terça-feira, 4 de março de 2014

FONTE NOVA E MOINHO DO GAIO – DOIS CASOS EXEMPLARES




UM JORNAL TORRIENSE NA DEFESA DO PATRIMÓNIO
– DOIS CASOS EXEMPLARES


 Joaquim Moedas Duarte
Trabalho no âmbito da Unidade Curricular
HISTÓRIA E TEORIA DO PATRIMÓNIO


A partir da descrição de dois casos referenciados no semanário BADALADAS, de Torres Vedras, propomo-nos evidenciar a importância da imprensa local para a salvaguarda do património cultural de proximidade e, em complemento, registar para memória futura dois exemplos de como uma comunidade pode intervir eficazmente na salvaguarda de dois símbolos da sua identidade cultural. Tal objectivo supõe o recurso à imprensa local como fonte histórica, na linha dos vários contributos que têm sido desenvolvidos nessa área e que abordámos como apoio inicial ao presente trabalho.[1]
O primeiro caso refere-se à memória de um fontanário construído no século XVI, popularmente conhecido por FONTE NOVA – em oposição à fonte velha, denominada Chafariz dos Canos, do séc. XIV – demolido nos anos 60 do séc. XX e substituído por uma réplica mandada construir pela Câmara Municipal cerca de vinte anos depois. O segundo relata a inusitada demolição das ruínas do Moinho do Gaio, uma referência paisagística dos arredores de Torres Vedras, que originou uma onda de protestos e a decisão do Presidente da Câmara que, perante o escândalo, ordenou a sua imediata reconstrução.


A IMPRENSA LOCAL

Os meios de comunicação escrita, sob a forma de imprensa local[2], são um elemento importante para a coesão dos grupos humanos em que se inserem. Não é por acaso que a publicação de um jornal é, quase sempre, uma das primeiras iniciativas de qualquer grupo criado em volta de um projecto. Numa vila como Torres Vedras – que só em 1979 foi elevada a cidade – a presença da imprensa local é uma constante, desde 1885 até aos nossos dias. Numa breve abordagem contámos 21 títulos – entre semanários, quinzenários, trimensais e mensais – desde essa data inicial até 1935, com tempos de vida variáveis, mais ou menos longos, sucedendo-se uns aos outros ao sabor das circunstâncias. Essa data, que corresponde à afirmação do Estado Novo, de perfil político totalitário, também marcou a mudança no campo da imprensa local com a restrição de novos títulos e o espaçamento das edições. A partir daí até 2000 apenas se contam 8 títulos com existência mais alargada – acima de 50 números publicados. Um deles, o BADALADAS[3], surgido em 1948 como mensário ligado à Paróquia, foi o único que logrou chegar até à actualidade. E foi nas páginas deste periódico - pouco depois tornado quinzenal e, em 1960, semanal - que se instituiu um estilo de intervenção caracterizado pelo pluralismo de opiniões, - sempre vigiado no tempo do Estado Novo – e a abertura à diversidade de temas com incidência na área do património histórico e monumental. Constitui hoje uma referência da imprensa regional pela longevidade e tiragem – cerca de 12 000 exemplares. É sobre ele que incidiremos a nossa atenção.
Este jornal tornou-se um importante veículo de transmissão de notícias para as iniciativas de carácter cultural. As elites intelectuais locais encontraram nele um espaço privilegiado para a divulgação de estudos e investigações. Isso deve-se à personalidade do seu fundador - e director durante muitos anos - o P. Joaquim Maria de Sousa, homem aberto e dinâmico, devotado aos interesses regionalistas e hábil no compromisso entre a ideologia dominante do Estado Novo e a abertura a colaboradores desalinhados com ela.
O tema do Património monumental foi dos mais frequentemente tratados desde o nascimento deste jornal. Figuras como Eugénio Jalhay, Ricardo Belo, Cordeiro de Sousa ou Rafael Salinas Calado (pai do futuro primeiro director do Museu nacional do Azulejo, com o mesmo nome) colaboraram activa e regularmente nas páginas do Badaladas. Será excessivo afirmar que isso contribuiu para um real aumento da sensibilidade da generalidade da população para os problemas da preservação do Património mas, indubitavelmente criou, entre as camadas mais esclarecidas, um clima propício à reflexão sobre estes temas, o que viria a ter repercussões no primeiro caso que vamos abordar.





