UM
JORNAL TORRIENSE NA DEFESA DO PATRIMÓNIO
–
DOIS CASOS EXEMPLARES
Joaquim Moedas Duarte
Trabalho no âmbito da Unidade Curricular
HISTÓRIA E TEORIA DO PATRIMÓNIO
A partir da descrição
de dois casos referenciados no semanário BADALADAS,
de Torres Vedras, propomo-nos evidenciar a importância da imprensa local para a
salvaguarda do património cultural de proximidade e, em complemento, registar
para memória futura dois exemplos de como uma comunidade pode intervir
eficazmente na salvaguarda de dois símbolos da sua identidade cultural. Tal
objectivo supõe o recurso à imprensa local como fonte histórica, na linha dos
vários contributos que têm sido desenvolvidos nessa área e que abordámos como
apoio inicial ao presente trabalho.[1]
O primeiro caso
refere-se à memória de um fontanário construído no século XVI, popularmente
conhecido por FONTE NOVA – em oposição à fonte
velha, denominada Chafariz dos Canos, do séc. XIV – demolido nos anos 60 do
séc. XX e substituído por uma réplica mandada construir pela Câmara Municipal cerca
de vinte anos depois. O segundo relata a inusitada demolição das ruínas do
Moinho do Gaio, uma referência paisagística dos arredores de Torres Vedras, que
originou uma onda de protestos e a decisão do Presidente da Câmara que, perante
o escândalo, ordenou a sua imediata reconstrução.
A
IMPRENSA LOCAL
Os meios de comunicação
escrita, sob a forma de imprensa local[2], são
um elemento importante para a coesão dos grupos humanos em que se inserem. Não
é por acaso que a publicação de um jornal é, quase sempre, uma das primeiras
iniciativas de qualquer grupo criado em volta de um projecto. Numa vila como
Torres Vedras – que só em 1979 foi elevada a cidade – a presença da imprensa
local é uma constante, desde 1885 até aos nossos dias. Numa breve abordagem
contámos 21 títulos – entre semanários, quinzenários, trimensais e mensais –
desde essa data inicial até 1935, com tempos de vida variáveis, mais ou menos
longos, sucedendo-se uns aos outros ao sabor das circunstâncias. Essa data, que
corresponde à afirmação do Estado Novo, de perfil político totalitário, também
marcou a mudança no campo da imprensa local com a restrição de novos títulos e
o espaçamento das edições. A partir daí até 2000 apenas se contam 8 títulos com
existência mais alargada – acima de 50 números publicados. Um deles, o BADALADAS[3], surgido
em 1948 como mensário ligado à Paróquia, foi o único que logrou chegar até à actualidade.
E foi nas páginas deste periódico - pouco depois tornado quinzenal e, em 1960,
semanal - que se instituiu um estilo de intervenção caracterizado pelo
pluralismo de opiniões, - sempre vigiado no tempo do Estado Novo – e a abertura
à diversidade de temas com incidência na área do património histórico e
monumental. Constitui hoje uma referência da imprensa regional pela longevidade
e tiragem – cerca de 12 000 exemplares. É sobre ele que incidiremos a
nossa atenção.
Este jornal tornou-se
um importante veículo de transmissão de notícias para as iniciativas de
carácter cultural. As elites intelectuais locais encontraram nele um espaço
privilegiado para a divulgação de estudos e investigações. Isso deve-se à
personalidade do seu fundador - e director durante muitos anos - o P. Joaquim
Maria de Sousa, homem aberto e dinâmico, devotado aos interesses regionalistas
e hábil no compromisso entre a ideologia dominante do Estado Novo e a abertura
a colaboradores desalinhados com ela.
O tema do Património
monumental foi dos mais frequentemente tratados desde o nascimento deste
jornal. Figuras como Eugénio Jalhay, Ricardo Belo, Cordeiro de Sousa ou Rafael
Salinas Calado (pai do futuro primeiro director do Museu nacional do Azulejo,
com o mesmo nome) colaboraram activa e regularmente nas páginas do Badaladas.
Será excessivo afirmar que isso contribuiu para um real aumento da
sensibilidade da generalidade da população para os problemas da preservação do
Património mas, indubitavelmente criou, entre as camadas mais esclarecidas, um
clima propício à reflexão sobre estes temas, o que viria a ter repercussões no
primeiro caso que vamos abordar.
