PRÁTICAS
MUSEOLÓGICAS EM TORRES VEDRAS:
Joaquim Moedas Duarte
Trabalho final de Coleccionismo e Museologia
UM
PASSADO DE PRESTÍGIO
Abrimos
este texto com a justa referência a alguém que marcou a vida cultural torriense
na primeira metade do séc. XX: Rafael Salinas Calado. Concretizando uma antiga
aspiração das elites torrienses, foi ele o obreiro do Museu Municipal de Torres
Vedras, cujo projecto de regulamento foi aprovado pelo executivo camarário em
21 de Junho de 1929.[1]O
Museu veio a abrir as suas portas em 1930 na sala da Irmandade dos Clérigos
Pobres, anexa à Igreja de S. Pedro. Para a recolha de peças, o fundador
recorreu às pessoas influentes da vila, caso do pároco, Padre Pio Sobreiro, ou
de José da Cunha Santos Bernardes, descendente dos Morgados da Maceira; ou os
prestigiados médicos Dr. Afonso Vilela e José de Bastos, bem como Álvaro e
Mário Galrão. O executivo camarário associou-se e providenciou a cedência de
peças entre as quais se destacava o precioso Foral de D. Manuel. Ficavam assim,
expostos ao público, além daquele, variados espécimes de grande valor: o bufete
sobre que se tinha assinado o armistício que pôs fim à 1ª invasão napoleónica,
em 1809; um conjunto precioso de quatro tábuas dos primitivos portugueses, da
Colegiada de Santa Maria do Castelo; paramentos barrocos da Igreja Matriz de S.
Pedro; cadeiras de couro e o bufete da extinta Câmara da Ribaldeira; uma urna
de sorteios com o brazão de armas da família Falcão Trigoso, entre mais peças
não especificadas.[2]
A inauguração contou com a presença do Governador Civil de Lisboa, João Luís de
Moura e com toda a Câmara Municipal à qual presidia o Tenente França Borges. De
assinalar que, uns dias antes, a colecção já exposta, fora visitada pelo então
Director do Museu de Arte Antiga, Dr. José de Figueiredo, que teceu elogios à
iniciativa. Pela observação do espólio descrito podemos inferir que a concepção
museológica subjacente a esta primeira fase do Museu Municipal era a de mostrar
ao público visitante alguns objectos de Arte, ou peças com significado
histórico local, consideradas de grande qualidade memorial ou artística, uma
orientação ainda eivada do espírito do século XIX. O Museu era um templo de
Arte e de História, um espaço consagrado à perenidade de testemunhos materiais
carregados de grande valor simbólico, expostos e justapostos como objectos em si e que, embora
identificados, apareciam desligados de um contexto histórico bem explícito. É
certo que já se estava longe das colecções
de maravilhas que alguns aristocratas ancien
régime juntavam por diletantismo, curiosidade ou, até, por espírito
científico; e já o Marquês de Pombal fizera prevalecer uma nova concepção de
Museu de História Natural ou de Artes destinado à instrução da juventude ou
impusera a ideia de utilidade pública
para a constituição de «um verdadeiro
embrião de um museu nacional de numismática».[3]
Sublinhe-se
que no texto memorial de Salinas Calado, que vimos seguindo, há um pormenor significativo:
é a referência à organização de um Grupo
dos Amigos do Museu, cujas cotas mensais, aliadas a um subsídio camarário,
«permitiram bastantes aquisições», o
que, «com as ofertas de particulares foi
aumentando o recheio do pequeno museu, precursor do Grande Museu que Torres um
dia pode realizar».[4]
Esta interacção entre a população e o Museu, em Torres Vedras nos anos 30 do
século passado, pode ser encarada como expressão pioneira do que, muitos anos
depois – em 2004 - a Lei Quadro dos
Museus Portugueses veio a reconhecer como um dos «Princípios da política museológica», insertos no Artº 2º daquela
lei: a participação dos cidadãos na «salvaguarda,
enriquecimento e divulgação» dos museus.[5]
Mais
adiante, Salinas Calado referia-se a «grandes
possibilidades arqueológicas de pré-história» de Torres Vedras que poderiam
enriquecer o Museu. Na altura em que escreveu este texto – 1947 - já Leonel
Trindade havia descoberto o Castro do
Zambujal – importante arqueo-sítio do Calcolítico da Estremadura - e era colaborador assíduo, como
director-adjunto, do então director do Museu Municipal, o Dr. Aurélio Ricardo
Belo, ele também um arqueólogo de mérito.