A FONTE NOVA OU UMA NOVA FONTE

Só por si, o tema do abastecimento de água ao longo dos séculos, numa urbe como Torres Vedras, é um vasto campo de estudo que incide sobre um dos mais candentes problemas da vida quotidiana. A localização da vila junto ao rio Sizandro – generoso no Inverno, avaro no Verão – permitia regas, lavagem de roupa, bebedouros de animais, força motriz das azenhas e, até, tratamento das peles e couros na indústria artesanal dos pelames. Porém, a água potável para consumo humano era mais difícil de garantir. Havia poços em muitos logradouros de casas de habitação mas é sabido que, neles, a água é facilmente contaminável. Por isso eram tão importantes os fontanários com água aduzida a partir de nascentes naturais ou de minas que a iam buscar ao bojo dos montes. A sua construção era cara, por causa dos materiais – pedra aparelhada e argamassas resistentes – e da mão-de-obra, necessária para o projecto e a edificação.
No século XVI Torres Vedras era um pequeno burgo em volta do castelo, erguido “em çima dhua fremosa mota” – como Fernão Lopes o descrevia na primeira parte da Crónica de D. João I. A seguir à Porta de Sant’Ana estendia-se a cerca da gafaria de Santo André onde, por essa altura, se construía o novo edifício do Convento da Graça. A seguir, um caminho saía para sul, em direcção aos campos cultivados dos arredores e à estrada que levava a Lisboa. Foi à beira dele que por essa época se edificou um novo fontanário, alimentado por um pequeno aqueduto que trazia a água de uma encosta sobranceira. Chamaram-lhe Fonte Nova, por antinomia com a velha, construída dois séculos antes, dentro de muralhas, junto à Porta da Corredoura, o Chafariz dos Canos. Estes eram equipamentos fundamentais pois abasteciam as populações e dessedentavam os animais na partida ou na chegada de longas jornadas. Não se sabe quem os mandou construir mas é natural que tenham sido da iniciativa do poder municipal ou, mais provavelmente, da donatária da vila – a rainha de Portugal. É que Torres Vedras foi, desde a primeira dinastia, dote das rainhas.[4]

A Fonte Nova era uma construção simples e desataviada[5]. Diz Júlio Vieira que «a sua construção só oferece o interesse da antiguidade»[6], pois o tanque era adossado a uma parede com ameias na qual estava «o brasão das armas da vila com a data de 1529»[7]. Ao contrário do Chafariz dos Canos, localizado dentro da urbe, a Fonte Nova ficava fora de portas, já bem longe. Só no séc. XX o perímetro urbano viria a atingi-la, quando foi construído o novo Hospital da Misericórdia, que lhe ficou fronteiro, era ela já uma ruína mal cuidada. Rapazes jogavam à bola no terreiro vizinho[8] e há muito que por ali não paravam animais de carga, substituídos por tractores e camionetas. O canto do cisne da velha fonte ouvira-se nos finais do séc. XIX quandoum visionário sonhou com a exploração termal de uma nascente vizinha da FonteNova, à qual deu o mesmo nome. O caso teve foros de grande acontecimento, relatado nas páginas da revista O Ocidente, de 5 de Junho de 1895.[9] Diz a tradição local que, se as águas termais eram para serem bebidas, as águas sanitárias das Termas provinham da vizinha Fonte Nova, transportadas em barris. Mas esta foi uma iniciativa que poucos anos durou devido ao desequilíbrio negativo entre receitas e despesas.