A
FONTE NOVA OU UMA NOVA FONTE
Só por si, o tema do
abastecimento de água ao longo dos séculos, numa urbe como Torres Vedras, é um
vasto campo de estudo que incide sobre um dos mais candentes problemas da vida
quotidiana. A localização da vila junto ao rio Sizandro – generoso no Inverno, avaro
no Verão – permitia regas, lavagem de roupa, bebedouros de animais, força
motriz das azenhas e, até, tratamento das peles e couros na indústria artesanal
dos pelames. Porém, a água potável para consumo humano era mais difícil de
garantir. Havia poços em muitos logradouros de casas de habitação mas é sabido
que, neles, a água é facilmente contaminável. Por isso eram tão importantes os fontanários
com água aduzida a partir de nascentes naturais ou de minas que a iam buscar ao
bojo dos montes. A sua construção era cara, por causa dos materiais – pedra
aparelhada e argamassas resistentes – e da mão-de-obra, necessária para o
projecto e a edificação.
No século XVI Torres
Vedras era um pequeno burgo em volta do castelo, erguido “em çima dhua fremosa
mota” – como Fernão Lopes o descrevia na primeira parte da Crónica de D. João I. A seguir à Porta de Sant’Ana estendia-se a
cerca da gafaria de Santo André onde, por essa altura, se construía o novo
edifício do Convento da Graça. A seguir, um caminho saía para sul, em direcção
aos campos cultivados dos arredores e à estrada que levava a Lisboa. Foi à
beira dele que por essa época se edificou um novo fontanário, alimentado por um
pequeno aqueduto que trazia a água de uma encosta sobranceira. Chamaram-lhe Fonte Nova, por antinomia com a velha,
construída dois séculos antes, dentro de muralhas, junto à Porta da Corredoura,
o Chafariz dos Canos. Estes eram
equipamentos fundamentais pois abasteciam as populações e dessedentavam os
animais na partida ou na chegada de longas jornadas. Não se sabe quem os mandou
construir mas é natural que tenham sido da iniciativa do poder municipal ou,
mais provavelmente, da donatária da vila – a rainha de Portugal. É que Torres
Vedras foi, desde a primeira dinastia, dote das rainhas.[4]
A Fonte Nova era uma
construção simples e desataviada[5].
Diz Júlio Vieira que «a sua construção só oferece o interesse da antiguidade»[6],
pois o tanque era adossado a uma parede com ameias na qual estava «o brasão das
armas da vila com a data de 1529»[7].
Ao contrário do Chafariz dos Canos, localizado dentro da urbe, a Fonte Nova
ficava fora de portas, já bem longe. Só no séc. XX o perímetro urbano viria a
atingi-la, quando foi construído o novo Hospital da Misericórdia, que lhe ficou
fronteiro, era ela já uma ruína mal cuidada. Rapazes jogavam à bola no terreiro
vizinho[8] e
há muito que por ali não paravam animais de carga, substituídos por tractores e
camionetas. O canto do cisne da velha fonte ouvira-se nos finais do séc. XIX quandoum visionário sonhou com a exploração termal de uma nascente vizinha da FonteNova, à qual deu o mesmo nome. O caso teve foros de grande acontecimento, relatado
nas páginas da revista O Ocidente, de
5 de Junho de 1895.[9]
Diz a tradição local que, se as águas termais eram para serem bebidas, as águas
sanitárias das Termas provinham da vizinha Fonte Nova, transportadas em barris.
Mas esta foi uma iniciativa que poucos anos durou devido ao desequilíbrio
negativo entre receitas e despesas.
Anos rodaram e o velho
fontanário foi ficando esquecido, oculto por caniços e matagais. Até que, numa
sessão da Câmara Municipal de Torres Vedras, em 13 de Maio de 1954, «em face do parecer do arquitecto urbanista
Miguel Jacobety baseado no Plano de Urbanização, superiormente aprovado, foi
deliberado mandar demolir o chafariz
denominado Fonte Nova no sítio do mesmo nome, por o mesmo não ter sido
considerado monumento nacional, devendo a pedra de armas lá existente ser
apiada com os devidos cuidados e recolhida no Museu Municipal».[10]
Esta decisão terá passado despercebida. Só em Dezembro de 1957, num texto do BADALADAS intitulado “Restauro dos nossos monumentos”, o arquitecto
José Vitorino da Costa Bastos, depois de enumerar alguns monumentos de Torres
Vedras considerados em risco, lhe faz uma breve referência: “(…) a Fonte Nova, desaparecerá?”[11].
