ARTE TOTAL PARA UMA VISÃO GLOBAL
DA VIDA
A expressão de Oliveira Martins
que se refere ao reinado de D. João V como “entusiasmo desvairado dessa ópera
ao divino”, prefigura, avant la lettre, a perspectiva de análise que hoje
designamos por “arte total”. De facto, que outra manifestação artística tem um
carácter tão global como a ópera? Ela é um poderoso estimulante sensorial,
através dos sons – canto e música -, e das imagens – cenografia e salas de
espectáculo. Porém, a metáfora do historiador oitocentista tem um alcance mais
vasto pois ela aplica-se à envolvente social que rodeou a corte do rei
magnânimo: verdadeira sociedade do espectáculo em que, desde o cerimonial das
procissões aos solenes Te Deum, da “montanha de pedra” de Mafra aos banquetes
de inúmeros serviços, da Capela de S. João Baptista de S. Roque às igrejas
paroquiais de todo o país, tudo concorria para produzir o efeito de
manifestação do poder régio através do luxo e do espavento.
Convento de Cardais, Lisboa
O guião deste espectáculo tem
dois aspectos complementares: a envolvência religiosa determinada pelas
disposições tridentinas e a afirmação do poder monárquico absoluto. São eles
que orientam as práticas políticas e as opções artísticas, só possíveis com a
remessa maciça de ouro e diamantes do Brasil.
Quanto às opções artísticas,
usemos então o conceito de “arte total”, aplicado à época do Barroco em
Portugal. Vitor Serrão dá-lhe conteúdo mais preciso no sumário de um dos seus
cursos, quando fala em «discurso imagético e espaço total do Barroco» (Teoria
da História da Arte, 2008-2009, Fac. Letras de Lisboa), ou em «totalidade
decorativa», no texto sobre a capela de Nossa Senhora dos Prazeres de Beja.
Por sua vez, Luís de Moura
Sobral, analisando o fenómeno que não é exclusivamente português - embora tenha
entre nós relevância especial, com a inclusão da talha dourada e de painéis
historiados de azulejos – refere «uma tendência para a concepção globalizante e
unitária de um certo número de espaços construídos».
Este conceito de “obra de arte
total” significa a integração e a articulação num determinado espaço – igreja,
capela, ermida - de expressões artísticas diversas como a talha dourada, a
pintura, a azulejaria, a escultura, os embrechados de mármore ou a ourivesaria
e corresponde a uma concepção de prática religiosa que se firmava nos seguintes
pontos:
1. Afirmação do catolicismo
romano centralizado no primado apostólico do Papado, entendido como instituição
de autoridade universal.
2. Identificação do espaço
litúrgico como alegoria do Paraíso, hierarquicamente escalonado, em que
coexistem: os mortos, em sepulcros térreos ou arcas tumulares; os crentes, no
corpo da Igreja, agrupados entre teias de madeira que os separam da Capela-
Mór e das Capelas Laterais, onde
se celebram as Missas; as imagens dos Santos, em plano intermédio nos altares
ou nos painéis de azulejo, como mediadoras entre a Terra e o Céu; mais acima, o
Cristo na Cruz ou já Ressuscitado e o Sacrário, onde se guardam as hóstias
consagradas; e, no alto do trono da Capela-Mór, para onde convergem todos os
olhares, a Custódia com a Sagrada Partícula, Cristo vivo, rodeado do brilho da
talha dourada resplandecendo à luz das velas.
3. Afirmação do Clero, mediador
entre os crentes e a Corte Celeste – representada em tectos profusamente
decorados – ricamente paramentado, expressando-se em Latim, língua universal da
Igreja, mas desconhecida da esmagadora maioria dos crentes, reduzidos a
figurantes de uma Liturgia complexa, regida pela lei canónica para assegurar
práticas de uso universal.
4. Estimulação dos sentidos de
modo a induzir a adesão mística dos crentes: a visão, através de imagens
profusamente distribuídas por vários suportes e materiais; o olfacto, com o
odor intenso das velas e do incenso; a audição, através da música dos órgãos,
do canto polifónico e dos sermões pregados em púlpitos dominantes; o tacto,
pelo toque nas imagens e a osculação das relíquias; o gosto, enfim, com a
deglutição da Hóstia consagrada, participação simbólica na última Ceia de
Cristo.
Os templos transformam-se, assim,
em cenários da representação teatral, pontuados por um calendário litúrgico
anual com os pontos fortes do Natal e da Pascoa, e a evocação diária dos
santos, garantida por uma Hagiografia amplamente estudada e divulgada nos
séculos XVII e XVIII.
A profusão de lugares de culto,
onde este programa religioso se expressou das mais diversas formas, é expressão
de mecenatos de variada origem: não só as dotações régias, mas também de
bispos, de membros da Nobreza e de ricas Irmandades, Confrarias e
Misericórdias. De norte a sul do país, multiplicam-se as capelas no interior
das igrejas setecentistas ou as Ermidas e Santuários de culto.
A Historia de Arte tem estudado
este manancial histórico-artístico, através de equipas multidisciplinares cada
vez mais complexas e que aliam, à análise formal, a leitura iconográfica dos
conjuntos destes espaços, na procura da narrativa religiosa característica de
cada um deles. Um exemplo brilhante é o estudo da Igreja de Nossa Senhora dos
Prazeres em Beja que revela um lugar surpreendentemente ilustrativo do conceito
de “totalidade decorativa” e que Vitor Serrão, um dos seus autores, considerou
«um exemplo ímpar da cenografia barroca de arte total».
A “ópera ao divino” com que
Oliveira Martins caricaturizou o reinado do rei magnânimo é, afinal, a
expressão global de uma mundividência marcada pela Fé católica e que percorre
toda a sociedade setecentista.
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APOIO BIBLIOGRÁFICO E DE
WEBGRAFIA
Para além das leituras
recomendadas e obrigatórias, indicadas na página da Unidade Curricular
PATRIMÓNIO INTEGRADO, UNIVERSIDADE ABERTA [em linha], < URL
http://elearning.uab.pt/course/view.php?id=333>, foram consultadas as obras:
MARTINS, Oliveira – História de
Portugal, 16ª ed, Guimarães Editores, Lisboa, 1972.
MOURA, Carlos - "O sentido
do Barroco na arte seiscentista e do início do século XVIII", in
História da Arte em Portugal,
Edições Alfa, Lisboa, 1989.
PEREIRA, José Costa – “Vectores
culturais portugueses de seiscentos e setecentos”, in História
de Portugal, vol. 5, Publicações
Alfa, Lisboa, 1983.
PEREIRA, Paulo – Arte portuguesa,
História essencial, Temas e debates / Círculo de Leitores,
Maia, 2011.
SERRÃO, Vítor – História da Arte
em Portugal - O barroco, Editorial Presença, Lisboa, 2003.
SERRÃO, Vitor, LAMEIRA Francisco,
FALCÃO, José António, A igreja de Nossa Senhora
dos Prazeres em Beja – Arte e
história de um espaço barroco (1672-1698), Alêtheia
editores, Lisboa, 2007.
VELOTTI, Stefano – “Barroco”, in
Dicionário de estética, dir. CRACHIA, Gianni e
D’ANGELO, Paolo, Edições 70,
Lisboa, 2003.
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