Anos rodaram e o velho fontanário foi ficando esquecido, oculto por caniços e matagais. Até que, numa sessão da Câmara Municipal de Torres Vedras, em 13 de Maio de 1954, «em face do parecer do arquitecto urbanista Miguel Jacobety baseado no Plano de Urbanização, superiormente aprovado, foi deliberado mandar demolir o chafariz denominado Fonte Nova no sítio do mesmo nome, por o mesmo não ter sido considerado monumento nacional, devendo a pedra de armas lá existente ser apiada com os devidos cuidados e recolhida no Museu Municipal».[10] Esta decisão terá passado despercebida. Só em Dezembro de 1957, num texto do BADALADAS intitulado “Restauro dos nossos monumentos”, o arquitecto José Vitorino da Costa Bastos, depois de enumerar alguns monumentos de Torres Vedras considerados em risco, lhe faz uma breve referência: “(…) a Fonte Nova, desaparecerá?[11]. Esta interrogação significa que a Fonte ainda não havia sido demolida, o que é confirmado por nova deliberação camarária, em Julho de 1962, na qual a Câmara aprovou uma proposta do vereador João A. C. Pinto: « Proponho que se aceite o oferecimento do Senhor António Hipólito de, à sua custa, mandar terraplanar o terreno que a Câmara adquiriu e que é parte da Praça do Centro Cívico de Fonte Nova, com a condição de a Câmara mandar proceder à demolição do Chafariz de Fonte Nova, no intuito de desafogar o terreno destinado à Sede da Associação de Educação Física, devendo dar entrada no Museu Municipal a pedra de armas que ali figura[12]
A partir daqui não encontrámos mais referências à Fonte Nova em documentos oficiais. De concreto sabemos que a sede da Associação de Educação Física foi iniciada em Outubro de 1969 e que a pedra de armas foi para o Museu Municipal mas não há registo de entrada – uma prática usual naquela época em que o Museu era um repositório de peças não inventariadas. Ficou a memória da Fonte, presente no topónimo de tradição popular e nas tertúlias do Café Havaneza em que se lamentava o património perdido – como ouvimos algumas vezes em conversa com Adão de Carvalho, homem muito conhecido no meio por colecionar notícias de antiguidades.
Em 1979 nasceu a Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras. Respondia aos anseios de uma franja esclarecida da população torriense, insatisfeita com a crescente influência dos promotores do betão na expansão urbanística da urbe. Curiosamente, a sua primeira sede localizou-se na redacção do jornal Badaladas cujo director – P. José Manuel da Silva, sucessor do fundador P. Joaquim M. Sousa – foi um dos seus mais entusiastas promotores. O passado do jornal, marcado pela preocupação patrimonialista, constituiu-se como alicerce de um projecto associativo que se firmou na sociedade torriense. Nos anos seguintes assistiu-se a um frequente afrontamento entre a Associação do Património e alguns autarcas menos sensibilizados para a causa e mais lestos na defesa do que consideravam o necessário desenvolvimento da nova cidade.
            A questão da Fonte Nova foi um das muitas que a recém-criada Associação trouxe ao debate público. Em Maio de 1983, num Suplemento de quatro páginas do jornal Badaladas[13], lançou a ideia da sua reconstrução com o texto intitulado «Vamos reconstruir a Fonte Nova?»:

«Era uma fonte. Existia há quatro séculos. Deu de beber a muita gente e muito gado. Há cerca de trinta anos não resistiu à visão ‘progressista’ dos senhores da terra! A razão, não a abemos ao certo. Hoje, no seu lugar, estacionam veículos automóveis.
A fonte, em si mesma, não era um monumento particularmente belo; mas só pelo facto de ser ‘fonte’ e por ter aquela idade deveria ter sido respeitada. E, se a sua função inicial tinha desaparecido, ela poderia prestar, ainda, um serviço à cidade – valorizando com a sua presença pitoresca aquele lugar, outrora arrabalde e hoje integrado na monótona malha urbana de Torres Vedras.
Naquele tempo não se pensava assim. Será que hoje é diferente? Pelo menos alguns de nós sabem quanto é importante preservar os testemunhos do passado, não só pelo seu significado, como por serem elementos que valorizam e diferenciam o espaço onde vivemos.
Por isso lançámos o apelo para a sua reconstrução. Apelo a que deram já a sua adesão centenas de torrienses conscientes, que assim querem reparar um ‘crime’ contra o seu património.»

Ao texto juntava-se um esquisso desenhado sobre uma fotografia do lugar[14].



Exactamente um ano depois, num artigo intitulado «Fonte Nova vai ser reconstruída»[15] a Associação do Património anunciava que a ideia fora perfilhada pelo Vereador da Cultura da Câmara Municipal, que se comprometia a vincular a autarquia à concretização do projecto. Um ano depois[16] a Associação achou necessário prestar um esclarecimento à população pois havia surgido alguma contestação à obra que entretanto se iniciara. Inserindo no texto a foto do demolido fontanário e o desenho do projecto, o autor explicava os constrangimentos entretanto surgidos. As novas edificações da zona impediam a reconstrução no lugar exacto. Explanando as circunstâncias condicionadoras de uma opção de fidelidade total à fonte destruída, o texto defendia uma concepção flexível de reconstrução, com alterações formais que alguns consideravam muito discutíveis – e bem visíveis na comparação das duas imagens. Mais adiante explicitava:

«Convém dizer que a suposta ‘fidelidade histórica’ na reconstituição de qualquer testemunho do passado, para além de um conceito subjectivo, está sujeita a diversos factores, desde a sua especificidade como objecto artístico às condicionantes do seu envolvimento. Actualmente tem-se optado por deixar bem expresso ‘o tempo’ dessa reconstrução (através dos materiais, de novas funções, de novas leituras) como atitude afinal mais verdadeira que a simples imitação do antigo (Foi o caso recente da Casa dos Bicos).»