Esta interrogação significa que a Fonte ainda não havia sido demolida, o que é
confirmado por nova deliberação camarária, em Julho de 1962, na qual a Câmara aprovou
uma proposta do vereador João A. C. Pinto: « Proponho que se aceite o oferecimento do Senhor António Hipólito de, à
sua custa, mandar terraplanar o terreno que a Câmara adquiriu e que é parte da
Praça do Centro Cívico de Fonte Nova, com a condição de a Câmara mandar
proceder à demolição do Chafariz de Fonte Nova, no intuito de desafogar o
terreno destinado à Sede da Associação de Educação Física, devendo dar entrada
no Museu Municipal a pedra de armas que ali figura.»[12]
A partir daqui não
encontrámos mais referências à Fonte Nova em documentos oficiais. De concreto
sabemos que a sede da Associação de Educação Física foi iniciada em Outubro de 1969
e que a pedra de armas foi para o Museu Municipal mas não há registo de entrada
– uma prática usual naquela época em que o Museu era um repositório de peças
não inventariadas. Ficou a memória da Fonte, presente no topónimo de tradição
popular e nas tertúlias do Café Havaneza em que se lamentava o património
perdido – como ouvimos algumas vezes em conversa com Adão de Carvalho, homem
muito conhecido no meio por colecionar notícias de antiguidades.
Em 1979 nasceu a
Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras.
Respondia aos anseios de uma franja esclarecida da população torriense,
insatisfeita com a crescente influência dos promotores do betão na expansão
urbanística da urbe. Curiosamente, a sua primeira sede localizou-se na redacção
do jornal Badaladas cujo director – P. José Manuel da Silva,
sucessor do fundador P. Joaquim M. Sousa – foi um dos seus mais entusiastas
promotores. O passado do jornal, marcado pela preocupação patrimonialista, constituiu-se
como alicerce de um projecto associativo que se firmou na sociedade torriense.
Nos anos seguintes assistiu-se a um frequente afrontamento entre a Associação do
Património e alguns autarcas menos sensibilizados para a causa e mais lestos na
defesa do que consideravam o necessário desenvolvimento da nova cidade.
A
questão da Fonte Nova foi um das muitas que a recém-criada Associação trouxe ao
debate público. Em Maio de 1983, num Suplemento de quatro páginas do jornal Badaladas[13],
lançou a ideia da sua reconstrução com o texto intitulado «Vamos reconstruir a Fonte Nova?»:
«Era
uma fonte. Existia há quatro séculos. Deu de beber a muita gente e muito gado.
Há cerca de trinta anos não resistiu à visão ‘progressista’ dos senhores da
terra! A razão, não a abemos ao certo. Hoje, no seu lugar, estacionam veículos automóveis.
A
fonte, em si mesma, não era um monumento particularmente belo; mas só pelo
facto de ser ‘fonte’ e por ter aquela idade deveria ter sido respeitada. E, se
a sua função inicial tinha desaparecido, ela poderia prestar, ainda, um serviço
à cidade – valorizando com a sua presença pitoresca aquele lugar, outrora
arrabalde e hoje integrado na monótona malha urbana de Torres Vedras.
Naquele
tempo não se pensava assim. Será que hoje é diferente? Pelo menos alguns de nós
sabem quanto é importante preservar os testemunhos do passado, não só pelo seu
significado, como por serem elementos que valorizam e diferenciam o espaço onde
vivemos.
Por
isso lançámos o apelo para a sua reconstrução. Apelo a que deram já a sua
adesão centenas de torrienses conscientes, que assim querem reparar um ‘crime’
contra o seu património.»
Ao texto juntava-se um
esquisso desenhado sobre uma fotografia do lugar[14].
Exactamente um ano
depois, num artigo intitulado «Fonte Nova
vai ser reconstruída»[15] a
Associação do Património anunciava que a ideia fora perfilhada pelo Vereador da
Cultura da Câmara Municipal, que se comprometia a vincular a autarquia à
concretização do projecto. Um ano depois[16] a
Associação achou necessário prestar um esclarecimento à população pois havia
surgido alguma contestação à obra que entretanto se iniciara. Inserindo no
texto a foto do demolido fontanário e o desenho do projecto, o autor explicava
os constrangimentos entretanto surgidos. As novas edificações da zona impediam
a reconstrução no lugar exacto. Explanando as circunstâncias condicionadoras de
uma opção de fidelidade total à fonte destruída, o texto defendia uma concepção
flexível de reconstrução, com alterações formais que alguns consideravam muito
discutíveis – e bem visíveis na comparação das duas imagens. Mais adiante explicitava:
«Convém dizer que a suposta ‘fidelidade histórica’
na reconstituição de qualquer testemunho do passado, para além de um conceito
subjectivo, está sujeita a diversos factores, desde a sua especificidade como
objecto artístico às condicionantes do seu envolvimento. Actualmente tem-se
optado por deixar bem expresso ‘o tempo’ dessa reconstrução (através dos
materiais, de novas funções, de novas leituras) como atitude afinal mais
verdadeira que a simples imitação do antigo (Foi o caso recente da Casa dos
Bicos).»
