Olá pai
Separámo-nos ontem,
amuados. Hoje, nem pensar falar contigo pois sei que te vais exaltar outra vez.
Ainda tenho nos ouvidos a tua fúria: “Não contes comigo para te pagar um curso
que te vai levar directamente para o desemprego! Não contes comigo!!”.
Acredito que
queres o meu bem, tens sido um pai muito fixe, mas acho que ainda não aceitaste
a ideia de que eu tenho 18 anos. Já tenho direito a votar, ok?
Então pensei
em escrever-te uma carta. Se calhar vais estranhar. Acho que nunca te escrevi.
Só bilhetes de recados. Espero que consigas ler com calma.
Porque é que
eu quero ser arqueólogo? Ontem fizeste-me essa pergunta, a gozar, e disseste
que eu me queria armar em Indiana Jones. Estás enganado, pai. Vou tentar
explicar-te a minha ideia, pode ser que te consiga fazer mudar de opinião.
Lembras-te do
dr. Monteiro, meu professor de História no 11º ano, de quem eu falava muito? Numa
aula levou-nos ao Museu Municipal para vermos a exposição sobre o Castro do
Zambujal. Falámos disso cá em casa, e tu a dizer que aquilo eram só pedras
velhas. Eu mostrei-me muito curioso e o professor, um dia, fez-me uma surpresa
e levou-me ao Castro, quando lá estavam a fazer escavações. Vi lá muita malta
nova a trabalhar e uns arqueólogos alemães que dirigiam os trabalhos. Fiquei
fascinado. Na aula seguinte o professor emprestou-me um livro, Introdução à Arqueologia, de Gordon
Childe. Gostei do livro e depois comecei a ler outros na Biblioteca Municipal,
sobre Arqueologia e também sobre assuntos relacionados com o Património, uma
coisa tem a ver com a outra.
Deves-te
lembrar que, no ano seguinte, como havia outra campanha de escavações, deixaste-me
ir para o Zambujal, nas férias, e até ganhei umas massas.
Foram estas
coisas todas que me influenciaram a querer ir para Arqueologia. Informei-me e vi
que há Licenciaturas e, até, Mestrados, em várias Universidades. Pelo menos em
6, desde a Universidade do Minho, passando pela do Porto, Coimbra, Nova de
Lisboa e Évora. Se abriram esses cursos, é porque há hipóteses de trabalho –
pensei eu. Andei a pesquisar na net e encontrei muita coisa.
Tu ontem
disseste que a arqueologia não servia para nada, só para perder tempo, e que
não dava dinheiro. Desculpa lá, pai, mas estás enganado. Sabes o que disse uma
professora da Universidade do Minho na sessão solene dos 39 anos daquela
Universidade, no dia 20 de Fevereiro deste ano de 2013? Foi isto:
«Longe de ser
uma disciplina académica periférica que muitos consideram pouco ou nada
contribuir para a resolução dos graves problemas que nos afrontam, a
arqueologia é hoje um domínio científico e uma actividade económica com
relevância social, geradora de conhecimento útil e de serviços fundamentais na
sociedade do conhecimento, muito embora careça de ser compreendida em toda a
sua complexidade, enquanto serviço intensivo de conhecimento com relevância no
sector das indústrias culturais e criativas, consideradas fundamentais pela
União Europeia no âmbito do Programa do Quadro Estratégico para 2020»
Havias de ler
o discurso todo, mostra o que é e para que serve a Arqueologia e como ela é
necessária à Sociedade. (1)
Em certa
altura ela fala no “tecido empresarial da arqueologia portuguesa” e eu tentei
saber mais coisas sobre o assunto. Descobri que há uma Associação dos
Arqueólogos Portugueses que tem 150 anos
de existência e que entregou ao Governo, em 11 de Março deste ano, um documento
em que faz um resumo dos avanços da actividade arqueológica no século XX.
Também indica algumas orientações para que essa actividade se desenvolva mais.
Por exemplo, logo a primeira coisa é:
«Que o Estado
deve cumprir os articulados da Convenção de Malta e a Lei de Bases do Património».
(2)
Fiquei com
curiosidade de saber o que eram aqueles documentos. Então é assim: A Convenção
de Malta é um documento para a protecção do património arqueológico, aprovado
em Janeiro de 1992 na cidade de La Valetta, pelos Estados membros do Conselho
da Europa e dos restantes Estados Partes na Convenção Cultural Europeia, e que
tem muitas indicações sobre o que os Estados devem fazer para que esse
património seja “fonte da memória colectiva europeia e instrumento de estudo
histórico e científico.” (Artigo 1º).