E a finalizar:

«A obra agora em curso evocará, pelas semelhanças, a Fonte Nova quinhentista, mas não deixará de expressar, pelas diferenças, que se trata de uma ‘reconstrução’, não escamoteando o corte de três décadas na sua existência.»



A obra conclui-se alguns meses depois, apesar das críticas de alguns sectores mais renitentes. E em Outubro de 1985 o jornal publicava um texto emotivo de Emílio Costa, pessoa muito conhecida na terra e colaborador regular nas suas páginas, com o título «A nova ‘Fonte Nova’ – ligação ao recordar duma juventude»[17]. Depois de uma evocação saudosa dos seus tempos de infância e juventude, saúda a reconstrução e critica os que a contestaram, dizendo que nada fizeram quando a fonte original fora destruída. Esta opinião resume, de certo modo, o sentimento generalizado dos torrienses. A nova Fonte Nova passou a fazer parte do mobiliário urbano da cidade, cumprindo a função evocadora e embelezadora com que havia sido concebida. E é, também, um testemunho local significativo dos problemas que, desde o século XIX, rodeiam a preservação do Património e de que a velha controvérsia entre partidários de Ruskin ou de Violet Le Duc é a expressão mais conhecida.
O jornal cumprira a sua missão e os torrienses reviam-se agora na imagem renovada da sua fonte secular em que não faltava, sequer, a réplica da pedra de armas.[18]
    Mas em 2004 um novo caso surge, relacionado com a salvaguarda do Património. Desta vez não era um monumento histórico, era algo bem diferente.


MOINHO DO GAIO, MORTE RESSURREIÇÃO DE UMA RUÍNA

Um dos traços mais característicos da paisagem do Oeste estremenho é a sucessão de colinas com seus característicos moinhos de velas brancas.[19] Estudos feitos sobre eles admitiam que, em 2004, eram mais de mil.[20]Destes, cinquenta ainda funcionavam e outros tantos poderiam voltar a trabalhar a partir de um pequeno investimento. Os restantes eram, e são, ruínas em melhor ou pior estado de conservação. O que é de salientar é que, por tradição, ninguém manda demolir um moinho. Os proprietários têm por eles um respeito ancestral que radica na memória do tempo em que farinavam. Fazem parte da paisagem e não estorvam os trabalhos agrícolas porque geralmente estão situados em terrenos inaptos para a lavoura. Da maioria deles ainda há memória do último moleiro.
Por outro lado, as populações mantêm viva a lembrança das invasões francesas e da construção das Linhas de Torres Vedras em que muitos moinhos foram usados como postos de observação ou paióis. Eram o disfarce perfeito para uma guerra de posição.

Nas cumeadas recortadas na linha do horizonte, os moinhos perfilam-se ainda hoje como testemunhos de vivências ancestrais em que o “homem dos ventos” aprendeu a domar as forças da Natureza para garantir a subsistência.[21]Não é de estranhar, pois, que sejam «as populações locais, no seu respeito pelos espaços dos moinhos, que mais contribuem para a sua protecção.»[22]
Actualmente assiste-se a um renovado interesse pela sua conservação que permite a reutilização como lugar de lazer ou polo de atracção turística.[23] Ícones identitários de uma época e um modo de vida, de que são testemunho bem visível na paisagem, os moinhos de vento são reconhecidos como de grande interesse cultural, histórico, museológico e pedagógico.[24]

Não admira, pois, que a primeira página do jornal BADALADAS de 16 de Julho de 2004 tenha tido um grande impacto. Por cima da foto de um moinho, um grande título: «Moinho desaparece da noite para o dia». Ao lado da imagem, uma extensa legenda: «O ‘Moinho do Gaio’, localizado a sudoeste da cidade, junto ao Catefica, desapareceu do mapa misteriosamente. Só lá está o sítio. O Espeleo Clube e a Associação de Defesa do Património Cultural de Torres Vedras denunciaram o insólito acontecimento e consideram que foi praticado “o mais aberrante e desonesto crime contra o património cultural torriense dos últimos tempos”.»[25]