E a finalizar:
«A obra agora em curso evocará, pelas semelhanças, a Fonte Nova quinhentista, mas não deixará de
expressar, pelas diferenças, que se
trata de uma ‘reconstrução’, não escamoteando o corte de três décadas na sua
existência.»
A obra conclui-se
alguns meses depois, apesar das críticas de alguns sectores mais renitentes. E
em Outubro de 1985 o jornal publicava um texto emotivo de Emílio Costa, pessoa
muito conhecida na terra e colaborador regular nas suas páginas, com o título «A nova ‘Fonte Nova’ – ligação ao recordar
duma juventude»[17].
Depois de uma evocação saudosa dos seus tempos de infância e juventude, saúda a
reconstrução e critica os que a contestaram, dizendo que nada fizeram quando a
fonte original fora destruída. Esta opinião resume, de certo modo, o sentimento
generalizado dos torrienses. A nova Fonte Nova passou a fazer parte do
mobiliário urbano da cidade, cumprindo a função evocadora e embelezadora com
que havia sido concebida. E é, também, um testemunho local significativo dos
problemas que, desde o século XIX, rodeiam a preservação do Património e de que
a velha controvérsia entre partidários de Ruskin ou de Violet Le Duc é a
expressão mais conhecida.
O jornal cumprira a sua
missão e os torrienses reviam-se agora na imagem renovada da sua fonte secular
em que não faltava, sequer, a réplica da pedra de armas.[18]
Mas em 2004 um novo caso surge, relacionado
com a salvaguarda do Património. Desta vez não era um monumento histórico, era
algo bem diferente.
MOINHO
DO GAIO, MORTE RESSURREIÇÃO DE UMA RUÍNA
Um dos traços mais
característicos da paisagem do Oeste estremenho é a sucessão de colinas com
seus característicos moinhos de velas brancas.[19] Estudos
feitos sobre eles admitiam que, em 2004, eram mais de mil.[20]Destes,
cinquenta ainda funcionavam e outros tantos poderiam voltar a trabalhar a
partir de um pequeno investimento. Os restantes eram, e são, ruínas em melhor
ou pior estado de conservação. O que é de salientar é que, por tradição,
ninguém manda demolir um moinho. Os proprietários têm por eles um respeito
ancestral que radica na memória do tempo em que farinavam. Fazem parte da
paisagem e não estorvam os trabalhos agrícolas porque geralmente estão situados
em terrenos inaptos para a lavoura. Da maioria deles ainda há memória do último
moleiro.
Por outro lado, as
populações mantêm viva a lembrança das invasões francesas e da construção das
Linhas de Torres Vedras em que muitos moinhos foram usados como postos de
observação ou paióis. Eram o disfarce perfeito para uma guerra de posição.
Nas cumeadas recortadas
na linha do horizonte, os moinhos perfilam-se ainda hoje como testemunhos de
vivências ancestrais em que o “homem dos ventos” aprendeu a domar as forças da
Natureza para garantir a subsistência.[21]Não
é de estranhar, pois, que sejam «as populações locais, no seu respeito pelos
espaços dos moinhos, que mais contribuem para a sua protecção.»[22]
Actualmente assiste-se
a um renovado interesse pela sua conservação que permite a reutilização como lugar
de lazer ou polo de atracção turística.[23]
Ícones identitários de uma época e um modo de vida, de que são testemunho bem
visível na paisagem, os moinhos de vento são reconhecidos como de grande
interesse cultural, histórico, museológico e pedagógico.[24]
Não admira, pois, que a
primeira página do jornal BADALADAS
de 16 de Julho de 2004 tenha tido um grande impacto. Por cima da foto de um
moinho, um grande título: «Moinho
desaparece da noite para o dia». Ao lado da imagem, uma extensa legenda: «O ‘Moinho do Gaio’, localizado a sudoeste da
cidade, junto ao Catefica, desapareceu do mapa misteriosamente. Só lá está o
sítio. O Espeleo Clube e a Associação de Defesa do Património Cultural de
Torres Vedras denunciaram o insólito acontecimento e consideram que foi
praticado “o mais aberrante e desonesto crime contra o património cultural
torriense dos últimos tempos”.»[25]
Na página 9 desenvolvia-se
a notícia. Aí se referia que o moinho, «apesar
de arruinado, sem capelo, possuía ainda o essencial do seu mecanismo (…) e
constituía uma autêntica referência topográfica para a entrada da cidade
torriense», «uma importante
referência na paisagem, dando nome àquele monte». Mais adiante sublinhava
que esse valor referencial estava reconhecido no Plano Director Municipal que
classificava como «espaços Culturais as
igrejas, os Fortes das Linhas de Torres, as quintas e casais agrícolas de maior
interesse arquitectónico e os moinhos de vento que se encontram em pontos
dominantes da paisagem, todos identificados na Planta de Ordenamento.»
