. 106.
[26] Cf. Maria Madalena Cordovil – Novos museus, novos perfis profissionais. In: Cadernos de museologia, nº 1 – 1993, pp. 21-35.
[27] Declaratória de Oaxtepec [Em linha]. [Consult. 20 Julho 2014]. Disponível em: http://www.minom-icom.net/_old/signud/DOC%20PDF/198403404.pdf
[28] Cf. Alice Duarte – Nova Museologia: os pontapés de saída de uma abordagem ainda inovadora. [Em linha].Revista Museologia e Património, vol.6, nº1, 2013, pp.99-117.[Consult. 20 Julho 2014]. Disponível em: http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/viewFile/248/239
[29] João Teixeira Lopes – Da democratização à democracia…, p. 96.
[30] Jean-Michel Leniaud – L’État, les sociétés savantes et les associations de défense du patrimoine: l’exception française. In: Patrimoine et passions identitaires, Actes des entretiens du patrimoine, Paris, 6, 7 et 8 janvier 1997, p. 154.     

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