Entretanto,
em 1944, a exiguidade do espaço inicial impôs que o Museu Municipal fosse
transferido para uma sala no antigo Hospital da Misericórdia, na Rua Serpa
Pinto. O aumento exponencial do seu espólio implicou a progressiva ampliação do
Museu que, em 1970, já ocupava oito salas distribuídas pelos dois pisos, onde
os espaços se organizavam de acordo com a tipologia das peças. Havia uma
prevalência significativa de material arqueológico proveniente do intenso labor
investigativo de Ricardo Belo e Leonel Trindade, em que se destacava o
referente ao Castro do Zambujal, em articulação com uma sala dedicada à Guerra
Peninsular e outras em que se observavam as peças que vinham da fundação e
muitas outras entretanto adquiridas ou doadas – caso de uma importante colecção
de numismática, ou emprestadas, como a de malacologia. Já director – foi-o entre
1969 e a sua morte, em 1992 - Leonel Trindade reorganizou o Museu, dentro dos
parâmetros comuns à época, embora não praticasse os procedimentos museológicos
hoje considerados imprescindíveis a uma correcta gestão[6],
caso da inventariação sistemática de peças ou a realização de iniciativas de
promoção ou divulgação do Museu. Reconheça-se, no entanto, que a sua acção foi
de elevado mérito científico no que respeita à investigação arqueológica,
actividade em que granjeou prestígio nacional e internacional. Homenageado em
vida, em 1997 o seu nome foi proposto para designar o Museu Municipal, o que
veio a suceder por decisão camarária. Lembremos, entretanto, que em 1989, por
manifesta desadequação das instalações ocupadas, o Museu fora de novo
transferido, agora para o piso térreo do Convento da Graça, mantendo a
exposição permanente, inaugurada em 1992, e dispondo de um novo regulamento.
Respeitava-se a ordenação cronológica e garantia-se uma orientação didáctica, a
pensar nas escolas que passaram a contar com um serviço de apoio específico.
Já
neste século o Museu sofreu novas alterações, resultantes de mudanças de uso do
edifício do Convento cujo piso superior foi liberto do organismo de planeamento
técnico autárquico – o GAT - e passou a ser utilizado como espaço de serviços
adstritos ao Museu. Alterou-se, também, a orientação expositiva. O grande
núcleo arqueológico resultante do labor de Leonel Trindade e de muitos outros
investigadores, que projectara o Museu como referência nessa área, foi
retirado, dando lugar a exposições temporárias de diversa índole. É certo que
algumas retomaram o tema da arqueologia com base nas numerosas campanhas de
escavações no Castro do Zambujal – e fizeram-no com grande qualidade[7] –
mas a exposição permanente acabou, com prejuízo, em nosso entender, do alcance
pedagógico-didáctico que tão útil era para as escolas.
Significativamente, desde
o final da década de 50, a designação apresentada ao Instituto Nacional de
Estatística na obrigatória entrega anual de informações era «Museu de História, Arqueologia e
Pré-História», a qual foi sofrendo alterações, naturalmente, mas sempre
apontando para uma grande multiplicidade de núcleos expositivos[8].
Em 1992, o Regulamento Interno então aprovado pela Câmara Municipal estabelecia
que «o Museu Municipal de Torres Vedras é
um Museu de Arqueologia e História, que se destina a contribuir para o estudo
das origens e evolução histórica do Homem, na região, através da recolha,
estudo e exposição de objectos arqueológicos, históricos, etnográficos e
artísticos».
UM
PRESENTE DE AMBIGUIDADES
Tanto
quanto sabemos, aquele Regulamento Interno mantém-se em vigor e a designação do
Museu está de acordo com as informações divulgadas ao público. Veja-se o site da Câmara Municipal de Torres
Vedras:
«O
Museu Municipal Leonel Trindade assume-se como um museu de Arqueologia e
História, destinado ao estudo das origens e evolução histórica do Homem no
Concelho de Torres Vedras. O Museu tem como missão a interpretação, preservação
e divulgação do passado, das vivências e tradições locais, aliadas a uma
componente educativa e de lazer, para fruição das gerações do presente e do
futuro.
