terça-feira, 31 de dezembro de 2013

PATRIMÓNIO INDUSTRIAL, MEMÓRIA DO TRABALHO PRODUTIVO



Uma ideia estimulante para a nossa reflexão é a que Françoise Choay propõe, ao denunciar o que classifica como a fetichização do património, expressa em duas formas contraditórias de o olhar: de um lado a perspectiva passadista e nostálgica, resistente à articulação integradora entre o antigo e o novo; do outro a visão progressista que reduz o património preservado a objecto de museu. (cf. CHOAY, Françoise, 2009).

A contradição radica na própria ambiguidade do conceito de Património que se alargou exponencialmente a todas as áreas da actividade humana. (cf. POULOT, Dominique, 2001). Daí a necessidade de reafirmar a abordagem histórico-sociológica que articule, simultaneamente, os valores do tempo longo (dimensão maior da História) e do tempo curto (vivências quotidianas), de modo a que o conceito de Património reassuma a dimensão de portador de consciência histórica e de memória das comunidades humanas.

Uma das áreas mais recentes da tendência patrimonializadora é a do Património Industrial que ganhou expressão sobretudo depois da 2ª Guerra Mundial. Aqui, a carga histórica do tempo longo cede à verificação do imediato, marca da contemporaneidade. Emergem as memórias de quotidianos recentes, símbolos de um presente que se extingue debaixo dos nossos olhos, induzindo valores importantes como o turismo cultural de crescente expressão económica e a reutilização criteriosa e criativa de antigas instalações fabris.


Quando a “Casa Hipólito” ou a “Fundição de Dois Portos” – indústrias locais de Torres Vedras que prosperaram no séc XX – se afundam na falência e fecham as portas, tal significa o apagamento súbito de um passado recente cuja memória urge preservar para que as novas gerações entendam as razões do vazio sócio-económico que se instalou numa cidade subitamente órfã da sua prosperidade.

A Carta de Nizhny Tagil sobre o Património Industrial, aprovada em 2003, bem como a sua extensão nos chamados “Princípios de Dublin”, de 2011, mostram como estas preocupações locais têm dimensão internacional. Tais documentos apontam para metodologias de identificação, inventário e investigação, indispensáveis para a valorização e preservação deste Património, cada vez mais presente em múltiplas formas de apresentação e interpretação garantidas pelos poderes públicos articulados com as comunidades locais.

Acredita-se que esta saída cultural – preservação dos vestígios físicos acompanhada de uma narrativa histórica esclarecedora – constitua uma mais-valia face à rápida modificação das condições da vida económica, portadora, muitas vezes, de sofrimentos e frustrações. Vemos hoje um Museu do Pão, em Seia, que contrapõe à uniformizada industrialização panificadora a memória de antigas formas de moer e fabricar. Multidões saudosas de antigos sabores e odores invadem aquele espaço e regressam a um passado que ainda há pouco era o seu próprio presente. 


E mais ao sul,  o Museu do Trabalho Michel Giacometti, em Setúbal, mostra os antigos processos da indústria conserveira, em que nos parece ver ainda os vultos dos homens e das mulheres que ocupavam as linhas de produção, ao som de apitos estridentes.

Esta valorização do Património Industrial – cujos exemplos se têm multiplicado de norte a sul do país desde há duas décadas - é, em si mesma, a consagração do bem mais duradouro da História, o trabalho humano, mostrado como processo, como sofrimento, como superação, como riqueza. Aqui, Património já não é Monumento, símbolo de poder, afirmação de elites ou linhagens. É imagem do Homem que, em sociedade, se eleva acima da estrita sobrevivência individual. Por isso a preservação do Património Industrial é indispensável para a persistência da memória histórica desse longo caminho em que, como dizia M. Vieira Natividade, ilustre patrimonialista alcobacense, o homem fez a indústria e a indústria fez o homem.

J. Moedas Duarte

BIBLIOGRAFIA:
CHOAY, Françoise, Le patrimoine en questions – Anthologie pour un combat, Editions du Seuil, 2009, p.XXXV-XXXVI. 
CHOAY, Françoise, Alegoria do património, Edições 70, Lisboa, 2013.
POULOT, Dominique, “La multiplication des patrimoines”, Patrimoine et musée. L’institution de la culture, Paris, Hachette, 2001, pp.198-205
NATIVIDADE, Manuel Vieira - Alcobaça de outro tempo. Notas sobre a indústria e a agricultura, Alcobaça, 1906. [sem refer. de editor]
MENDES, José Amado, O património industrial na museologia contemporânea: o caso português, Ubimuseum ,[em linha],nº 01, pp.89-104. [Consult. 20-XI-2013]. Disponível  na internet: http://www.ubimuseum.ubi.pt/n01/artigos.html

WEBSITES:
IGESPAR, Património industrial [em linha], [consultado em 20-XI-2013], disponível na internet <URL: http://www.igespar.pt/pt/patrimonio/itinerarios/industrial1/ >
Associação Portuguesa para o Património Industrial [em linha], [consultado em 19-XI-2013], disponível na internet: <URL: http://www.museudaindustriatextil.org/appi/home.php >(última actualização:14-03-2016)
Rede Indústria, História e Património [em linha], [consultado em 19-XI-2013], disponível na internet: <URL:http://historia-patrimonio-industria.blogspot.pt/ >
CARTA DE NIZNHY TAGIL SOBRE O PATRIMÓNIO INDUSTRIAL [em linha], [consultado em 20-XI-2013], disponível na internet: <URL: 

«Les principes de Dublin» - Principes conjoints ICOMOS-TICCIH pour la conservation des sites, constructions, aires et paysages du patrimoine industriel 
Adoptées par la 17e Assemblée générale de l’ICOMOS le 28 novembre 2011 [em linha], [consultado em 20-XI-2013], disponível na internet: <URL:





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