Na página 9 desenvolvia-se a notícia. Aí se referia que o moinho, «apesar de arruinado, sem capelo, possuía ainda o essencial do seu mecanismo (…) e constituía uma autêntica referência topográfica para a entrada da cidade torriense», «uma importante referência na paisagem, dando nome àquele monte». Mais adiante sublinhava que esse valor referencial estava reconhecido no Plano Director Municipal que classificava como «espaços Culturais as igrejas, os Fortes das Linhas de Torres, as quintas e casais agrícolas de maior interesse arquitectónico e os moinhos de vento que se encontram em pontos dominantes da paisagem, todos identificados na Planta de Ordenamento
Para além do reconhecimento administrativo-urbanístico, a notícia lembrava a forte ligação das populações aos seus moinhos: «Testemunhos de uma gesta de gerações e gerações de moleiros, estes engenhos despertam, ainda, felizmente, junto de largas camadas da população rural, e não só, um sentimento de profundo respeito e carinho.».
Em termos veementes o texto considerava ter sido crime grave a demolição do Moinho do Gaio, dando a conhecer que as associações signatárias da denúncia estavam decididas a apresentarem queixa-crime contra incertos, de modo a que aquela acção não ficasse impune e que não voltasse a repetir-se. Eram referidos alguns factos estranhos que levavam a pensar que a demolição não fora obra de acaso, antes bem planeada pois dera-se durante a noite e com meios consideráveis – retroescavadoras e camiões – segundo testemunhos de pessoas das redondezas. A notícia fechava com um veemente apelo das associações: «Que seja reconstruído o Moinho do Gaio



A surpresa veio na semana seguinte quando o BADALADAS[26] anunciou que a demolição, afinal, fora decidida pelo vereador do Sector de Planeamento Urbanístico e Ordenamento do Território. As razões invocadas eram a segurança das pessoas. O vereador havia visitado o local e encontrara seringas no chão, «sinal de utilização clandestina para fins menos próprios». Alegava ter consultado a Protecção Civil que alertara para o perigo de derrocada e, a pedido do proprietário que declarara não se responsabilizar por danos a terceiros, decidira mandar demolir o moinho. Curiosamente, o presidente da Câmara Municipal, ouvido pelo jornal, declarava que não tinha tido conhecimento do caso antes de ver a notícia publicada na semana anterior e reconhecia que houvera precipitação por parte do vereador. Por isso afirmava que era «ponto de honra reconstruir o moinho».
A Associação do Património e o Espeleo-clube, que haviam denunciado o caso, lançaram de imediato a suspeita de que, por trás da decisão poderiam estar «enormes interesses urbanísticos, uma vez que o local está programado no futuro PDM como área de desenvolvimento turístico» [27] e achavam muito estranho que o vereador desconhecesse os valores patrimoniais descritos no Plano Director Municipal. A própria decisão do presidente da Câmara permitia concluir que algo de muito suspeito estava relacionado com a decisão de demolição do moinho.
Nas semanas seguintes as páginas do jornal foram um espaço de discussão sobre o assunto com artigos da oposição e de leitores. [28]A Associação do Património interrogava em título: «Moinhos: quem nos mói o património?» Um colaborador mais atento, na rubrica “Bilhete-postal” deixava interrogações pertinentes: «Reconstruir o ‘Moinho do Gaio? Como? De que forma? Com que material? Quando? E com que dinheiro?(…)»
 O Verão passou, o executivo camarário foi gerindo os danos e, chegado Dezembro[29], o BADALADAS anunciava que se iria iniciar a reconstrução do moinho.[30] Adiantava pormenores, explicando que a reconstrução obedecia aos mais rigorosos critérios de fidelidade aos materiais de origem e aos mecanismos de farinação, a cargo de um mestre carpinteiro com larga experiência de trabalho em moinhos e com o apoio da Associação do Património que disponibilizara imagens de arquivo. A concluir, informava que o presidente da Câmara assegurara que o trabalho iria ficar documentado em livro, de modo a constituir um documento pedagógico, no qual seriam insertas outras informações como a de que, em inventário recente, haviam sido contados 220 moinhos no concelho.
Finalmente, em Março de 2007[31], a primeira página do Badaladas anunciava: «Gaio de novo com as velas ao vento» e, na página 3, resumia todo o processo, desde a «infeliz decisão do vereador» – nas palavras do presidente da Câmara – até à sua reconstrução que fora financiada pela entidade proprietária do moinho, com o apoio da Câmara Municipal. E o Moinho do Gaio ressuscitou para a vida no cimo do monte onde sempre estivera.[32]Tanto quanto sabemos, actualmente o moinho é posto a funcionar com regularidade, em visitas de escolas ou de outros grupos organizados.