O
Museu Municipal Leonel Trindade pretende ser uma instituição ativa na procura,
recolha, documentação e preservação da História de Torres Vedras, bem como no
registo e difusão do seu património e memórias. Este objetivo é alcançado na
exposição permanente do Museu e em exposições temporárias, a organizar em
sintonia com outras atividades.»[9]
Este Museu integra-se
na Rede Portuguesa de Museus e na Rota dos Museus do Oeste em cujos sites os textos descritivos são
semelhantes ao que vimos atrás, com a particularidade de um deles ser
expressamente avalizado pela Direcção Geral do Património Cultural[10].
Sublinhamos este ponto por nos parecer significativo de uma certa forma de
(des) informar o público eventualmente interessado em saber, via internet, o que pode encontrar num museu
como o Museu Municipal Leonel Trindade.[11]
De
facto, entre as aliciantes descrições que lemos e a realidade que observamos
vai a considerável distância que, num deserto, separa a miragem da tortura da
sede - o que só uma visita ao museu pode comprovar. Como já atrás dissemos, o
riquíssimo espólio arqueológico está guardado nos reservados. Dele fazem parte
os vestígios de cerca de 50 arqueo-sítios do Calcolítico Estremenho – de que se
destaca um dos mais importantes do país, o Castro do Zambujal. Esta obliteração
acarreta outra, quanto a nós muito grave: o Castro do Zambujal espera, há
muitos anos, por uma intervenção que o preserve e dignifique. Para além da
desmatação anual, pouco ou nada se tem feito para a sua qualificação, estando
hoje à guarda de uma anciã que ali vive em precárias condições materiais. Perdeu-se
a articulação necessária entre o espólio, à guarda do Museu Municipal, e o seu
local de origem – o que impossibilita a leitura correcta do Castro e impede
sucessivas gerações de estudantes de contactarem com o mais importante vestígio
pré-histórico do concelho e um dos mais importantes do país.
Mas
não é só o espólio arqueológico que está invisível. Onde estão as «numerosas colecções de azulejaria», por
exemplo? Talvez o texto descritivo queira referir-se aos magníficos painéis de
azulejo atribuídos ao Mestre PMP, que forram as paredes do claustro que
pertence ao edifício onde se situa o museu – e em alarmante estado de
degradação, diga-se. Mas, onde estão as demais? E onde estão as «colecções de cerâmica, faiança e porcelana»?
Ainda há pouco lá estivemos e nada vimos. E a numismática? Invisível, também.
De «uma das maiores colecções portuguesas
de cabeceiras de sepultura medievais»[12]
vimos cerca de uma dúzia, num recanto do Museu, sem qualquer enquadramento
didáctico-expositivo.
Alguém
nos disse, no Museu, que «a organização
dos espaços do museu, em alas independentes, favorece a apresentação de
exposições de diferentes temáticas», mas podemos interrogar-nos se a melhor
forma de organizar um museu será a justaposição de espaços com conteúdos tão
diferentes como a Guerra Peninsular, a pintura dos primitivos portugueses ou as cabeceiras de sepultura medievais sem
que se perceba qual é a lógica sequencial.
Por
outro lado, a direcção do museu decidiu há alguns anos reservar cerca de um
terço do espaço expositivo disponível para exposições temporárias – de que é
exemplo a apresentação «Dinossauros que
viveram na nossa terra», iniciada em Novembro de 2012 e que irá até
Setembro do corrente ano. Respeitando, embora, a opção dos dirigentes e não
pondo em causa a validade e qualidade destas exposições, consideramos inadequada
a sua inclusão num Museu Municipal com as características do de Torres Vedras
pois ela faz-se à custa do espaço que, quanto a nós, deveria estar reservado à
exposição permanente. Exposições temporárias são necessárias e devem fazer
parte do programa expositivo de um museu contemporâneo – desde que haja espaço para elas e se articulem com a exposição
permanente. O que acontece presentemente no MMLT é que as exposições
temporárias anulam, ou pelo menos, menorizam, o rico espólio do museu – o qual,
como vimos, continua a ser publicitado como se estivesse plenamente disponível
ao público. A lógica museográfica observável no MMLT é a ocupação desgarrada de
espaços, sem uma narrativa explicativa, numa base casuística que é, na prática,
a negação do discurso oficial divulgado na internet.
