segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

COMENTÁRIO AOS TEXTOS DE TRÊS PATRIMONIALISTAS DO SÉC. XIX



UM ASPECTO RELEVANTE DO LIVRO DE ALMEIDA GARRETT


Da leitura dos capítulos selecionados das Viagens na minha terra, destaco as páginas dedicadas ao Convento de S. Francisco (cap. XLI e XLII), como símbolo do vandalismo contra o património edificado.

Almeida Garrett que, tal como Herculano, foi um lutador da liberdade e, de armas na mão, contribuiu para a instauração do regime liberal, aproveita o relato do seu passeio a Santarém para zurzir impiedosamente a ignorância e o desleixo dos barões do novo regime que, entre outras coisas, desprezam e maltratam os monumentos da Santarém medieval. O Convento de S. Francisco, “um dos mais antigos e mais históricos edifícios do reino”, foi “consertado pelas Obras Públicas para servir de quartel de soldados”. E Garrett amaldiçoa as mãos que profanaram a velha urbe e que desonraram Portugal porque “destruíram os padrões da sua história”. A pungente descrição do túmulo do rei D. Fernando, profanado pela bruteza dos soldados que nele buscaram riquezas, é um dos pontos altos de todo o livro, elevando-se à altura das catilinárias de Herculano, cinco anos antes, na revista “Panorama”.


A juntar à cólera dos nossos escritores oitocentistas, acrescento, por minha conta, o gravíssimo atentado muito recentemente perpetrado contra o velho edifício: a colocação de uma rosácea por cima da porta axial do templo, encomendada por ignorante barão dos nossos tempos. A merecer a cruciante invectiva de Garrett no cap. XXXVI: “Ai Santarém, Santarém! Abandonaram-te, mataram-te e agora cospem-te no cadáver.”

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UM ASPECTO RELEVANTE DO TEXTO DE A. HERCULANO


Do impressivo texto de Herculano, - Monumentos pátrios- pioneiro da salvaguarda do Património edificado, destaco o  excerto que começa em: «Mas que serão os monumentos? Que serão essas admiraveis aggregações de marmore ou de granito?» e vai até «adoradores do camartello, por qualquer lado que se observe a vossa obra, não se descobre senão o absurdo.»

 Herculano, num tom bíblico que se coadunava bem com o seu estatuto de cidadão interveniente e já muito prestigiado, depois de denunciar o vandalismo a que os monumentos nacionais estão sujeitos – numa linguagem violentíssima em que utiliza expressões como “instinto bárbaro” e “filosofia da brutalidade” – usa o argumento do interesse material. Pois não viam estes “netos de Átila” que, num país que pouco ou nada tinha para atrair estrangeiros a não ser os seus monumentos, estes podiam render dinheiro? Ao menos que entendessem isso. Mas nem isso – e Herculano, que já os apodara de “ridículos”, carimba de “absurdos” estes “adoradores do camartelo”.

 Estas palavras de Herculano, primeiramente publicadas na revista Panorama em 1838/39, e posteriormente refundidas para os Opúsculos, são impressionantemente actuais e, até premonitórias. Herculano tem a visão certeira do que será o fenómeno turístico que ganhará expressão na segunda metade do séc. XX, mais de cem depois.
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UM ASPECTO RELEVANTE DO LIVRO DE R. ORTIGÃO


Do excerto do livro de Ramalho Ortigão O Culto da Arte em Portugal destaco uma frase elucidativa de um aspecto que considero relevante da obra (cito da edição em PDF da Biblioteca Nacional, pg. 54):

“O meu fim porém não é fazer a crítica das restaurações da Batalha, mas sim demonstrar, como julgo ter feito, por meio de alguns factos característicos e capitais, que nas restaurações empreendidas(…) não houve antecedência de programa, nem estudo prévio, nem determinação de método, nem sanção crítica, nem fiscalização técnica, nem polícia artística de espécie alguma.”

Parece-me uma observação extremamente pertinente, ajustada ao problema do restauro dos monumentos edificados. Logo no início o autor denunciara os dois pecados cometidos pela administração central / Estado, em relação aos monumentos: ou os deixava morrer ao abandono, ou os assassinava, restaurando-os. Uma e outra, são acusações gravíssimas. Por isso R. Ortigão exemplifica com três casos emblemáticos: os Jerónimos, a Madre de Deus e a Batalha. As descrições que faz desses restauros são aterradoras. E se assim é com aqueles casos, o que não será com o resto, deixado ao arbítrio dos poderes locais? E lá vem uma lista de atentados, de norte a sul do país, que ilustra com descrições concretas.

O que me parece mais de assinalar é que o autor não se fica pela denúncia. Depois de estudar a questão histórica de saber quem é o autor do projecto de construção da Batalha – numa demonstração brilhante do método analítico em História – evidenciando assim a necessidade de fundamentar historicamente qualquer acção de restauro, o autor explica como deveria ser feito tal restauro, referindo as teoria arquitectónicas, a consideração pelos materiais e o próprio passado do edifício, que deve ser tido em conta.

Para R. Ortigão, a acompanhar a denúncia há que propor soluções, explicar o que está mal à luz do que deveria ser, numa perspectiva pedagógica que deve ser, ainda hoje e cada vez mais, a de todos os que actuam na área do Património. É o caso das Associações de Defesa do Património a quem caberá prosseguir a acção brilhante dos nossos escritores oitocentistas.


 J. Moedas Duarte

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