Para além do
reconhecimento administrativo-urbanístico, a notícia lembrava a forte ligação
das populações aos seus moinhos: «Testemunhos
de uma gesta de gerações e gerações de moleiros, estes engenhos despertam,
ainda, felizmente, junto de largas camadas da população rural, e não só, um
sentimento de profundo respeito e carinho.».
Em termos veementes o
texto considerava ter sido crime grave a demolição do Moinho do Gaio, dando a
conhecer que as associações signatárias da denúncia estavam decididas a
apresentarem queixa-crime contra incertos, de modo a que aquela acção não
ficasse impune e que não voltasse a repetir-se. Eram referidos alguns factos
estranhos que levavam a pensar que a demolição não fora obra de acaso, antes
bem planeada pois dera-se durante a noite e com meios consideráveis –
retroescavadoras e camiões – segundo testemunhos de pessoas das redondezas. A
notícia fechava com um veemente apelo das associações: «Que seja reconstruído o Moinho do Gaio!»
A surpresa veio na
semana seguinte quando o BADALADAS[26]
anunciou que a demolição, afinal, fora decidida pelo vereador do Sector de
Planeamento Urbanístico e Ordenamento do Território. As razões invocadas eram a
segurança das pessoas. O vereador havia visitado o local e encontrara seringas
no chão, «sinal de utilização clandestina
para fins menos próprios». Alegava ter consultado a Protecção Civil que
alertara para o perigo de derrocada e, a pedido do proprietário que declarara
não se responsabilizar por danos a terceiros, decidira mandar demolir o moinho.
Curiosamente, o presidente da Câmara Municipal, ouvido pelo jornal, declarava
que não tinha tido conhecimento do caso antes de ver a notícia publicada na
semana anterior e reconhecia que houvera precipitação por parte do vereador. Por
isso afirmava que era «ponto de honra
reconstruir o moinho».
A Associação do
Património e o Espeleo-clube, que haviam denunciado o caso, lançaram de
imediato a suspeita de que, por trás da decisão poderiam estar «enormes interesses urbanísticos, uma vez que
o local está programado no futuro PDM como área de desenvolvimento turístico»
[27] e
achavam muito estranho que o vereador desconhecesse os valores patrimoniais
descritos no Plano Director Municipal. A própria decisão do presidente da
Câmara permitia concluir que algo de muito suspeito estava relacionado com a
decisão de demolição do moinho.
Nas semanas seguintes
as páginas do jornal foram um espaço de discussão sobre o assunto com artigos
da oposição e de leitores. [28]A
Associação do Património interrogava em título: «Moinhos: quem nos mói o património?» Um colaborador mais atento, na
rubrica “Bilhete-postal” deixava interrogações pertinentes: «Reconstruir o ‘Moinho do Gaio? Como? De que
forma? Com que material? Quando? E com que dinheiro?(…)»
O Verão passou, o
executivo camarário foi gerindo os danos e, chegado Dezembro[29],
o BADALADAS anunciava que se iria iniciar
a reconstrução do moinho.[30]
Adiantava pormenores, explicando que a reconstrução obedecia aos mais rigorosos
critérios de fidelidade aos materiais de origem e aos mecanismos de farinação,
a cargo de um mestre carpinteiro com larga experiência de trabalho em moinhos e
com o apoio da Associação do Património que disponibilizara imagens de arquivo.
A concluir, informava que o presidente da Câmara assegurara que o trabalho iria
ficar documentado em livro, de modo a constituir um documento pedagógico, no
qual seriam insertas outras informações como a de que, em inventário recente, haviam
sido contados 220 moinhos no concelho.
Finalmente, em Março de
2007[31],
a primeira página do Badaladas anunciava: «Gaio
de novo com as velas ao vento» e, na página 3, resumia todo o processo,
desde a «infeliz decisão do vereador»
– nas palavras do presidente da Câmara – até à sua reconstrução que fora
financiada pela entidade proprietária do moinho, com o apoio da Câmara
Municipal. E o Moinho do Gaio ressuscitou para a vida no cimo do monte onde
sempre estivera.[32]Tanto
quanto sabemos, actualmente o moinho é posto a funcionar com regularidade, em
visitas de escolas ou de outros grupos organizados.