Notemos,
a propósito, que a questão da possível desadequação dos conteúdos expostos à
descrição oficial a que vimos fazendo referência não tem resposta consensual
por parte de alguns responsáveis com quem contactámos. Bem sabemos que a
museologia é hoje uma área fluida onde são difíceis os consensos por parte dos
decisores como lembra Mário Moutinho:
«Como
eram tranquilos os tempos em que sabíamos o que era Museu e o que não era. (…) Eram
museus tranquilos, sem problemas que não fossem os de guardar, conservar e documentar.
Quando narrativa existia, ela era sustentada no óbvio e no discurso da
ideologia oficial.»[13]
Contudo, julgamos que
as insuficiências do MMLT não se devem a uma natural divergência de concepções
mas a causas mais profundas e de carácter estrutural que analisaremos mais
adiante.
Por
ora, depois das referências críticas que apresentámos, é justo salientar que o
MMLT tem aspectos de funcionamento que consideramos positivos. É o caso dos
serviços prestados à comunidade local ou aos visitantes: visitas guiadas ao
próprio Museu, ao centro histórico da cidade, aos monumentos ou até ao restante
concelho; serviço educativo destinado sobretudo à população escolar; e a
interacção com associações não
lucrativas ou entidades privadas em eventos como as Jornadas Europeias do Património, o Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, dias festivos locais,
etc. Já a biblioteca especializada, se é verdade que está disponível para
consultas com o apoio prestável dos funcionários e técnicos, pouco a pouco
foi-se transformando numa arrecadação poeirenta em que os livros convivem com
trastes vários por ali empilhados, à falta de outro lugar onde se arrumem.
No entanto, a análise
ao funcionamento do MMLT é apenas uma parte da oferta museológica em Torres
Vedras. Impõe-se uma referência mais geral à política autárquica que tem sido
seguida neste domínio[14].
De facto, o MMLT é o núcleo forte dessa oferta mas, paralelamente, têm vindo a
público notícias de projectos museológicos que se caracterizam pela forma
errática como se apresentam. Sejam hipóteses teóricas, sejam ante-projectos com
desenhos já feitos e apresentados publicamente, eles têm surgido sem qualquer preocupação
em discutir com a comunidade local a sua pertinência e oportunidade.
É o caso do Centro Interpretativo das Linhas de Torres
Vedras que apareceu há cerca de quatro anos como a grande e revolucionária ideia
que lançaria Torres Vedras no mapa dos grandes edifícios museográficos, na
linha de um Guggenheim de Bilbao[15] –
os arquitectos do ante-projecto até ganharam um prémio internacional… - numa
proposta que nunca foi discutida com ninguém, nem sequer com a Comissão Executiva das Comemorações do
Bicentenário das Linhas de Torres Vedras, da qual fizemos parte[16].
Tal projecto não foi avante – pelo evidente gigantismo e desadequação ao meio –
e aparece substituído agora por um Centro de Acolhimento aos visitantes do
Forte de S. Vicente, confinado ao espaço exíguo de uma antiga capela. Está,
neste momento, em fase de montagem e é, mais uma vez, um equipamento de
características museológicas feito sem a
participação cooperativa da comunidade local.
Outro
exemplo são os futuros Centro de Artes do
Carnaval (CAC) e Museu Joaquim
Agostinho (MJA). A imprensa local tem publicado regularmente notícias,
embora vagas, sobre a existência destes projectos mas a população torriense
nada sabe de concreto sobre eles.
Não
querendo fazer juízos de valor sobre estes aspectos da realidade museológica de
Torres Vedras, limitamo-nos a verificar que eles traduzem um notório
afastamento do espírito da Lei-quadro dos
Museus Portugueses, nomeadamente os que se explicitam no Artº 2º (Princípios da política museológica) e no
Artº 47º (Estruturas associativas e
voluntariado). Fazendo nós parte da Direcção da Associação para a Defesa e
Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras, sabemos que nunca esta foi
chamada para se pronunciar sobre o património musealizável ou, sequer, o
musealizado.
Justifica-se
uma outra perspectiva de análise. O executivo camarário torriense é
partidariamente monolítico com maioria absoluta há vários mandatos. Sem
entrarmos em considerações de carácter partidário, aqui desajustadas, procurámos
nos Programas Eleitorais, apresentados em 2009 e 2013 pela mesma equipa
candidata ao órgão executivo e maioritariamente sufragados, as linhas
orientadoras quanto à política museológica do concelho.