Perante a verificação de que o concelho de Torres Vedras tem mais de duas centenas de moinhos – porventura uma das maiores manchas molinológicas da Europa – poder-se-ia questionar a pertinência e a insistência acerca da demolição de um só moinho. Num texto já acima referido, a Associação do Património sublinha que é precisamente a disseminação de muitos moinhos pela paisagem que constitui o traço mais significativo e identitário da região Oeste. É pelo conjunto que eles são imagem e testemunho e, como tal, devem ser preservados na totalidade.

NOTAS FINAIS

Os casos relatados suscitam-nos algumas reflexões. Desde logo a verificação de que a ira vazada por Herculano nas vigorosas denúncias na revista O Panorama, em 1838/39, mantém a actualidade, mais de cem anos depois - até nos próprios termos usados pelo grande historiador quando escreve a propósito do vandalismo sobre o património “que tudo assola e desbarata (…) veste-se com todos os trajes. Aqui é vereador municipal; ali administrador de concelho…”[33]

A Fonte Nova, relíquia da época dos Descobrimentos e do Império do Oriente, construída quando Luís de Camões era ainda criança, lenitivo para a sede de mais de uma dezena de gerações, foi demolida para dar lugar ao alargamento da estrada e à construção moderna. Porém, demoliu-se a parede mas não se apagou a memória porque, perto do bárbaro ‘arrazador’, quase sempre vive o respeitador da herança dos antepassados. E mesmo quando é impotente para suster o camartelo, teima em recordá-la aos vindouros. Que o faça em palestras ou nas páginas de um jornal, o que importa é que não deixe morrer a centelha da memória colectiva. E não deixou!

O Moinho do Gaio não tinha a caução de séculos mas era talvez do tempo de Herculano. Farinou milhares de alqueires de cereais e acenou aos viajantes que, por mais de um século, passaram no sopé do monte onde ele branquejava. Trabalhador incansável, por muitos anos acompanhou na moenda a labuta dos ganhões rurais e almocreves, que se habituaram a vê-lo, infatigável, lá em cima. Ele era o sinal de um lugar único, daqueles em que «as comunidades (…) se reconhecem pela mediação da memória[34] Depois, já sem o préstimo de passados anos, envelhecia com dignidade, resistindo aos vendavais do tempo. Porém, não resistiu ao vereador ignaro e insensível. Mas de novo se afirmou a voz dos que respeitam o passado que, ao desmando, opuseram a denúncia e a exigência.

Correndo embora o risco de cair num exercício retórico, poderíamos tentar classificar os autores dos actos de vandalismo aqui descritos, nas categorias que Louis Réau propôs.[35] Trata-se, em nosso entender, de dois casos bem distintos. No primeiro, há uma decisão do executivo camarário que ficou exarada em acta de reunião. Embora sucinto, o texto informa-nos que ela foi baseada no parecer do arquitecto Miguel Jacobety, que sabemos ter sido o autor do primeiro plano de urbanização de Torres Vedras. Parecer polémico, com certeza, mas que o autor considerava defensável, até porque estava de acordo com a apreciação que Júlio Vieira, grande patrimonialista torriense, fizera em 1926 no seu livro sobre a História de Torres Vedras, que já atrás citámos.[36] A este propósito recordamos a advertência de Jorge H. Pais da Silva[37] que, anos depois, parece caucionar o ponto de vista de Jacobety:

«Cabe então proteger só o que é ‘antigo’? Proteger o que é antigo e só ou sobretudo porque é antigo? De modo algum. O critério de preservação há-de ser sempre o da qualidade da peça. Nem tudo o que é antigo no domínio do património histórico-artístico merece ser conservado – há que dizê-lo definitiva e corajosamente.»