Perante a verificação
de que o concelho de Torres Vedras tem mais de duas centenas de moinhos –
porventura uma das maiores manchas molinológicas da Europa – poder-se-ia
questionar a pertinência e a insistência acerca da demolição de um só moinho.
Num texto já acima referido, a Associação do Património sublinha que é
precisamente a disseminação de muitos moinhos pela paisagem que constitui o
traço mais significativo e identitário da região Oeste. É pelo conjunto que
eles são imagem e testemunho e, como tal, devem ser preservados na totalidade.
NOTAS
FINAIS
Os casos relatados
suscitam-nos algumas reflexões. Desde logo a verificação de que a ira vazada
por Herculano nas vigorosas denúncias na revista O Panorama, em 1838/39, mantém a actualidade, mais de cem anos
depois - até nos próprios termos usados pelo grande historiador quando escreve a
propósito do vandalismo sobre o património “que
tudo assola e desbarata (…) veste-se com todos os trajes. Aqui é vereador
municipal; ali administrador de concelho…”[33]
A Fonte Nova, relíquia
da época dos Descobrimentos e do Império do Oriente, construída quando Luís de
Camões era ainda criança, lenitivo para a sede de mais de uma dezena de
gerações, foi demolida para dar lugar ao alargamento da estrada e à construção
moderna. Porém, demoliu-se a parede mas não se apagou a memória porque, perto
do bárbaro ‘arrazador’, quase sempre vive o respeitador da herança dos
antepassados. E mesmo quando é impotente para suster o camartelo, teima em
recordá-la aos vindouros. Que o faça em palestras ou nas páginas de um jornal,
o que importa é que não deixe morrer a centelha da memória colectiva. E não
deixou!
O Moinho do Gaio não
tinha a caução de séculos mas era talvez do tempo de Herculano. Farinou milhares
de alqueires de cereais e acenou aos viajantes que, por mais de um século, passaram
no sopé do monte onde ele branquejava. Trabalhador incansável, por muitos anos
acompanhou na moenda a labuta dos ganhões rurais e almocreves, que se
habituaram a vê-lo, infatigável, lá em cima. Ele era o sinal de um lugar único,
daqueles em que «as comunidades (…) se
reconhecem pela mediação da memória.»[34] Depois,
já sem o préstimo de passados anos, envelhecia com dignidade, resistindo aos
vendavais do tempo. Porém, não resistiu ao vereador ignaro e insensível. Mas de
novo se afirmou a voz dos que respeitam o passado que, ao desmando, opuseram a
denúncia e a exigência.
Correndo embora o risco
de cair num exercício retórico, poderíamos tentar classificar os autores dos
actos de vandalismo aqui descritos, nas categorias que Louis Réau propôs.[35]
Trata-se, em nosso entender, de dois casos bem distintos. No primeiro, há uma
decisão do executivo camarário que ficou exarada em acta de reunião. Embora
sucinto, o texto informa-nos que ela foi baseada no parecer do arquitecto Miguel
Jacobety, que sabemos ter sido o autor do primeiro plano de urbanização de
Torres Vedras. Parecer polémico, com certeza, mas que o autor considerava
defensável, até porque estava de acordo com a apreciação que Júlio Vieira,
grande patrimonialista torriense, fizera em 1926 no seu livro sobre a História
de Torres Vedras, que já atrás citámos.[36] A
este propósito recordamos a advertência de Jorge H. Pais da Silva[37]
que, anos depois, parece caucionar o ponto de vista de Jacobety:
«Cabe então
proteger só o que é ‘antigo’? Proteger o que é antigo e só ou sobretudo porque
é antigo? De modo algum. O critério de preservação há-de ser sempre o da
qualidade da peça. Nem tudo o que é antigo no domínio do património
histórico-artístico merece ser conservado – há que dizê-lo definitiva e
corajosamente.»
O que hoje consideramos censurável na decisão camarária de destruir a
Fonte Nova é a insensibilidade aos valores afectivos que estão frequentemente
associados às peças patrimoniais de uso popular, símbolos da memória colectiva,
sinais vetustos do tempo longo no quotidiano das comunidades locais. E esse é,
em nosso entender, um critério tão respeitável como o do valor artístico. Vemos
como, de norte a sul do país, em romarias de tradição secular, o povo venera
imagens sem qualquer valor artístico mas cuja preservação defende
encarniçadamente. Elas fazem parte do seu
Património.