Veja-se o que se
projectava em 2009[17]:
«Construção
de um novo discurso para o Museu
Municipal Leonel Trindade; criação do Centro
de Interpretação das Linhas de Torres, cujo projecto de construção no Monte
da Forca se encontra em execução e queremos efectivar; criação do Centro de Artes do Carnaval e do Centro de Interpretação do Castro do
Zambujal, cujo projecto e concurso de ideias, respectivamente, queremos
adjudicar; construção de um centro
museológico interactivo, especialmente dirigido aos mais jovens, onde,
através da experimentação dos fenómenos mecânicos e químicos, se remeta para o
ciclo da uva ao vinho, o MUVVI – Museu da Vinha e do Vinho.» (negritos no
original)
Em 2013 propunha-se:
«A
qualificação do Museu Municipal Leonel
Trindade, a elaboração de um projecto para o Centro de Interpretação do Castro do Zambujal, a valorização das Linhas de Torres Vedras através da
criação de um centro de acolhimento ao visitante e de uma Feira Oitocentista
anual e de projecção nacional, assim como a finalização do projecto do Centro de Artes do Carnaval, são
desígnios prioritários para este mandato.
Tudo
faremos para que se venha a materializar a Casa-Museu
Joaquim Agostinho, a instalar no antigo refeitório da Casa Hipólito,
preservando-se um património de referência e a memória de um torriense único.»[18](negrito
no original )
A
leitura comparada destes dois textos evidencia a falta de uma linha orientadora
perceptível pelos cidadãos e o carácter
casuístico das propostas. Veja-se a inclusão inusitada de uma Casa-Museu, «a instalar no antigo refeitório da Casa
Hipólito», uma ideia sem qualquer consistência conceptual.[19]
Por outro lado a
referência ao Centro de Interpretação do
Castro do Zambujal aparece sem articulação com a realidade. Em 2009
falava-se em «concurso de ideias» e
em 2013 em «elaboração de um projecto».
Ora, o processo sobre esta obra arrasta-se desde há mais de vinte anos. Projectos,
já houve três pelo menos, em parceria com o antigo IGESPAR mas o processo está
parado há vários anos sem que saibamos a razão.
Vejam-se igualmente,
nos programas de candidatura às eleições autárquicas, as referências ao Museu
Municipal. Enquanto em 2009 se falava de «construção
de um novo discurso», em 2013 apontava-se para «a qualificação». Um e outro poderiam ser sinónimos e foi isso que
tentámos esclarecer. Trata-se de uma proposta elaborada por técnicos de gabinete
em que se fala de uma «reprogramação do
museu» sem que nos seja explicado em que é que ela consiste. Há uma memória
descritiva que acompanha as plantas com as alterações previstas para o
edifício, percebe-se que este será ampliado e adaptado a uma moderna concepção
museológica mas, para além de generalidades teóricas, nada é dito sobre a «construção de um novo discurso» ou de «uma nova narrativa».
UM
FUTURO DE POSSIBILIDADES
Na
nossa perspectiva, o panorama actual da oferta museológica na cidade de Torres
Vedras padece de algumas anomalias de base. A primeira é, por um lado, a desarticulação
na resposta às limitações flagrantes do espaço museológico central que é o
MMLT, e por outro, às solicitações de
novidade que têm surgido no decorrer da evolução natural da cidade,
resultantes da intensificação das práticas culturais. Dito de outro modo: à
necessidade de repensar o papel do MMLT dentro das limitações de que padece -
espaço físico e em degradação, bem como falta de recursos financeiros para
obras de remodelação – junta-se a de reflectir sobre a criação de espaços
museológicos que respondam a novas necessidades sociais e culturais próprias de
uma cidade de média dimensão.
A
segunda anomalia consiste na falta de um fio condutor ou de uma concepção
prévia que oriente os responsáveis autárquicos na procura de soluções para os
problemas acima enunciados.
Face ao que fica dito,
cremos que qualquer proposta que possamos fazer deve radicar numa visão prévia
do que pode e deve ser um programa museológico coerente e bem articulado. Mais
do que propor soluções, importa definir o modo como elas são pensadas, dando
primazia ao processo sobre o produto.