Tem 18
artigos, que explicam muito bem como a arqueologia tem uma importância cada vez
maior para o estudo do passado da humanidade. Fez-me lembrar o livro que o dr.
Monteiro me emprestou e que começava assim: «A arqueologia é uma forma de
história e não uma simples disciplina auxiliar.» (3)
A Assembleia
da República e o Presidente da República ratificaram esta Convenção em 1997.
Mas se a Associação dos Arqueólogos fala dela se calhar é porque não é
respeitada e o Governo tem de mudar a sua atitude e olhar mais pela Arqueologia.
Há muitos tratados e convenções internacionais, todos relacionados com o
Património e a Arqueologia, isto tudo eu vi num livro da Biblioteca. (4)
Até porque há
a tal Lei de Bases, que eu fui investigar: é a Lei nº 107/2001, de 8 de
Setembro. E sabes que ela tem uma parte que é dedicada apenas ao património
arqueológico? Começa no Artº 74 e vai até ao 79. Está lá a orientação toda,
para o Estado, para as autarquias e para as pessoas vulgares. E também diz que
«aos bens arqueológicos será aplicável o princípio da conservação pelo registo
científico» (Artº 75). E mais adiante determina que os trabalhos arqueológicos
serão dirigidos obrigatoriamente por arqueólogos, mediante autorização oficial.
Quer dizer, pai, que não é um tipo qualquer que se vai pôr a escavar coisas
antigas, só pessoas com habilitações para isso, os arqueólogos, que têm de ser
profissionais.
Também vi que
há uma Associação Profissional de Arqueólogos que procura juntar os
profissionais para que defendam os seus interesses. Têm um site na net (http://www.aparqueologos.org/) que
explica como é que eles se organizam.
Na minha
pesquisa de dados descobri também que o Decreto-Lei nº 270/99 de 15 de Julho
aprova o Regulamento dos Trabalhos Arqueológicos. Isso quer dizer que tem de
haver empresas que se dediquem a esses trabalhos. E há várias, que eu encontrei
na net, como podes ver:
Essas empresas
precisam de arqueólogos, com certeza. Além disso, há várias autarquias, a nível
concelhio, que têm gabinetes de arqueologia ou outros serviços relacionados. É
o caso, por exemplo, do Seixal, Setúbal, Braga e Porto, entre outras. Eu acho
que isto podem ser boas oportunidades de trabalho.
Tu ontem
dizias que estamos em crise. Isso é geral e o que eu sei, pai, é que as
perspectivas de trabalho não são boas em lado nenhum, por isso a arqueologia
também pode estar em crise, como li em diversos sítios. Sobretudo porque há
poucas obras públicas a fazer. Mas então, se há crise em todo o lado, eu acho
que é melhor fazer formação numa área do meu gosto e esperar que as coisas
melhorem. Ainda não há muitos anos os arqueólogos eram muito procurados pelas
empresas da especialidade e isto tem de mudar e acredito que mude para melhor.
Não quero
dar-te mais seca. Espero que penses nestas coisas que te disse e que tentes
compreender a minha opinião. Tenho sido bom estudante, tens de ter isso em
conta. E vou continuar a ser se me dedicar ao Curso de que eu gosto.
Um abraço do
teu filho
J.
………………………………………………………………………………………..
NOTAS:
(1) MARTINS, Maria Manuela, «Oração de Sapiência» na Sessão
Solene do XXXIX aniversário da Universidade do Minho, 20 – II – 2013, em linha,
[acedido em 15 – XI – 2013 http://umonline.uminho.pt/uploads/eventos/EV_6701/20130221524761242476.pdf
(2)
http://atribunadocarmo.wordpress.com/2013/03/14/a-associacao-dos-arqueologos-portugueses-e-o-
actual-enquadramento-institucional-da-arqueologia-em-portugal/ (em linha) [ acedido em 14 – XI – 2013 ]
(3)
CHILDE, V. Gordon,
Introdução à Arqueologia, tradução e
prefácio de Jorge Borges de Macedo, Publicações Europa-América, Colecção Saber
nº 48, Lisboa, 1961, 157 p.
(4)
LOPES, Flávio e
Miguel Brito Correia, Património
arquitectónico e arqueológico – cartas, recomendações e convenções
internacionais, Livros Horizonte, Lisboa, 20045, 351 p.
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