Para a demolição da Fonte Nova não encontramos em Louis Réau uma
categoria aplicável. Adiantamos uma, por nossa conta e risco: tratou-se de um
acto de vandalismo administrativo que,
apesar da justificação apresentada, não deixa de ser, para nós, hoje, uma expressão
chocante de insensibilidade social.
Já a demolição do
Moinho do Gaio revela outro tipo de motivação, a merecer classificação severa.
Pelo que atrás foi descrito, no acto do vereador conjugam-se mais do que uma
categoria de vandalismo. O motivo invocado – a segurança das pessoas – oculta razões
inconfessáveis. Sem querer fazer processo de intenções, mas usando a chamada vox populi, parece-nos que aquele acto,
para além de instinto destruidor, revela cupidez, ignorância e insensibilidade
perante os valores simbólicos da identidade
e dos sentimentos de pertença da
população que um membro do executivo camarário deveria ser - e não foi! - o primeiro a preservar e
defender.
Nesta luta pelo
Património em que se defrontam vandalismo e preservação, avulta o papel
desempenhado pela imprensa local, - nos casos relatados, o semanário BADALADAS - aliada aos sectores mais
esclarecidos da comunidade. Da parte dos interesses representados pelos
vândalos do património, não encontrámos um único texto de defesa das suas
posições – a não ser a débil justificação do próprio autor da demolição do
Moinho do Gaio. Dir-se-ia que agiram por astúcia e dissimulação, ao contrário dos
patrimonialistas que defenderam com denodo os seus pontos de vista.
Verificamos que nas
páginas desta imprensa, ainda não profissionalizada, cruzam-se informação e
opinião, caldeadas pela vivência comunitária: informam a cidade e, sobre ela opinam.
Sendo uma imprensa de inspiração cristã, naturalmente que, quem nela escreve,
mesmo quando agnóstico[38],
não ofende tais princípios. Mas há um valor comum que perpassa pela
generalidade dos textos: o respeito pelo passado inscrito nas pedras do
Património edificado ou nas tradições populares como os círios, as festas dos
padroeiros ou até mesmo o Carnaval. É uma imprensa que subscreve desde sempre as
práticas do que, nos anos 90 ganhou expressão nos Estados Unidos da América e
que entre nós tem sido divulgado como ‘jornalismo cívico’.[39]
Os exemplos aqui
abordados exprimem, com vigor, a possibilidade de participação organizada dos
cidadãos, na linha do que a Convenção de Faro, de 2005, preconiza no seu artigo
12º: «Reconhecer o papel das organizações
não lucrativas, tanto como parceiros nas actividades desenvolvidas, como
enquanto elementos de crítica construtiva das políticas de património cultural.»[40]
[1]
Cf: Maria
do Carmo Pinto Arana de Aguiar – Imprensa:
fonte de estudo para construção e reconstrução da História. [Em linha] X
Encontro estadual de História, o Brasil no sul: cruzando fronteiras entre o
regional e o nacional. 26 a 30 Julho 2010. [Consult. Fevereiro 2014] Disponível
em:
http://www.eeh2010.anpuh-rs.org.br/resources/anais/9/1279234975_ARQUIVO_artigoimprensaanpuhrs[1].pdf
Cf: Lucas Schuab Vieira - A Imprensa como Fonte para a Pesquisa em
Historia: Teoria e Método.[Em linha][Consult.
Fevereiro 2014]
Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/vieira-lucas-2013-imprensa-fonte-pesquisa.pdf
[2] Para o
conhecimento deste vasto universo comunicacional, ver: ENTIDADE REGULADORA PARA
A COMUNICAÇÃO SOCIAL - Imprensa Local e
Regional em Portugal [Em linha]. 1ª edição: 2010.[Consult. em 9 Fevereiro
2014]. Disponível em > http://www.erc.pt/documentos/ERCImprensaLocaleRegionalfinal.pdf
[4] Júlio Vieira, Torres Vedras antiga e moderna, 2ª ed.
(1ª ed. 1926), Torres Vedras: Livraria Livro do Dia, 2011. p. 73 e seg.
[5] Ver Anexo 1,
figs 1 e 2.
[6] J. Vieira, op. cit. p. 141
[7] J. Vieira, idem.
[8] Jornal Badaladas,
18 de Outubro de 1985, p. 11 .
[9] Seguimos de
perto um circunstanciado apontamento do blogue PATRIMÓNIOS, consultado em 11 de
Fevereiro de 2014, disponível em http://patrimoniodetorresvedras.blogspot.pt/search?q=fonte+nova
[10] Arquivo
Municipal de Torres Vedras, Acta da sessão da Câmara de 13 de Maio de 1954.
[11] Jornal Badaladas,
12 de Dezembro de 1957, pp.1 e 4.