Como
condição prévia de enunciação lembramos que um museu – e as práticas
museológicas associadas – fazem parte do universo da chamada cultura e é assim que são arrumados nos programas eleitorais como
os que referimos há pouco. Talvez não possa ser de outro modo dada a
abrangência do conceito onde parecem caber todas as manifestações da vida
humana. Parece-nos produtivo aceitar uma definição proveniente da antropologia
cultural que entende a «cultura como
conjunto de sistemas de comunicação que integram e adaptam o homem à sociedade»,
com a adição da formulação segundo a qual «se
a cultura é tudo o que o Homem acrescenta à natureza, o facto é que os homens
não acrescentam coisas à Natureza da mesma maneira(…)»[20] -
daí a diversidade cultural de grupos, de povos ou de sociedades. A definição
proposta parece atraentemente consensual mas só o é enquanto não a aprofundamos
ou não a vemos como problema[21] -
pois, olhada de um ponto de vista crítico, a cultura surge como «construção e artefacto histórico»[22].
Esta precisão conduz o conceito para o domínio do conjuntural retirando-lhe a
carga essencialista com que muitas vezes surge e que mais não é do que a forma
de usar a Cultura como instrumento de domínio, de poder. – começando, desde logo, por grafá-la com maiúscula…
João Teixeira Lopes[23]
enumera seis dimensões fundamentais observáveis no uso instrumentalizador da
cultura: concepção descendente da
transmissão cultural (que desce dos especialistas
iluminados até às massas rasteiras e
ignaras); paternalista ( que se propõe «elevar o nível cultural das massas», vistas como «consumidoras mais ou menos passivas e não
como receptoras activas»); hierarquizada
(«baseada na tricotomia cultura erudita –
a Cultura - /cultura de massas / cultura popular»); arbitrária (a partir de uma escolha determinada, em detrimento da
diversidade); essencialista (erigindo
as audiências não como públicos da
cultura mas como povo ou nação, abastracções que justificam o que
se quiser e negam a pluralidade dos destinatários); concepção liquidatária do indivíduo que não reconhece ao
destinatário da política cultural o direito a convergir ou divergir, a optar pelos sentidos múltiplos em vez do sentido
único.
Logo adiante J. T.
Lopes assinala as «profundas limitações
desta majestática política cultural», contrapondo o contributo decisivo de
autores como Pierre Bourdieu que, a partir da concepção de cultura como sistema
de símbolos que expressam a infinita multiplicidade dos indivíduos e das suas
formas de se relacionarem, aponta para a «conclusão
de que a cultura não é apenas um bem de consumo, mas também um espaço para que
os cidadãos possam formar a sua própria cultura». Tal entendimento permite
uma «mudança de paradigma» em que «o consumo cultural dá lugar à participação
cultural».[24]
É nesta perspectiva que
nos situamos, assumindo-nos como fazendo parte dos «públicos dominantes» mas também dos «contra-públicos» de que fala J. T. Lopes [25],
na consciência de que nos não compete esperar passivamente pela definição de
políticas culturais nas quais se integrem aspectos particulares como o das
escolhas museológicas mas procurar, pelo menos, intervir na sua discussão.
No que às práticas
museológicas diz respeito importa ter em conta muitas das propostas da chamada nova museologia que, desde a década de 60 do século passado,
alteraram profundamente o panorama museológico tanto internacional como
nacional. Desde a mesa redonda em
Santiago do Chile, passando pela reunião no Québec e, pouco depois, a do México,
um novo paradigma se foi afirmando, no qual o museu como «local de culto e repositório do prestígio da sociedade dominante»[26]
foi sendo paulatinamente substituído por um espaço público de características
diametralmente opostas. Para a questão central que vimos tratando consideramos
muito significativas algumas das asserções da chamada Declaratória de Oaxtepec (México) de 18 de Outubro de 1984:
«O museu
tradicional produz-se num edifício, com uma colecção e para um público
determinado. Trata-se agora de ultrapassar estes princípios substituindo-os por
um território, um património integrado e uma comunidade participativa. (…)
A
participação comunitária evita as dificuldades de comunicação, características
do monólogo museográfico empreendido pelos especialistas, e reflecte as tradições
e a memória colectivas, colocando-as ao lado do conhecimento científico.»[27]
É esta dimensão «essencialmente reflexiva e crítica»[28]
da nova museologia que convocamos
para a necessária renovação das práticas museológicas em Torres Vedras. Partindo
da assunção decisiva do conceito de democracia
cultural[29],
que pressupõe o abandono de métodos autoritários
e majestáticos na definição de prioridades, defendemos que se deve
privilegiar a participação da população interessada através de mecanismos de
encontro e reflexão – porque não, entre outras iniciativas, a organização de
umas Jornadas Museológicas abertas e
motivadoras? – através dos quais se debatam as grandes linhas de orientação da
política museológica local. Como renovar o Museu Municipal Leonel Trindade? Como
articular uma estrutura central (MMLT) com os
núcleos museológicos dispersos pelo território concelhio que têm vindo a
ser propostos? Que prioridades para as hipóteses em presença? Que políticas
culturais garantir através destes equipamentos? Como encorajar e incorporar a
participação comunitária – seja individual, seja através de estruturas
organizacionais como as escolas e as associações? Como abordar a questão da
formação de públicos?
