segunda-feira, 25 de novembro de 2013

ARTE TOTAL PARA UMA VISÃO GLOBAL DA VIDA






A expressão de Oliveira Martins que se refere ao reinado de D. João V como “entusiasmo
desvairado dessa ópera ao divino”, prefigura, avant la lettre, a perspectiva de análise que hoje
designamos por “arte total”. De facto, que outra manifestação artística tem um carácter tão global
como a ópera? Ela é um poderoso estimulante sensorial, através dos sons – canto e música -, e
das imagens – cenografia e salas de espectáculo. Porém, a metáfora do historiador oitocentista
tem um alcance mais vasto pois ela aplica-se à envolvente social que rodeou a corte do rei
magnânimo: verdadeira sociedade do espectáculo em que, desde o cerimonial das procissões aos
solenes Te Deum, da “montanha de pedra” de Mafra aos banquetes de inúmeros serviços, da
Capela de S. João Baptista de S. Roque às igrejas paroquiais de todo o país, tudo concorria para
produzir o efeito de manifestação do poder régio através do luxo e do espavento.


O guião deste espectáculo tem dois aspectos complementares: a envolvência religiosa
determinada pelas disposições tridentinas e a afirmação do poder monárquico absoluto. São eles
que orientam as práticas políticas e as opções artísticas, só possíveis com a remessa maciça de
ouro e diamantes do Brasil.
Quanto às opções artísticas, usemos então o conceito de “arte total”, aplicado à época do
Barroco em Portugal. Vitor Serrão dá-lhe conteúdo mais preciso no sumário de um dos seus
cursos, quando fala em «discurso imagético e espaço total do Barroco» (Teoria da História da
Arte, 2008-2009, Fac. Letras de Lisboa), ou em «totalidade decorativa», no texto sobre a capela
de Nossa Senhora dos Prazeres de Beja.

Por sua vez, Luís de Moura Sobral, analisando o fenómeno que não é exclusivamente
português - embora tenha entre nós relevância especial, com a inclusão da talha dourada e de
painéis historiados de azulejos – refere «uma tendência para a concepção globalizante e unitária
de um certo número de espaços construídos».
Este conceito de “obra de arte total” significa a integração e a articulação num determinado
espaço – igreja, capela, ermida - de expressões artísticas diversas como a talha dourada, a pintura,
a azulejaria, a escultura, os embrechados de mármore ou a ourivesaria e corresponde a uma
concepção de prática religiosa que se firmava nos seguintes pontos:

1. Afirmação do catolicismo romano centralizado no primado apostólico do Papado,
entendido como instituição de autoridade universal.

2. Identificação do espaço litúrgico como alegoria do Paraíso, hierarquicamente
escalonado, em que coexistem: os mortos, em sepulcros térreos ou arcas tumulares; os
crentes, no corpo da Igreja, agrupados entre teias de madeira que os separam da CapelaMór
e das Capelas Laterais, onde se celebram as Missas; as imagens dos Santos, em plano intermédio nos altares ou nos painéis de azulejo, como mediadoras entre a Terra e o Céu; mais acima, o Cristo na Cruz ou já Ressuscitado e o Sacrário, onde se guardam as hóstias consagradas; e, no alto do trono da Capela-Mór, para onde convergem todos os olhares, a Custódia com a Sagrada Partícula, Cristo vivo, rodeado do brilho da talha dourada resplandecendo à luz das velas.

3. Afirmação do Clero, mediador entre os crentes e a Corte Celeste – representada em tectos profusamente decorados – ricamente paramentado, expressando-se em Latim, língua universal da Igreja, mas desconhecida da esmagadora maioria dos crentes, reduzidos a figurantes de uma Liturgia complexa, regida pela lei canónica para assegurar práticas de uso universal.

4. Estimulação dos sentidos de modo a induzir a adesão mística dos crentes: a visão, através de imagens profusamente distribuídas por vários suportes e materiais; o olfacto, com o odor intenso das velas e do incenso; a audição, através da música dos órgãos, do canto polifónico e dos sermões pregados em púlpitos dominantes; o tacto, pelo toque nas imagens e a osculação das relíquias; o gosto, enfim, com a deglutição da Hóstia consagrada, participação simbólica na última Ceia de Cristo.

Os templos transformam-se, assim, em cenários da representação teatral, pontuados por um calendário litúrgico anual com os pontos fortes do Natal e da Pascoa, e a evocação diária dos santos, garantida por uma Hagiografia amplamente estudada e divulgada nos séculos XVII e XVIII.
A profusão de lugares de culto, onde este programa religioso se expressou das mais diversas formas, é expressão de mecenatos de variada origem: não só as dotações régias, mas também de bispos, de membros da Nobreza e de ricas Irmandades, Confrarias e Misericórdias. De norte a sul do país, multiplicam-se as capelas no interior das igrejas setecentistas ou as Ermidas e Santuários de culto.

A Historia de Arte tem estudado este manancial histórico-artístico, através de equipas multidisciplinares cada vez mais complexas e que aliam, à análise formal, a leitura iconográfica dos conjuntos destes espaços, na procura da narrativa religiosa característica de cada um deles. Um exemplo brilhante é o estudo da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres em Beja que revela um lugar surpreendentemente ilustrativo do conceito de “totalidade decorativa” e que Vitor Serrão, um dos seus autores, considerou «um exemplo ímpar da cenografia barroca de arte total».

A “ópera ao divino” com que Oliveira Martins caricaturizou o reinado do rei magnânimo é, afinal, a expressão global de uma mundividência marcada pela Fé católica e que percorre toda a sociedade setecentista.

..............................................
APOIO BIBLIOGRÁFICO E DE WEBGRAFIA

Para além das leituras recomendadas e obrigatórias, indicadas na página da Unidade Curricular PATRIMÓNIO INTEGRADO, UNIVERSIDADE ABERTA [em linha], < URL http://elearning.uab.pt/course/view.php?id=333>, foram consultadas as obras:

MARTINS, Oliveira – História de Portugal, 16ª ed, Guimarães Editores, Lisboa, 1972.

MOURA, Carlos - "O sentido do Barroco na arte seiscentista e do início do século XVIII", in
História da Arte em Portugal, Edições Alfa, Lisboa, 1989.

PEREIRA, José Costa – “Vectores culturais portugueses de seiscentos e setecentos”, in História
de Portugal, vol. 5, Publicações Alfa, Lisboa, 1983.

PEREIRA, Paulo – Arte portuguesa, História essencial, Temas e debates / Círculo de Leitores,
Maia, 2011.

SERRÃO, Vítor – História da Arte em Portugal - O barroco, Editorial Presença, Lisboa, 2003.

SERRÃO, Vitor, LAMEIRA Francisco, FALCÃO, José António, A igreja de Nossa Senhora
dos Prazeres em Beja – Arte e história de um espaço barroco (1672-1698), Alêtheia
editores, Lisboa, 2007.

VELOTTI, Stefano – “Barroco”, in Dicionário de estética, dir. CRACHIA, Gianni e
D’ANGELO, Paolo, Edições 70, Lisboa, 2003.

Nenhum comentário:

Postar um comentário