[12] Arquivo
Municipal de Torres Vedras, Acta da sessão da Câmara de 26 de Julho de 1962.
[13] Jornal BADALADAS, 27 de Maio de 1983,
Suplemento da ADDPCTV.
[14] Ver Anexo 1,
fig. 3.
[15] Jornal BADALADAS, 25 de Maio de 1984, p. 13.
[16] Jornal BADALADAS, 21 de Junho de 1985
[17] Jornal BADALADAS, 18 de Outubro de 1985, p. 11.
[18] Ver Anexos 1,
figs. 4 e 5.
[19] Ver Anexos 2,
figs. 1 e 2.
[20] Ezequiel Duarte
– Identidade e actualidade dos moinhos na região oeste. In Actas
do 3º seminário do património da região oeste, Cadaval, 26, 27 e 28 de
Novembro de 2004. Cadaval: Câmara Municipal, 2006. pp. 149-153.
[21] António de
Oliveira Melo [et al]- O concelho de
Alenquer, subsídios para um roteiro de arte e etnografia. Vol.2, 3ª ed.,
Câmara Municipal de Alenquer e Associação para o estudo e defesa do património
de Alenquer, Alenquer, 2002. p.141.
[22] Ezequiel Duarte,
op. cit. p.149.
[23] Manuel José T.
Vitorino – Território, molinologia e
turismo, dinamização dos moinhos na promoção do turismo. Dissertação de
Mestrado. [Em linha] Instituto Politécnico de Leiria, Escola Superior de
Turismo e Tecnologia do Mar, 2012. [Consult. 12 Fev 2014]. Disponível em:
[24] Manuel José T.
Vitorino, op. cit. p.vii.
[25] Ver Anexos 2,
fig. 3.
[26] Jornal BADALADAS, 23 de Julho de 2004, pp. 1 e
4.
[27] Jornal BADALADAS, idem.
[28] Ver Anexos 2,
fig. 4.
[29] Jornal BADALADAS, 17 de Dezembro de 2004, p.9
[30] Ver Anexos 2,
fig. 5.
[31] Jornal BADALADAS, 16 de Março de 2007.
[32] Ver Anexos 2,
fig. 6.
[33] Citado por Paulo
Oliveira Ramos – Memória, património e vandalismo, in Memória e Sociedade, Discursos. Língua, cultura e sociedade, III
Série, nº 3, Centro de Estudos Históricos Interdisciplinares, Lisboa,
Universidade Aberta, 2001. p. 192.
[34]
Paulo O.
Ramos, op.cit. p. 193.
[35] Louis Réau – Histoire du vandalisme, les monuments
détruits de l’art français. Paris, Ed. Robert Laffont, c 1994. Cf.
Introdução, p. 13 e sgts
[36] Júlio Vieira, op. cit. Cf. p. 5 deste trabalho.
[37] Jorge Henrique
Pais da Silva – Pretérito presente, para
uma teoria da preservação do Património histórico-artístico. Alcobaça:
Comissão Organizadora do Congresso Internacional para a Investigação e Defesa
do Património (1978), c. 1979. p.24.
[38]
Uma das características
mais apreciadas do fundador do jornal Badaladas,
o P. Joaquim Maria de Sousa, era a sua abertura a todos os sectores da
sociedade torriense, fossem da situação,
da oposição, da Opus Dei, da
Maçonaria ou cidadãos sem filiação conhecida. Isso era bem visível no corpo de
colaboradores habituais do jornal. Tal característica tem sido defendida
persistentemente pelos responsáveis do jornal, até aos dias de hoje.
[39] Cf. Jornalismo Cívico, org. Nelson Traquina
e Marcelino Mesquita, Lisboa, Livros Horizonte, 2003.
[40]
Convenção
de Faro [Em linha] disponível em: http://www.igespar.pt/media/uploads/cc/ConvencaodeFaro.pdf
Moderno é a adição de todas as parcelas do passado. Nega-la é cretinice propria a ignorantes.
ResponderExcluirA "onda de protestos" do moinho do Gaio não se deveu a uma preocupação repentina dos torreenses com o património mas sim a uma movimentação política da oposição porque constou que um determinado vereador do poder socialista estaria envolvido e tinha interesses na demolição. Contar tudo direitinho é que era fazer história, mas o medo ... é como o meu! Mas seria totalmente incapaz de lhe chamar "caso exemplar"
ResponderExcluirPretenderá sugerir o autor deste comentário que a história se faça com palpites?
ExcluirJá agora: não tenha medo e deixe o seu nome escrito por baixo da sua opinião....