       O que hoje consideramos censurável na decisão camarária de destruir a Fonte Nova é a insensibilidade aos valores afectivos que estão frequentemente associados às peças patrimoniais de uso popular, símbolos da memória colectiva, sinais vetustos do tempo longo no quotidiano das comunidades locais. E esse é, em nosso entender, um critério tão respeitável como o do valor artístico. Vemos como, de norte a sul do país, em romarias de tradição secular, o povo venera imagens sem qualquer valor artístico mas cuja preservação defende encarniçadamente. Elas fazem parte do seu Património.
       Para a demolição da Fonte Nova não encontramos em Louis Réau uma categoria aplicável. Adiantamos uma, por nossa conta e risco: tratou-se de um acto de vandalismo administrativo que, apesar da justificação apresentada, não deixa de ser, para nós, hoje, uma expressão chocante de insensibilidade social.
Já a demolição do Moinho do Gaio revela outro tipo de motivação, a merecer classificação severa. Pelo que atrás foi descrito, no acto do vereador conjugam-se mais do que uma categoria de vandalismo. O motivo invocado – a segurança das pessoas – oculta razões inconfessáveis. Sem querer fazer processo de intenções, mas usando a chamada vox populi, parece-nos que aquele acto, para além de instinto destruidor, revela cupidez, ignorância e insensibilidade perante os valores simbólicos da identidade e dos sentimentos de pertença da população que um membro do executivo camarário deveria ser  - e não foi! - o primeiro a preservar e defender.          

Nesta luta pelo Património em que se defrontam vandalismo e preservação, avulta o papel desempenhado pela imprensa local, - nos casos relatados, o semanário BADALADAS - aliada aos sectores mais esclarecidos da comunidade. Da parte dos interesses representados pelos vândalos do património, não encontrámos um único texto de defesa das suas posições – a não ser a débil justificação do próprio autor da demolição do Moinho do Gaio. Dir-se-ia que agiram por astúcia e dissimulação, ao contrário dos patrimonialistas que defenderam com denodo os seus pontos de vista.
Verificamos que nas páginas desta imprensa, ainda não profissionalizada, cruzam-se informação e opinião, caldeadas pela vivência comunitária: informam a cidade e, sobre ela opinam. Sendo uma imprensa de inspiração cristã, naturalmente que, quem nela escreve, mesmo quando agnóstico[38], não ofende tais princípios. Mas há um valor comum que perpassa pela generalidade dos textos: o respeito pelo passado inscrito nas pedras do Património edificado ou nas tradições populares como os círios, as festas dos padroeiros ou até mesmo o Carnaval. É uma imprensa que subscreve desde sempre as práticas do que, nos anos 90 ganhou expressão nos Estados Unidos da América e que entre nós tem sido divulgado como ‘jornalismo cívico’.[39]

Os exemplos aqui abordados exprimem, com vigor, a possibilidade de participação organizada dos cidadãos, na linha do que a Convenção de Faro, de 2005, preconiza no seu artigo 12º: «Reconhecer o papel das organizações não lucrativas, tanto como parceiros nas actividades desenvolvidas, como enquanto elementos de crítica construtiva das políticas de património cultural[40]