No fundo, não propomos
nada de novo. Apenas o cumprimento integral dos preceitos constantes da Lei Quadro
dos Museus Portugueses – já atrás referida - no que respeita à participação dos
cidadãos. Que certos poderes estabelecidos o não entendam e pratiquem, é uma
realidade com que nos vimos defrontando desde há muito. Mas acreditamos que um
novo tempo chegará. Como alguém escreveu, no contexto de um Encontro sobre
Património, significativamente intitulado «Património
e Paixões Identitárias»: «Le temps
n’est pas encore venu d’un État régulateur, arbitre des identités au sein de
l’unité. Le temps de la sagesse.»[30]
[ NOTA: Dado que foram facultadas em contexto de trabalho académico, foram retiradas deste texto algumas referências a pessoas que, a nosso pedido, nos deram informações e emitiram opiniões pessoais. Agradecemos a sua prestimosa colaboração. A ausência desses elementos em nada colide com o conteúdo essencial do texto.]
Torres Vedras,
22 de Julho de 2014
Joaquim Moedas
Duarte
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Casas-Museu
em Portugal - blogue [Em linha][Consult. 19 Julho
2014]. Disponível em: http://casas-museu-em-portugal.blogspot.pt/
Declaratória
de Oaxtepec [Em linha]. [Consult. 20 Julho 2014].
Disponível em: http://www.minom-icom.net/_old/signud/DOC%20PDF/198403404.pdf
DUARTE, Alice – Nova Museologia: os pontapés de saída de
uma abordagem ainda inovadora. [Em linha].Revista
Museologia e Património, vol.6, nº1, 2013, pp.99-117.[Consult. 20 Julho
2014]. Disponível em: http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/viewFile/248/239
MATOS, Venerando de
- Vedrografias
[Em linha] Blogue sobre História Local de Torres Vedras. [Consult. 17 Julho
2014]. Disponível em: http://vedrografias2.blogspot.pt/2009/06/no-80-aniversario-do-museu-municipal_21.html
MOUTINHO, Mário - Mário
Moutinho – A memória também está em crise. [Em linha] In: MUSEUS EM REDE – Boletim da Rede Portuguesa de Museus, nº 38, Janº
de 2011. [Consult. 18 Julho 2014]. Disponível em: http://www.patrimoniocultural.pt/static/data/museus_e_monumentos/boletins_rpm/rpm-boletim_n38.pdf [Consult. 21 Julho 2014]
http://www.arquitectura.pt/forum/topic/11355-torres-vedras-centro-interpretativo-das-linhas-de-torres-vedras-lema-barros-castelo-branco/ [Consult. 21 Julho 2014]
[1]
Cf. Venerando de Matos - Vedrografias [Em linha] Blogue sobre
História Local de Torres Vedras. [Consult. 17 Julho 2014]. Disponível em: http://vedrografias2.blogspot.pt/2009/06/no-80-aniversario-do-museu-municipal_21.html
[2]
Rafael Salinas Calado – Torres Vedras e o seu Museu Municipal. In: Lisboa: Boletim da Junta de Província da Estremadura,
IIª Série, nº 16, 1947, pp. 365-367.
[3]
Cf. Paulo Oliveira Ramos – Breve história do museu em Portugal. In: Iniciação à museologia. Coord. Maria Beatriz
Rocha-Trindade. Lisboa: Universidade Aberta, 1993 , p.26.
[4]
Rafael Salinas Calado - Torres Vedras e o seu Museu…, p.366.
