Uma ideia estimulante para a
nossa reflexão é a que Françoise Choay propõe, ao denunciar o que classifica
como a fetichização do património, expressa em duas formas contraditórias de o olhar:
de um lado a perspectiva passadista e nostálgica, resistente à articulação
integradora entre o antigo e o novo; do outro a visão progressista que reduz o
património preservado a objecto de museu. (cf. CHOAY, Françoise, 2009).
A contradição radica na própria
ambiguidade do conceito de Património que se alargou exponencialmente a todas
as áreas da actividade humana. (cf. POULOT, Dominique, 2001). Daí a necessidade
de reafirmar a abordagem histórico-sociológica que articule, simultaneamente,
os valores do tempo longo (dimensão maior da História) e do tempo curto
(vivências quotidianas), de modo a que o conceito de Património reassuma a
dimensão de portador de consciência histórica e de memória das comunidades
humanas.
Uma das áreas mais recentes da
tendência patrimonializadora é a do Património Industrial que ganhou expressão
sobretudo depois da 2ª Guerra Mundial. Aqui, a carga histórica do tempo longo
cede à verificação do imediato, marca da contemporaneidade. Emergem as memórias
de quotidianos recentes, símbolos de um presente que se extingue debaixo dos
nossos olhos, induzindo valores importantes como o turismo cultural de
crescente expressão económica e a reutilização criteriosa e criativa de antigas
instalações fabris.
Quando a “Casa Hipólito” ou a “Fundição
de Dois Portos” – indústrias locais de Torres Vedras que prosperaram no séc XX
– se afundam na falência e fecham as portas, tal significa o apagamento súbito
de um passado recente cuja memória urge preservar para que as novas gerações
entendam as razões do vazio sócio-económico que se instalou numa cidade
subitamente órfã da sua prosperidade.
A Carta de Nizhny Tagil sobre o
Património Industrial, aprovada em 2003, bem como a sua extensão nos chamados
“Princípios de Dublin”, de 2011, mostram como estas preocupações locais têm
dimensão internacional. Tais documentos apontam para metodologias de
identificação, inventário e investigação, indispensáveis para a valorização e
preservação deste Património, cada vez mais presente em múltiplas formas de
apresentação e interpretação garantidas pelos poderes públicos articulados com
as comunidades locais.
Acredita-se que esta saída
cultural – preservação dos vestígios físicos acompanhada de uma narrativa
histórica esclarecedora – constitua uma mais-valia face à rápida modificação
das condições da vida económica, portadora, muitas vezes, de sofrimentos e
frustrações. Vemos hoje um Museu do Pão, em Seia, que contrapõe à uniformizada
industrialização panificadora a memória de antigas formas de moer e fabricar.
Multidões saudosas de antigos sabores e odores invadem aquele espaço e
regressam a um passado que ainda há pouco era o seu próprio presente.
E mais ao sul, o Museu do Trabalho Michel Giacometti, em
Setúbal, mostra os antigos processos da indústria conserveira, em que nos
parece ver ainda os vultos dos homens e das mulheres que ocupavam as linhas de
produção, ao som de apitos estridentes.
Esta valorização do Património
Industrial – cujos exemplos se têm multiplicado de norte a sul do país desde há
duas décadas - é, em si mesma, a consagração do bem mais duradouro da História,
o trabalho humano, mostrado como processo, como sofrimento, como superação,
como riqueza. Aqui, Património já não é Monumento, símbolo de poder, afirmação
de elites ou linhagens. É imagem do Homem que, em sociedade, se eleva acima da
estrita sobrevivência individual. Por isso a preservação do Património
Industrial é indispensável para a persistência da memória histórica desse longo
caminho em que, como dizia M. Vieira Natividade, ilustre patrimonialista
alcobacense, o homem fez a indústria e a indústria fez o homem.
J. Moedas Duarte
J. Moedas Duarte
BIBLIOGRAFIA:
CHOAY, Françoise, Le patrimoine en questions – Anthologie pour un
combat, Editions du Seuil, 2009, p.XXXV-XXXVI.
CHOAY, Françoise, Alegoria do património, Edições 70, Lisboa, 2013.
POULOT, Dominique, “La multiplication des patrimoines”, Patrimoine et
musée. L’institution de la culture, Paris, Hachette, 2001, pp.198-205
NATIVIDADE, Manuel Vieira - Alcobaça de outro tempo. Notas sobre a
indústria e a agricultura, Alcobaça, 1906. [sem refer. de editor]
MENDES, José Amado, O património industrial na museologia
contemporânea: o caso português, Ubimuseum ,[em linha],nº 01, pp.89-104.
[Consult. 20-XI-2013]. Disponível na
internet: http://www.ubimuseum.ubi.pt/n01/artigos.html
WEBSITES:
IGESPAR, Património industrial [em linha], [consultado em 20-XI-2013],
disponível na internet <URL: http://www.igespar.pt/pt/patrimonio/itinerarios/industrial1/
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Associação Portuguesa para o Património Industrial [em linha],
[consultado em 19-XI-2013], disponível na internet: <URL: http://www.museudaindustriatextil.org/appi/home.php
>(última actualização:14-03-2016)
Rede Indústria, História e Património [em linha], [consultado em
19-XI-2013], disponível na internet: <URL:http://historia-patrimonio-industria.blogspot.pt/
>
CARTA
DE NIZNHY TAGIL SOBRE O PATRIMÓNIO INDUSTRIAL [em linha], [consultado em
20-XI-2013], disponível na internet: <URL:
«Les principes de Dublin» -
Principes conjoints ICOMOS-TICCIH pour la conservation des sites,
constructions, aires et paysages du patrimoine industriel
Adoptées par la 17e Assemblée générale de l’ICOMOS le 28 novembre 2011 [em
linha], [consultado em 20-XI-2013], disponível na internet: <URL:
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