[1] Cf: Maria do Carmo Pinto Arana de Aguiar – Imprensa: fonte de estudo para construção e reconstrução da História. [Em linha] X Encontro estadual de História, o Brasil no sul: cruzando fronteiras entre o regional e o nacional. 26 a 30 Julho 2010. [Consult. Fevereiro 2014] Disponível em:
Cf: Lucas Schuab Vieira - A Imprensa como Fonte para a Pesquisa em Historia: Teoria e Método.[Em linha][Consult.
Fevereiro 2014]
Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/vieira-lucas-2013-imprensa-fonte-pesquisa.pdf
[2] Para o conhecimento deste vasto universo comunicacional, ver: ENTIDADE REGULADORA PARA A COMUNICAÇÃO SOCIAL - Imprensa Local e Regional em Portugal [Em linha]. 1ª edição: 2010.[Consult. em 9 Fevereiro 2014]. Disponível em > http://www.erc.pt/documentos/ERCImprensaLocaleRegionalfinal.pdf
[3] Edição em linha( só a partir de 2013): http://www.badaladas.pt/
[4] Júlio Vieira, Torres Vedras antiga e moderna, 2ª ed. (1ª ed. 1926), Torres Vedras: Livraria Livro do Dia, 2011. p. 73 e seg.
[5] Ver Anexo 1, figs 1 e 2.
[6] J. Vieira, op. cit. p. 141
[7] J. Vieira, idem.
[8] Jornal Badaladas, 18 de Outubro de 1985, p. 11 .
[9] Seguimos de perto um circunstanciado apontamento do blogue PATRIMÓNIOS, consultado em 11 de Fevereiro de 2014, disponível em http://patrimoniodetorresvedras.blogspot.pt/search?q=fonte+nova
[10] Arquivo Municipal de Torres Vedras, Acta da sessão da Câmara de 13 de Maio de 1954.
[11] Jornal Badaladas, 12 de Dezembro de 1957, pp.1 e 4.
[12] Arquivo Municipal de Torres Vedras, Acta da sessão da Câmara de 26 de Julho de 1962.
[13] Jornal BADALADAS, 27 de Maio de 1983, Suplemento da ADDPCTV.
[14] Ver Anexo 1, fig. 3.
[15] Jornal BADALADAS, 25 de Maio de 1984, p. 13.
[16] Jornal BADALADAS, 21 de Junho de 1985
[17] Jornal BADALADAS, 18 de Outubro de 1985, p. 11.
[18] Ver Anexos 1, figs. 4 e 5.
[19] Ver Anexos 2, figs. 1 e 2.
[20] Ezequiel Duarte – Identidade e actualidade dos moinhos na região oeste. In  Actas do 3º seminário do património da região oeste, Cadaval, 26, 27 e 28 de Novembro de 2004. Cadaval: Câmara Municipal, 2006. pp. 149-153.
[21] António de Oliveira Melo [et al]- O concelho de Alenquer, subsídios para um roteiro de arte e etnografia. Vol.2, 3ª ed., Câmara Municipal de Alenquer e Associação para o estudo e defesa do património de Alenquer, Alenquer, 2002. p.141.
[22] Ezequiel Duarte, op. cit. p.149.
[23] Manuel José T. Vitorino – Território, molinologia e turismo, dinamização dos moinhos na promoção do turismo. Dissertação de Mestrado. [Em linha] Instituto Politécnico de Leiria, Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar, 2012. [Consult. 12 Fev 2014]. Disponível em:
[24] Manuel José T. Vitorino, op. cit. p.vii.
[25] Ver Anexos 2, fig. 3.
[26] Jornal BADALADAS, 23 de Julho de 2004, pp. 1 e 4.
[27] Jornal BADALADAS, idem.
[28] Ver Anexos 2, fig. 4.
[29] Jornal BADALADAS, 17 de Dezembro de 2004, p.9
[30] Ver Anexos 2, fig. 5.
[31] Jornal BADALADAS, 16 de Março de 2007.
[32] Ver Anexos 2, fig. 6.
[33] Citado por Paulo Oliveira Ramos – Memória, património e vandalismo, in Memória e Sociedade, Discursos. Língua, cultura e sociedade, III Série, nº 3, Centro de Estudos Históricos Interdisciplinares, Lisboa, Universidade Aberta, 2001. p. 192.
[34] Paulo O. Ramos, op.cit. p. 193.
[35] Louis Réau – Histoire du vandalisme, les monuments détruits de l’art français. Paris, Ed. Robert Laffont, c 1994. Cf. Introdução, p. 13 e sgts
[36] Júlio Vieira, op. cit. Cf. p. 5 deste trabalho.
[37] Jorge Henrique Pais da Silva – Pretérito presente, para uma teoria da preservação do Património histórico-artístico. Alcobaça: Comissão Organizadora do Congresso Internacional para a Investigação e Defesa do Património (1978), c. 1979. p.24.
[38] Uma das características mais apreciadas do fundador do jornal Badaladas, o P. Joaquim Maria de Sousa, era a sua abertura a todos os sectores da sociedade torriense, fossem da situação, da oposição, da Opus Dei, da Maçonaria ou cidadãos sem filiação conhecida. Isso era bem visível no corpo de colaboradores habituais do jornal. Tal característica tem sido defendida persistentemente pelos responsáveis do jornal, até aos dias de hoje.
[39] Cf. Jornalismo Cívico, org. Nelson Traquina e Marcelino Mesquita, Lisboa, Livros Horizonte, 2003.
[40] Convenção de Faro [Em linha] disponível em: http://www.igespar.pt/media/uploads/cc/ConvencaodeFaro.pdf






3 comentários:

  1. Moderno é a adição de todas as parcelas do passado. Nega-la é cretinice propria a ignorantes.

    ResponderExcluir
  2. A "onda de protestos" do moinho do Gaio não se deveu a uma preocupação repentina dos torreenses com o património mas sim a uma movimentação política da oposição porque constou que um determinado vereador do poder socialista estaria envolvido e tinha interesses na demolição. Contar tudo direitinho é que era fazer história, mas o medo ... é como o meu! Mas seria totalmente incapaz de lhe chamar "caso exemplar"

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pretenderá sugerir o autor deste comentário que a história se faça com palpites?
      Já agora: não tenha medo e deixe o seu nome escrito por baixo da sua opinião....

      Excluir