[5]
Trata-se da Lei nº 47/2004, de 19 de Agosto.
[6]
Cf. Isabel de Luna – Públicos do museu
municipal Leonel Trindade: tratamento e análise de fontes administrativas.
Lisboa: Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, [Edição PDF
facultada pela autora]. Mestrado de Museologia: Conteúdos Expositivos,
Orientação do Prof. José Soares Neves, 2009, p.3.
[7] Caso da
Exposição Zambujal: vida, guerra e
comércio no 3º milénio. (Anexo1)
[8]
Cf. Anexo 3: «Esporadicamente, registado simultaneamente na categoria de “Museu
Misto:Arqueologia, Etnografia, Numismática, Pintura e Artes Decorativas”.
[9]
Cf. sítio da Câmara Municipal de Torres Vedras [Em linha]. [Consult. 20 Julho
2014]. Disponível em: http://www.cm-tvedras.pt/cultura/museu-municipal/enquadramento-museu/
[10]
No final do texto descritivo do Museu Municipal Leonel Trindade de Torres
Vedras vem esta nota: «Conteúdos da responsabilidade do museu e editados pela
DGPC»
[11]
Doravante também designado por MMLT.
[12] Cf.
nota 9 supra.
[13] Mário Moutinho – A memória também
está em crise. [Em linha] In: MUSEUS EM
REDE – Boletim da Rede Portuguesa de Museus, nº 38, Janº de 2011. [Consult.
18 Julho 2014]. Disponível em: http://www.patrimoniocultural.pt/static/data/museus_e_monumentos/boletins_rpm/rpm-boletim_n38.pdf
[14]
Na cidade de Torres Vedras não há espaços museológicos privados. O que existe e
os que se prevê que venham a ser criados são de iniciativa autárquica.
[15]
Veja-se [Em linha], informação disponível aqui: http://www.arquitectura.pt/forum/topic/11355-torres-vedras-centro-interpretativo-das-linhas-de-torres-vedras-lema-barros-castelo-branco/
[16]
Ver o endereço [Em linha], disponível em: http://www.linhasdetorresvedras.com/comissao/executiva
[17]
Cf. jornal PS-Eleições Autárquicas 2009,
sem ficha técnica de edição, nosso arquivo pessoal.
[18]
Cf. PS – Jornal Eleições Autárquicas 2013,
sem ficha técnica de edição, nosso arquivo pessoal.
[19]
Cf. o blogue Casas-Museu em Portugal[Em
linha][Consult. 19 Julho 2014]. Disponível em : http://casas-museu-em-portugal.blogspot.pt/ ; Cf. igualmente a opinião de Isabel Luna, Anexo 3.
[20]
Cf. Augusto Mesquitela Lima (et al.) – Introdução
à antropologia cultural. Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 39.
[21]
Cf. José A. Bragança de Miranda – A cultura como problema. In: Teoria da cultura. Lisboa: Edições séc. XXI,
2002, pp. 58-69.
[22]
Idem, ibidem.
[23]
Cf. João Teixeira Lopes – Da
democratização à democracia cultural, uma reflexão sobre políticas culturais e
espaço público. Porto: Profedições, Ldª / jornal A Página, 2007, pp. 80-81.
[24] João
Teixeira Lopes – Da democratização à
democracia…, p. 83.
[25] Idem, p. 106.
[26] Cf.
Maria Madalena Cordovil – Novos museus, novos perfis profissionais. In: Cadernos de museologia, nº 1 – 1993, pp.
21-35.
[27]
Declaratória de Oaxtepec [Em linha]. [Consult. 20 Julho 2014]. Disponível em: http://www.minom-icom.net/_old/signud/DOC%20PDF/198403404.pdf
[28] Cf.
Alice Duarte – Nova Museologia: os pontapés de saída de uma abordagem ainda
inovadora. [Em linha].Revista Museologia
e Património, vol.6, nº1, 2013, pp.99-117.[Consult. 20 Julho 2014].
Disponível em: http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/viewFile/248/239
[29] João
Teixeira Lopes – Da democratização à
democracia…, p. 96.
[30]
Jean-Michel Leniaud – L’État, les sociétés savantes et les associations de
défense du patrimoine: l’exception française. In: Patrimoine et passions identitaires, Actes des entretiens du patrimoine,
Paris, 6, 7 et 8 janvier 1997, p. 154.
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